IvoneGebara

Introdução     

Pensar ‘fora do eixo’ é acreditar em primeiro lugar que existe um eixo norteador da filosofia com questões, respostas, formas e características especiais presentes no pensamento. E, além disso, que há pensamentos, talvez algumas filosofias que se expressam ‘fora do eixo’ e que apesar disso podem ser afirmadas por algumas pessoas como filosofias. Na realidade o que chamamos eixo?  Tudo indica que eixo parece ser uma espécie de mola mestra que sustenta uma máquina ou uma coluna sólida sem a qual um edifício desabaria. E mais, que uma construção fora do eixo seria ameaçadora e danosa para a vida de muitos. A partir dessa simples analogia podemos dizer que as diferentes formas de pensamento humano reconhecidas como filosofias moveram-se em torno de algumas formas de percepção da realidade ou expressaram aquilo que acreditavam ser realidade a partir de parâmetros estabelecidos dos quais induziam ou deduziam suas construções mentais. A partir delas julgava-se o que era verdade ou mentira, bom ou mau, justo ou injusto e assim por diante. As filosofias são na realidade construções do pensamento, expressões de observações parciais marcadas pela subjetividade, perspectivas sobre como o mundo humano é apreendido e interpretado nas suas mais diferentes dimensões. São também desejos mais ou menos lógicos de como o mundo humano poderia ser tornado melhor, ou seja, como se poderia pensar uma ética da convivência humana que propiciasse uma melhor convivência comum e afirmação de uma felicidade possível.

Sabemos bem que todos os pensamentos filosóficos têm eixo, perspectivas, visões a partir de um lugar e a partir de um corpo socialmente situado e, portanto limitado. Cada corpo enxerga o mundo e a si mesmo de uma forma e numa perspectiva, muito embora possamos ter encontro de subjetividades e acordos entre elas. Em geral quando criticamos as visões ou os pensamentos de outros, sobretudo, os que não nos agradam afirmamos que eles estão fora do eixo de nossa verdade, muitas vezes tomada como única.

Hoje estamos sendo provocadas/os a constatar que há algo para além do eixo usualmente estabelecido e este algo atiça nossa reflexão. Ele é na realidade plural e por isso mesmo um tanto desnorteador de um pensamento que construiu cronologicamente o que chamamos de história da filosofia.

A filosofia ou a história da filosofia para o ocidente começa com os pré-socráticos e chega até a contemporaneidade. Às vezes incluí algo do pensamento oriental, porém a ênfase maior é dada ao ocidente e particularmente ao ocidente de uma parte da Europa. Nessa história desfilavam homens ilustres, pensadores do SER, homens do conhecimento e da ética que dedicavam suas vidas a compreender racionalmente os  muitos meandros e mistérios da vida humana. O século XX assiste a uma enorme reviravolta. Mulheres descobrem-se como parte da história do pensamento humano, no passado e no presente, embora suas percepções e reflexões sobre a vida não tivessem sido reconhecidas como filosofia. Hoje, em muitas partes do mundo e até fora do eixo europeu reivindicam mudanças nas instituições sociais em nome desta ‘outra’ maneira de pensar seu mundo dentro do mundo. Aqui já se delineia um primeiro eixo da filosofia feminista, ou seja, o de afirmar-se no direito de pensar as relações humanas a partir de suas experiências, a partir do lugar de seus corpos e de suas percepções. E mais, pretender que este pensamento seja reconhecido publicamente como um olhar entre outros tantos olhares tendo por isso mesmo direito de cidadania. Sem dúvida, esse reconhecimento tem sido possível na medida em que cresce nas democracias a afirmação dos direitos humanos e nos muitos totalitarismos a consciência de grupos em relação às insuportáveis opressões contra as mulheres e outros grupos marginalizados.

O atrevimento feminino nem sempre foi bem-vindo. E, mais uma vez as mulheres que se autodenominaram filósofas são consideradas como alguém à parte, portadoras como outros grupos marginais de um pensamento ‘fora do eixo’. É esse ‘fora do eixo’ que é de fato um eixo que nos interessa e é a partir dele que proponho minha reflexão sobre FILOSOFIA E FEMINISMO. Três pontos e uma brevíssima conclusão farão parte de minha reflexão.

  1. O feminino publicamente isolado: desapropriação e apropriação de experiências
  2. O que homens e mulheres percebem do SER
  3. Epistemologias e éticas de gênero em debate
  1. O feminino publicamente limitado: desapropriação e apropriação de experiências.

 Falar do ‘feminino publicamente limitado’ nos levaria provavelmente a uma longa viagem através dos processos de socialização vividos pelas mulheres e homens nas diferentes culturas. Através dessa viagem tão diversificada e talvez exótica, poderíamos confirmar com Simone de Beauvoir que “não nascemos mulheres, mas nos tornamos”[1]. E, da mesma forma diríamos que os homens também não nasceram homens, mas se tornaram. Tal constatação nos conduziria talvez a buscar uma essência feminina e uma masculina que de certa forma explicariam o estado milenar de beligerância entre os sexos. Não vou por esse caminho. Enfrento-me ao que posso observar olhando os vestígios passados e o presente da história humana. Faço adesão ao materialmente constatável hoje para tentar entender algumas relações entre a opressão feminina e a dominação masculina da natureza e da sociedade. Deve haver nesse binômio alguma experiência esquecida, algum acontecimento repetitivo que permitiu que o que era comportamento se transformasse e se afirmasse como ‘natureza’ humana quase imutável. Deve ter havido algo ou alguma razão ou mesmo um precário vestígio, obscurecido pelo tempo no processo de nossa evolução humana que está na raiz dos conflitos, dominações e submissões. Mas esse ‘algo’ nem sempre quer ser buscado e se encontramos vestígios muitos preferem apagá-los. Haveria talvez o risco de nos abrirmos a outros horizontes que poderiam nos separar do estreito mundo da obediência à natureza ou ao mundo das reivindicações igualitárias. Muitos/as nem querem revisitar os mitos das muitas culturas e de antemão afirmam seu caráter não histórico, limitando o histórico ao meramente factual.

Entro às apalpadelas e provisoriamente nesse lugar originário, como hipótese plausível, confiante de que é portador de algumas luzes que nos permitem enxergar aspectos da situação atual das relações humanas e as relações com nosso planeta. Entro como quem abre uma porta entre outras tantas atraída talvez pelos sinais provindos dos tempos de hoje que expressam as muitas formas de opressão feminina / masculina e de dominação da natureza como tendo origens mais ou menos comuns. Mas, o que teria acontecido na noite dos tempos? Vale remover escombros e poeiras para isso? Creio que a arqueologia tem um lugar na compreensão de nossa vida e quando não enxergamos por onde caminhar no presente o passado pode ser inspirador, a infância da humanidade pode trazer recordações e novos impulsos, pode abrir sendas onde acreditávamos não ter caminhos.

Por isso, com a filósofa francesa Luce Irigaray[2] reafirmo provisoriamente que “no principio da filosofia era ELA…, a natureza, a deusa e a mulher” que inspiravam os sábios na busca da verdade. E os sábios pareciam ser igualmente mulheres e homens, cada um à sua maneira. É uma hipótese plausível para além dos mitos androcêntricos e dos monoteísmos e nos convida ao pensamento. Pouco a pouco, segundo Irigaray os homens sábios foram ocultando e esquecendo o que aprenderam dela e construindo discursos como se eles fossem a única fonte da sabedoria presente em suas elucubrações e em seus textos. Acreditaram que sua sabedoria vinha apenas da qualidade do seu pensar sobre o mundo. Entretanto, é fundamental recordar que alguns filósofos pré-socráticos na sua reflexão continuavam aludindo a algo para além de seu discurso, a algo escondido e misterioso que lhes inspirava. Era como se houvesse uma realidade para além do logos, para além das palavras que traduzem o pensamento, um algo talvez inconfessadamente ligado a Ela. Os vestígios dessa presença eram constantes nos seus discursos filosóficos. Falavam do vazio, da abertura, do buraco, do Ser para além do discurso; denunciavam sub-repticiamente a presença dela para além de qualquer Logos. Até Sócrates, filho de uma parteira, falava da parturição de idéias retomando sem perceber talvez os vestígios dos corpos femininos em trabalho de parto. Porém, pouco a pouco os homens pensadores foram se refugiando entre eles, usando uma linguagem e conceitos próprios, foram cortando-se dela visto que de certa forma rejeitavam que seu logos pudesse depender de algo para além dele ou anterior a ele que indicasse algo diferente deles. Ela deveria ser assimilada e dominada por eles. Eles precisavam apropriar-se dela, tomar posse de seus mistérios e não permitir que ela fosse autônoma ou ditasse comportamentos.

Assim, pouco a pouco até a presença tênue de algo para além do Logos foi eliminada. E, para muitos Ela foi substituída por um Princípio Masculino absoluto ou um Deus único masculino que ocupou o lugar dela. A linguagem da filosofia e sua extraordinária riqueza fecharam-se num logos racionalista único e androcêntrico. Isto criou conflitos, oposições, controvérsias nos diálogos entre homens. Isto porque se supunha que os caminhos do logos masculino progressivamente conduziriam à verdade e cada um a apresentava com nuances próprias. Mas qual verdade? A resposta era: a verdade sobre todas as coisas e especialmente sobre os seres humanos. Esta tinha a garantia de um Deus soberano e único, capaz de preservar a verdade das coisas para além das controvérsias masculinas. Um Deus fruto de suas deduções lógicas e abstrações. E, quando esse Deus abstrato foi situado como fonte, princípio e fim de todos os pensamentos e de tudo o que existe a busca da verdade também mudou de lugar. Desenvolveu-se até a idéia de que só se poderia encontrá-la encontrando-O e depois da morte, talvez numa fusão total ou em muitas outras formas imaginativas que povoaram os novos mitos “racionais” tornados e tomados como realidade. O encontro final com Ele e seu poder estabelecido sobre tudo o que existe, tomou o lugar do êxtase em movimento que ela provocava suscitando cada vez novas descobertas e novos despertares, novos seres, novas atrações, novos sofrimentos, novas alegrias, novos animais, novos insetos, novas plantas, novas flores. Era ali, mesmo ali, onde estava um pé de laranja, ali onde estava um cacto ou uma colméia Ela estava. Ali onde havia um riacho, o mar e o caudaloso rio Ela estava. Exuberante, misteriosa e bela. Forte e atraente em sua diversidade espantosa e no anúncio da contingência e fragilidade de todo vivente. Ali onde um encontro ou um desencontro se dava, ela estava tomando formas diferentes. Ali onde os corpos se encontravam e se entrelaçavam em cópulas incompreensíveis para o logos Ela estava. Ali onde a morte acontecia, Ela estava desfazendo-se e refazendo-se em novas formas de ser. Próxima, fugaz, exuberante, bela, protetora e também cruel e astuciosa. Ali, ela estava convidando, convidando sempre sem prometer nenhum final feliz porque a felicidade passageira e plural acontecia espalhada nos instantes fugazes da própria vida. As relações vividas com Ela eram mais diretas, marcadas pelo presente, vistas na exuberância ou no terror do instante. Ela estava, pois, no presente enquanto ele, o princípio absoluto se projetava para além de todo presente, para além do tempo e do espaço, perfeitamente conhecedor de tudo e de todos permitindo que todos os seres fossem apenas o que ele, o Pai de todos sabia que seriam. Não podiam sair de seu script, de seu destino pré-estabelecido, do mistério que só ele dominava. Ele tomara o lugar da diversidade dos caminhos, das saídas confusas ou desordenadas do tropel de ovelhas e cavalos, da exuberância das florestas… Todos haveriam de voltar a morar na casa celeste do Pai, ele o poderoso controlador das idéias e de toda a realidade dela. Ele era o Deus dos filósofos e de todos para além das semelhanças e das diferenças, o mediador único das relações entre nós. Ele, um masculino presente em todas as relações entre nós e os outros se apropria de todos os seres. Ele, o invisível, o inatingível direciona e mantém as relações entre nós a partir de uma forma vertical de autoridade. Ele, preponderante na filosofia e teologia medieval segue seu caminho até os dias de hoje, embora com força atenuada pelas novidades contemporâneas.

Nele, os horizontes abertos são inadmissíveis, pois considerados próximos da desordem. A diversidade deve ser controlada, pois cria sombras à ordem perfeita. A afirmação da obediência a este princípio abstrato se afirma como caminho de perfeição não só do conhecimento, das idéias, mas da moralidade. A complexidade das relações, a mobilidade dos processos vitais e sociais deve submeter-se a uma ordem abstratamente estabelecida e regulada por um Deus onisciente, onipotente e onipresente. As mulheres devem obedecer a esta ordem divina e natural para não criarem desordem na ordem cósmica e terrena. Por não se submeter a essa obediência Eva é expulsa do Paraíso, as bruxas da Idade Média queimadas e muitas mulheres contemporâneas perseguidas. Elas queriam e querem apenas resgatar suas energias vitais e usar de sua inteligência e imaginação para restaurá-las, mas isso contraria a ordem masculina estabelecida. Provoca beligerância, conflito de poderes, morte…

Ela era também a paixão materna tão pouco reconhecida pelos antigos assim como por filósofos e psicanalistas de séculos recentes que sublinharam de novo, sobretudo, a relação com o Pai fundador da sociedade e garantia de abertura de caminhos.  A esse respeito Julia Kristeva[3] nos lembra o quanto “a maternidade é uma paixão” (de ligação ou de agressividade), nos limites da biologia e da busca de sentido. Essa paixão fundacional foi rejeitada pelo Logos e pelas religiões monoteístas que fizeram seu Deus parir de uma virgem e que o fruto do ventre virgem não conhecesse o sexo em sua vida terrena. E há mais capítulos dessa história que seguem acontecendo hoje.

Desde a descoberta da gravidez, a mulher se volta para dentro de si até o nascimento, até a expulsão de dentro de si mesma do novo ser para que ele /ela, sejam autônomos. Para além da situação idílica que poderia ser sublinhada na maternidade há uma extraordinária experiência ontológica da coexistência primitiva de dois seres num mesmo ser que tornam as mulheres portadoras de algo constitutivamente diferente dos homens. E essa diferença tem conseqüência na organização da sociedade e na compreensão do ser humano. Sobre essa experiência os filósofos nada disseram e até chegaram a reduzi-la ao simples estado de reprodução animal. Era como se a consciência do ser feminino e de sua paixão não existissem. Era como se essa experiência de ser dois em um simplesmente reproduzisse um fenômeno biológico sem conseqüências para a constituição mesma dos seres humanos. Essa experiência é resgatada pela filosofia feminista para mostrar as semelhanças e diferenças na percepção do mundo que existem entre a socialização das mulheres e a socialização dos homens. E a socialização muda a perspectiva de enxergar o mundo, de valorizar o corpo e a vida, de conhecer o mundo que nos cerca e envolve. A paixão materna é lugar a partir do qual se resgata uma filosofia da existência como se a origem estivesse inscrita na vida social e na sua complexidade. Mesmo nos dias de hoje com o desenvolvimento da tecnologia científica dos bebês de proveta e outras coisas no gênero há ainda uma experiência diversificada do mesmo fenômeno das origens. Mais uma vez somos convidadas/os a pensar.

  1. O que homens e mulheres percebem do Ser

A percepção do ser é em primeiro lugar a apreensão daquilo que nos constitui. O que somos e o que fizeram de nós biologicamente e socialmente. A essa dimensão estão ligadas as nossas necessidades de sobrevivência e de vida em comum numa absoluta e incrível interdependência. Ligada a ela está a percepção de nossa capacidade de pensar o mundo, de transformá-lo, de produzir arte, de inventar meios melhores de vida e até utopias. O ‘dasein’ de Heidegger é fundamentalmente este ser que “está aí” este ser imediato e mediatizado que nos constitui, é esta busca de viver que nos caracteriza no instante presente.

Entretanto, se pode dizer que os homens ou os seres biologicamente masculinos foram por seus corpos, seu pensamento e sua forma de socialização, capazes de criar uma percepção do ser para além do ser. Em outros termos não se contentaram em simplesmente nascer, viver e morrer, mas quiseram perscrutar as razões do nascer, do viver e do morrer para além dos limites da terra. E aí construíram razões e explicações imaginárias cercadas de incrível lógica e racionalidade. Quiseram igualmente buscar formas abstratas de vencer o sofrimento e as muitas dores inevitáveis à condição humana. Foram eles principalmente que se tornaram ascetas, iluminados, faquires… E, propuseram caminhos para salvar-se do sofrimento. Acreditaram que de posse dessas razões e de caminhos superiores seriam mais felizes ou teriam maior poder uns sobre os outros, ou conheceriam cada vez mais os segredos da vida da natureza da qual eles também eram parte. Mas, o lado da natureza foi sempre algo quase inconscientemente rejeitado, sobretudo quando quiseram encontrar o puro pensamento, quando acreditaram nessa possibilidade de conhecer as coisas para além de sua manifestação, quando se esqueceram da ordinária materialidade da vida como condição inclusive do pensamento. É claro que fazer essas afirmações tão cruamente e diretamente provocaria até certa rejeição dos seres masculinos. Entretanto, o fato é que a grande maioria dos pensadores ou dos filósofos sempre acreditou na importância de buscar algo para além daquilo que os olhos e a pele podiam sentir. É como se houvesse um algo escondido para além da materialidade do corpo, uma idéia, uma maneira de ser, um paraíso, uma promessa que fossem mais importantes do que o buscar o alimento cotidiano, cozinhar, cozer, criar filhas e filhos, limpar a casa, cuidar dos enfermos, proteger necessitados, plantar árvores e cuidar da horta… Sem dúvida tarefas necessárias, mas que de fato para eles não estavam à altura dos vôos do espírito, dos caminhos que nos conduzem para além da vulgaridade e da monotonia da manutenção da vida cotidiana.

O ser que muitos intelectuais, muitos filósofos percebem é, salvo exceções, o dever ser para além do ser ou o ser aquém do ser. Ou ainda se ocupam com as ginásticas mentais de construção de mundos perfeitos onde toda a dor e o sofrimento seriam vencidos ou quase vencidos.

O ser que as mulheres se ocuparam é a existência. Não é o ser em si mesmo e nem um ‘dasein’ sem rosto próximo, sem dores e odores. Por escolhas herdadas da vida e pela biologia de seu corpo capaz de sangrar, de engravidar, de aleitar foi o ser imediato ou a imediatez da vida seu primeiro sujeito/objeto de pensamento. O correr para o choro de uma criança, o buscar lenha para acender o fogo da sopa, o plantar verduras e legumes em torno do jardim, o preparar alimentos e remédios, o lavar a roupa no rio. Ou ainda correr para encontrar trabalho e ficar pensando na janta para os filhos. Ou ficar nas filas nas portas da prisão para visitar maridos e filhos presos. Poder-se-á objetar que em meu horizonte de pensamento e palavra tenha a figura das mulheres pobres e de um mundo pré-tecnológico. Mais ou menos… Penso, de fato, mas não só nelas… Mas nas milhares de professoras, de médicas, de enfermeiras, de avós de ontem e de hoje que com ou sem máquina de lavar roupas vivem a mesma corrida para sustentar a sobrevivência de muitos. É essa herança ancestral que se manifesta ainda hoje quase como uma segunda natureza que constitui a maior preocupação com o ser que caracteriza a maioria das mulheres. Por isso a ordem da compreensão do ser para as mulheres é diferente da dos homens. E nessa diferença ao longo da história não criaram sistemas perfeitos de vida e de após a vida, mas se debruçaram sobre a fragilidade da vida que nos constitui e rodeia. Sem dúvida fizeram poemas de amor aos seus mortos, choraram as perdas, oraram a seus deuses, mas sempre voltaram ao imediato da vida como se fosse aqui o único lugar onde encontravam a si mesmas. Seu encontro mais profundo é com o ser frágil da existência, sua preocupação é nele e com ele muito embora muitas vezes tivessem traído esse impulso vital que as habitava e abraçassem os ideais masculinos do espírito masculino.

Hoje ainda tanto elas quanto eles marcados por suas diferenças agrupam-se em seus guetos e em suas conversas construindo muitas vezes mundos a parte muito embora o domínio global continue sendo masculino. Algumas possibilidades de diálogo se delineiam, mas ainda insuficientes para pensar as relações a partir de um referencial para além do ataque e da defesa. Como vencer os limites dessa situação às vezes insuportável? Diz Simone de Beauvoir que é através do reconhecimento de cada individuo no outro, ou seja, cada um assumindo a si e ao outro como objeto e sujeito de um movimento recíproco. Esse é o caminho da verdade da convivência dos seres humanos, continuamente renovado e renovável.[4] E esse caminho árduo precisa ser retomado no cotidiano.

Nosso tempo segue levantando novas questões e novas formas de dominação das quais não somos isentos/as de responsabilidade. Continua mostrando apesar das diferenças, similares aproximações do ser e similares conflitos, muito embora o despertar da consciência seja uma realidade que demonstra, sobretudo, uma qualidade de consciência das mulheres nesse século que é o nosso.

  1. Epistemologias e éticas de gênero em debate.

Podemos dizer que a diferente apreensão filosófica ou epistemologia, embora não exclusiva do ser que nos constitui se expressa de forma sintética como sendo a do ser em si masculino e a do ser da existência cotidiana feminino. Esta dupla apreensão circula e coexiste entre mulheres e homens e revela a presença de diferentes epistemologias não apenas marcadas por racionalidades diferentes, mas por gêneros diferentes. Longe de atribuir uma epistemologia específica a uns e a outras se pode, no entanto, é importante afirmar certas maneiras de apreender o real que nossos corpos, nossa socialização e nosso lugar social nos ensinaram.

O eixo filosófico da racionalidade masculina foi sempre o estabelecimento de um ideal que se expressa através da negação crítica do ser imediato das coisas para estabelecer crenças ou utopias de mundos perfeitos que obedeçam a uma controlada racionalidade. Os sacrifícios para se chegar à meta estabelecida são inúmeros incluindo-se até o dar a vida pela idéia defendida. Criaram uma linguagem própria para além da linguagem ordinária da comunicação entre as pessoas e a tornaram um degrau de abstração quase matemático. Esse eixo epistemológico foi propulsor não só de sistemas de pensamento, mas também de sistemas econômicos que dirigiram as relações comerciais e políticas entre os povos. Foi também propulsor de religiões especialmente dos monoteísmos nos quais as mulheres continuam submetendo-se às ordens das divindades masculinas e aos ideais por eles propostos. Mesmo as teologias feministas na sua maioria, vivem ainda hoje prestando culto aos deuses de cara masculina…

As fronteiras masculinas queriam e seguem querendo expandir-se para os muitos horizontes ou horizontalidades visto que a verticalidade de seu princípio último é sem limite. Tornaram-se um doublé terreno de seu idealizado princípio fundador. Por mais que sejam interessantes as muitas filosofias inclusive as contemporâneas a tentação é sempre de ir de certa forma contra o real que os olhos apresentam e o corpo sente, como se não fosse nesse mesmo real e a partir dele que desmandos e crueldades devessem ser extirpados. Dizer ‘contra o real’ significa não apenas referir-se ao ser aqui existente como o ‘dasein’ heideggeriano, mas significa não nomear sua particularidade, sua identidade, seu sexo, sua responsabilidade específica. Significa ocultar do real as particularidades constitutivas do real. Ocultar do real sua própria subjetividade (o eu do filósofo) como parte constitutiva desse real que se quer negar. Sabemos o quanto podemos recuperar a vida cotidiana e fazer dela uma nova abstração dando apenas a impressão de estarmos no cotidiano. Na verdade estamos fazendo dele um novo conceito e estendendo aos outros e outras armadilhas de novas abstrações usando o óbvio cotidiano para fugir da beleza e crueldade imediatas que nos envolvem.

O enfrentamento filosófico masculino dos problemas é quase sempre em primeiro lugar teórico, constituído por um arrazoado de palavras que convencem a eles mesmos habituados a palavras herméticas, aos belos discursos bem regrados e obedecendo a uma rigorosa lógica indutiva e até mesmo dedutiva. O desejo de melhorar o mundo em geral se pauta em primeiro lugar no estabelecimento de uma situação ideal para aonde se quer chegar, num renovável céu para longe da terra mesmo se falam desde a terra e para a terra. Muito poder é aplicado na execução desse ideal como se uma casta ou uma classe superior de homens sentisse e pensasse o mundo de forma privilegiada e pudesse oferecer aos outros mortais o remédio eficaz para seus muitos males. O ideal oferecido aos outros supõe sacrifícios e morte, sobretudo aos que não aderem a ele seja por conhecimento crítico seja por ignorância. O real idealizado não pertence à vida que se mostra, mas àquela que se afirma desejar como sendo portadora da superação das contradições e violências do presente. Não se percebe o quanto o conflito ‘contra’ abre-se como expressão de um eterno conflito ou um constante conflito na história dos desejos e das realizações humanas. O ‘outro’ é visto como inimigo e não como sombra do próprio eu, “a outra” é vista como subalterna e competidora e não como igual e absolutamente necessária à vida pessoal, pública e social.

Talvez houvesse outro caminho que guardasse as contradições e as afrontasse de outra maneira… Talvez fosse necessário ouvir e ver desde outra perspectiva.

Mas a epistemologia masculina tornou-se também cultura e cultura cristã em nosso continente latino-americano. Tornou-se vontade de um Deus sobre nós que se imiscui em tudo. Isto dificulta ainda mais o encontro de novas possibilidades. Constatamos de novo que a outra, a fonte original ou originária continua sendo silenciada ou reduzida a objeto de lucro e prazer. Filósofos e religiosos voltam-se de novo ao todo poderoso princípio masculino tornado homem para os cristãos. Este se apropriou e se tornou também carne da carne humana ou mais precisamente em primeiro lugar carne do espírito masculino, dele gerado, mas não gerado através dos suores e sangues menstruais dela. Sim gerado espiritualmente num mero receptáculo feminino. E, em forma carnal é imaginado puro e sem mácula, sem as manchas e os odores femininos, sem passar pelo corpo de mulher, sem romper a vagina e sem “sujar-se” de sangue e lágrimas. Sim gerado sem cópula, sem prazer e sem dor. Apenas idéia, puro espírito tornado homem e também capaz de gerar filhos através de sua própria solidão, obedientes às suas ordens como seguidores dependentes de sua infinita vontade. Nessa idéia pura divulgada como filosofia verdadeira, como cultura, como reaproximar-se DELA? Como curá-LA dos muitos males e da ameaça de morte prematura?

Continuamos ligados a ele, princípio, salvador nascido deles e onde eles e elas encontram sua origem. Cumplicidade total, dependência total do masculino com o masculino. Controle total dos corpos iguais e pretensão de controlar os diferentes. Por isso as mulheres ou Ela continuam sendo diminuídas e controladas e submetidas a seu poder. Este processo se infiltra em tudo e não se faz com consciência nefasta ou culposa. Apenas se constrói um modo de ser afirmado verdadeiro e modo de dar razão de suas esperanças. E este modo se tornou uma maneira de agir, sobretudo, dos homens, seu hábito tornado natureza à força das repetições de geração em geração. Até a maioria das mulheres acreditaram nisso e imaginaram que o Todo Poderoso as tivesse isentado de pensamento profundo e de lugares para exercê-lo. Sem dúvida que pensamento elas tinham, visto que solucionavam as questões mais complicadas da vida cotidiana e da sobrevivência doméstica. Mas, talvez seu pensamento fosse mais um pensamento material, um pensamento que não alcança os vôos masculinos, um pensamento que se move nos limites da terra e da carne faminta de pão e de amor.

A epistemologia segundo as filósofas mulheres tem seu eixo na existência cotidiana e não na invenção de um mundo diferente ou na invenção de uma mulher tornada apenas objeto e sonho masculino. Conhecer é conhecer meu corpo, minha cercania, é despertar-me para as questões que afligem a proximidade dos corpos. Conhecer é nomear o que vejo o que sinto e o que posso querer e mudar ou criar no imediato. Conhecer é dizer que é preciso preservar a água potável para as crianças da escola, que é preciso ter mais leitos nos hospitais e cuidadores. Conhecer é afirmar que é preciso que meu corpo igual e diferente seja respeitado e cuidado. Conhecer é viver em primeiro lugar o imediato de nossa respiração, de nossa existência singular e plural ao mesmo tempo.

Conhecer é nomear meus medos, minhas angústias, minhas mentiras enganosas sobre eu mesma afirmando meu ser misturado. Conhecer é conhecer a dificuldade de construir minha identidade para além dos preconceitos dos usos e costumes estabelecidos. É como escreve a filósofa Seyla Benhabib “assumir que o sujeito da razão é o corpo humano de uma criança que só pode estar viva, tendo as suas necessidades satisfeitas, e sua subjetividade desenvolvida no interior da comunidade humana na qual ela nasceu.”[5]. Só isto basta para criticar o ego masculino autônomo de muitas filosofias, a ficção de um cogito universal e independente pairando no espaço do pensamento. Só isto é suficiente para criticar a ilusão de querer negar as muitas expressões dela e sua força vital que envolve todas as relações.

O eixo que marca as epistemologias e as éticas feministas é de inclusão e apesar das críticas também de inclusão das limitadas percepções masculinas. No principio era ELA. E, eles são parte dela. Não são radicalmente autônomos e independentes a ponto de serem negados por ELA e por elas.

Podemos dizer que nessas epistemologias e éticas o mundo material é maior do que o mundo do pensamento. O encontro com os semelhantes e diferentes é maior do que uma utopia construída pela razão teórica. E, embora sendo maior a razão prática feminina não nega a importância da utopia, entretanto não faz dela a primeira na ordem do ser. A epistemologia feminista guarda assim a contingência e a fragilidade da vida, guarda sua opacidade e a experiência das emoções intraduzíveis em palavras. A epistemologia femina/feminista constata a presença do buraco no chão que faz tropeçar antes de olhar as estrelas como Tales de Mileto. Funda-se no risco da existência cotidiana marcada pelos muitos riscos que englobam o simples fato de estarmos vivos. Isto tudo é primeiro. A partir daí se pode falar de transcendência. Esta se inicia nos limites da razão prática, em meio aos odores e mazelas do cotidiano, em meio a sorrisos infantis capazes de deixar cair máscaras de arrogância. Ela nasce, pois desse lugar misturado, nasce como percepção e não apenas como surgimento escondido por trás das palavras e no discurso dos princípios absolutos.

Somos um continente diverso e diversificado, não apenas uma ilha isolada. Somos nosso próprio enigma e paixão e são eles que encontramos entre as muitas nuvens do não saber que envolve nossa vida cotidiana. É aqui também o lugar onde floresce nossa liberdade, instantânea, insegura, sem certezas absolutas… Apenas um sopro, uma respiração depois de outra que nos alivia e nos faz louvar a vida. A experiência da liberdade é mais do que um conceito, é mais que uma idéia revolucionária… É, talvez, apenas aquele sentimento que nos invade e nos aproxima da leveza de uma borboleta, ou do esplendor da rosa abrindo-se ao sol da primavera ou da emoção de um encontro longamente desejado. Depois acaba, fenece… E, espera de novo a volta de outros e outras que viveram os muitos êxtases de cada instante único.

Brevíssima conclusão

No principio era Ela e Ela continha a multiplicidade de elas e eles. Esta parece ter sido a tese biológica e filosófica inicial dessa reflexão. Depois surgiu a antítese e ele dominou-a esquecendo-se do ser vital dela. Dominou-a, negou-a, violentou-a e amou-a durante séculos. Então Ela de muitas formas se rebelou. Negou-lhe o controle da cama, da esteira e da casa. Finalmente a conseqüência da dominação fez com que suas águas se sujassem seu ar tornar-se pesado, suas verdes matas serem cortadas fruto da potência dominadora dele. Depois exangue, ferido e quase desesperado, Ela começa por fazê-lo redescobri-la. Ele resiste, agride de novo de muitas formas, esperneia querendo ainda o domínio do mundo. Ela insiste e anuncia uma nova síntese possível. Existirão entre os muitos outros seres respirando o mesmo ar, bebendo das mesmas águas, vivendo na mesma Terra. Serão de muitas formas e de muitos jeitos como frutos diferentes de uma mesma árvore. Terão sabores próprios, mas não precisarão se excluir para que cada um busque a afirmação de sua própria existência. Ela não será o “objeto” e ele o “sujeito”, mas de novo serão um/a para o outro/a, cada um/a pedaço do outro, água e sangue do/a outro/a, respiração comum igual e diferente. A síntese não será um final feliz pré-fabricado ou idealmente pensado. Será apenas uma senda aberta cada dia e cada noite, senda na qual não faltarão conflitos e novas quedas. Será uma senda ditada não só pela consciência de cada um/uma, mas por sinais reais da volta das águas puras, do reflorestamento, do respeito mútuo, do fim das armas de guerra e dos pesticidas. Será uma senda às vezes bem estreita e curta que anunciará a diminuição da violência doméstica entre os dois, o respeito à complexidade de gêneros e a superação da dominação dos deuses celestes. Uma senda… Apenas uma senda… Uma esperança nascida das entranhas humanas e da terra. Quem viver ou sobreviver verá! (Agosto 2015)
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[1]  Beavoir, Simone. Le deuxième sexe. Paris , Gallimard, 1976.

[2] Irigaray, Luce. In the beginning she was. London, New Deli, New York, Sidney:Bloomsbury.2013

[3] Kristeva, Julia. Seule une femme.Éditions de l’Aube, 2007.

[4] Op. Cit Simone de Beauvoir,p. 238  Vol. I

[5] Benhabib, Seyla. Situating the self. New York, Routlege, 1992, Introduction, p.5.

Obs: A autora é  escritora, filósofa e teóloga.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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