IvoneGebara

O movimento feminista teológico no mundo vem ganhando espaço a partir dos ventos reformadores impulsionados com as reformas do papado de Francisco. Para Ivone Gebara, teóloga, estudiosa e referência nacional em Teologia Feminista, não devemos, entretanto, esperar mudanças na estrutura masculina da Igreja Católica. “O Papa Francisco tem boa vontade (…) mas não tem condições de, vivendo dentro de uma tradição sagrada masculina, dar passos revolucionários para, de fato, promover a inovação necessária ao mundo de hoje”.

Ivone esclarece, inclusive, ser errôneo falar em ‘uma maior participação da mulher na Igreja’, como se as mulheres não estivessem entre aqueles que a constroem diariamente. “Não se trata, portanto, de reinserção das mulheres na Igreja, como se as mulheres tivessem que inserir-se num lugar que não é o seu. Dá até a impressão de que a Igreja é uma realidade fora de nós”.

Para além da discussão sobre feminicídio e outras formas de violência contra a mulher no Brasil, a estudiosa mostra que essa análise não deve ser superficial, mas chegar à raiz da questão. “[Os estados e as religiões] Não percebem que a reprodução da violência contra as mulheres está ainda muito presente nos processos educacionais (…) O que nós, pensadoras feministas, fazemos é alertar as pessoas para não estabelecerem modelos teóricos e idealistas e mostrá-los como metas absolutas a serem alcançadas. Isto não funciona”.

Para o Dia Internacional da Mulher de 2015, celebrado domingo passado, 08 de março, apesar do aparente retrocesso observado no mundo, nesses últimos anos, é preciso reconhecer as conquistas e os avanços do movimento feminine, na visão da teóloga. “[Neste 08 de março de 2015] Temos que celebrar os enfrentamentos políticos de muitas mulheres que não hesitam em levantarem suas vozes contra a violência da ‘cultura política’ vigente. Temos que celebrar as inúmeras redes feministas que continuam seu labor de denunciarem os abusos dos poderosos e a manipulação dos nossos corpos. Temos que celebrar as mulheres que frequentam as igrejas e que são capazes de dizerem ao padre ou ao pastor ‘não estou de acordo com o senhor’”.

Confira a entrevista que a teóloga Ivone Gebara concedeu com exclusividade à Adital.

Adital: Observamos pronunciamentos do Papa Francisco em apoio a uma maior participação da mulher na vida sacerdotal, embora saibamos que, em muitos casos, sua vontade esbarra no conservadorismo da Cúria Romana. Podemos esperar alguma mudança concreta nesse sentido para seu papado?

Ivone Gebara: Creio que, antes de falarmos dos pronunciamentos do Papa Francisco sobre as mulheres, é preciso lembrar três pontos para que tenhamos um pouco mais de clareza sobre a situação atual da Igreja Católica Romana. O primeiro deles tem o objetivo de recordar que a função das leis eclesiásticas e dos dogmas é de também exercerem uma certa contenção na vida dos fiéis. Determina-se o que deve ser objeto de crença para evitar a multiplicidade de interpretações e conflitos, que fragmentaram e fragmentam a comunidade de fiéis. Entretanto, não se pode esquecer que leis, dogmas e interpretações nascem em contextos históricos determinados. Estes são mutáveis e nunca deveriam ser estabelecidos como normas absolutas ou como vontade divina, como tem acontecido. Decorre daí o segundo ponto que se refere ao fato de se legitimarem essas novas leis e crenças como vontade de Deus ou de Jesus Cristo. Essas vontades, segundo muitos, são imutáveis. Estabelece-se assim um argumento de autoridade pronunciado ou promulgado pelo magistério da Igreja. E o último ponto que pode ser claramente observado é que esse magistério é masculino e, em geral, idoso e celibatário. As mulheres não participam diretamente dele como se, por ordem divina, elas devessem ser excluídas. Essa estrutura e interpretação patriarcal, considerada sagrada, dificulta mudanças mais significativas na atual cultura eclesiástica transmitida ao povo. A partir daí, se pode situar a questão em relação às mulheres.

O Papa Francisco tem boa vontade, procura entender algumas reivindicações vividas pelas mulheres, mas não tem condições de, vivendo dentro de uma tradição sagrada masculina, dar passos revolucionários para, de fato, promover a inovação necessária para o mundo de hoje. Ele é fruto do seu tempo, da sua formação clerical e dos limites que a englobam. Ouso dizer que é a comunidade cristã e, no caso, a católica romana, espalhada por tantos lugares, que deveria, a partir de suas vivências, ir exigindo de seus líderes mudanças de comportamento. Começar por baixo, embora os de cima também possam ajudar, na medida em que forem mais sensíveis e acolhedores aos sinais de cada tempo e de cada espaço, é um caminho para nos ajustarmos às necessidades atuais das mulheres e dos homens do nosso tempo.

Adital: Em seu novo livro “Evangelho e instituição”, o monge Marcelo Barros afirma que a Igreja Católica deveria retornar a suas origens (primeiros séculos), quando as mulheres exerciam um papel mais ativo na Igreja. Na sua opinião, como deveria ser essa reinserção?

IG: Penso que a ideia de “retorno”, no caso, retorno às origens cristãs, deve ser revisitada, pois, muitas vezes, podemos cair em anacronismos, mesmo involuntários. A referência às origens é uma espécie de saudade de algo bom que se gostaria de ter. É uma esperança em forma de discurso sobre as origens. Em geral, pensamos que o antes, o passado, as origens são sempre mais coerentes e verdadeiras. A volta ao útero materno, por exemplo, é uma aspiração de pretensa paz do desejo humano, como se ‘naquele tempo’ tudo estivesse bem. Na realidade, nas origens, podemos encontrar muitas coisas, inclusive aberrações e inadequações para o nosso tempo. Cada tempo é um tempo e tem suas grandezas e suas misérias. O tempo “que se chama hoje” é o nosso tempo real e é nele que devemos buscar novas formas de convivência, tendo ciência de que este é, como outros, um tempo limitado. Não se trata, portanto, de reinserção das mulheres na Igreja, como se as mulheres tivessem que inserir-se num lugar que não é o seu. Aliás, a linguagem eclesiástica e a linguagem de muitos de nós evidencia a dificuldade de acolhermos a Igreja como comunidade de irmãs e irmãos vivendo na diversidade de situações. Às vezes, tenho a impressão de que o termo igreja significa, para muitos, prioritariamente, a hierarquia, as funções de poder e autoridade.

É preciso afirmar que o que está acontecendo hoje tem a ver com um movimento cultural e social mundial, que vem mostrando um protagonismo e um papel feminino diferente daquele que conhecíamos até poucos anos atrás. Ser apenas mãe, ou filha ou esposa ou ocupar-se de prendas domésticas já não corresponde à realidade atual das mulheres. As identidades femininas estão passando por uma mutação muito grande. Outro aspecto importante é o de perceber os limites da pergunta sobre em que Igreja nós mulheres queremos nos inserir ou reinserir. Dá até a impressão de que a Igreja é uma realidade fora de nós. Por isso, muitos afirmam que “nós somos Igreja” e querem viver na prática esta afirmação. Seria ela apenas retórica? A meu ver, sim e não. Sim, na medida em que o discurso de muitos não corresponde aos comportamentos vividos no cotidiano das relações humanas. Não, na medida em que se percebe o compromisso de muitos em buscar caminhos de maior participação e igualdade nas relações da comunidade eclesial. A questão da igualdade entre os seres humanos é insolúvel.

Falar em igualdade significa buscar, a cada novo contexto e a cada novo momento da história, sanar o egoísmo visceral que nos leva a preferir sempre nossos interesses em detrimento dos outros. Criamos a escravidão de todos os tipos, estabelecemos cores e etnias superiores umas às outras, sexos superiores a outros, orientações sexuais mais normais do que outras. E quem está do lado do poder e da normalidade não hesita em manter relações excludentes e culpabilizar “os diferentes” por muitos males do mundo. Não há uma pré-definição da igualdade. O que nós pensadoras feministas fazemos é alertar as pessoas para não estabelecerem modelos teóricos e idealistas e mostrá-los como metas absolutas a serem alcançadas. Isto não funciona. O que parece que tem surtido algum efeito é colocarmo-nos em estado de educação contínua, uma educação que desperte em nós o valor de cada ser, sem a tentação de querer justificar a partir de visões hierárquicas pré-estabelecidas.

Adital: O que é a Teologia Feminista? Como essa corrente de pensamento entende o mundo atual? Quais os desafios nesse início de século XXI?

IG: O grande esforço da maioria das teologias feministas tem sido o de denunciar o absolutismo das interpretações bíblicas e teológicas do passado e ainda vigentes na maioria das Igrejas. Interpretações absolutistas são aquelas que usam Deus e as Escrituras para justificarem sua ideologia de manutenção de poderes e privilégios religiosos, muitas vezes disfarçados com capas de santidade e solidariedade. Esses poderes são exercidos em nome de Deus e são controladores dos corpos femininos, tanto em nível individual quanto cultural e social. O controle religioso dos corpos se dá, em primeiro lugar, no interior da dimensão simbólica da vida simbólica, ou seja, na estrutura subjetiva, em que valores e culpas se entrelaçam e tornam a pessoa cativa de um imaginário imposto de fora para dentro. Jogar com a vontade de Deus para manipular corpos querendo manter uma ordem imaginária denominada divina é impedir o direito ao pensamento e à liberdade.

Afirmar Deus como masculino, afirmar que existe uma vontade poderosa pré-existente, justificar o sacerdócio masculino a partir do sexo de Jesus, valorizar o corpo masculino como o único capaz de representar o corpo de Deus são afirmações teológicas ainda vigentes que tocam, de forma especial, os corpos femininos. Estas afirmações são, muitas vezes, produtoras de violência, de exclusão e do cultivo de relações de submissão ingênua à autoridade religiosa. Infelizmente, nesse começo de século, o espaço dado às teologias feministas é bem restrito. Seu acesso aos centros de formação teológica oficial na América Latina é bastante limitado. Por isso, está havendo uma migração significativa dos lugares de produção teológica para fora das instituições oficiais, visto que as formas de controle eclesiástico parecem desconhecer os avanços vividos pelas mulheres em nível nacional e mundial.

Adital: O mundo ainda convive com os feminicídios (muitos dos quais acabam impunes), mutilações genitais, pouca participação feminina na política… Quais os principais obstáculos para a plena dignidade feminina hoje?

IG: A produção da violência cultural e social contra grupos considerados inferiores por razões as mais diversas é uma constante nas culturas humanas. A afirmação da superioridade de uns em relação aos outros, as hierarquias de raça, gênero, cultura, de saberes e poderes são parte da história humana. As mulheres foram e são, em muitas culturas, consideradas seres subalternos, dependentes, objetos da vontade masculina, muito embora, hoje, os discursos oficiais dos Estados e das religiões falem de igualdade na diferença. Muitos adeptos dos discursos igualitários são capazes se denunciarem, por exemplo, a mutilação genital, sem dúvida, uma aberração e um crime, mas não são capazes de perceberem a produção da violência contra os corpos femininos nos discursos de bondade veiculados pelas diferentes expressões do Cristianismo. Denunciam os assassinatos de mulheres, a violência física direta, os feminicídios, mas não percebem que a reprodução da violência contra as mulheres está ainda muito presente nos processos educacionais.

A marca hierárquica excludente, presente em nossas relações, sem dúvida, necessária à continuidade da atual forma de capitalismo, mantém socialmente essa violência. Precisa dela e de outras para continuar a fabricar novas formas de privilégio e exclusão social. As mulheres apesar das muitas conquistas dos últimos anos ainda são no imaginário da cultura capitalista econômica e social bons bodes ou cabras expiatórias para serem acusadas de incompetência nos assuntos públicos. Essa cultura excludente, presente nas instituições sociais e culturais, é, sem dúvida, obstáculo para que homens e mulheres construam novas relações e reconheçam seus diferentes dons e saberes.

Adital: Alguns movimentos feministas, de forma a obterem espaço, utilizam, como estratégia, chocar a sociedade, expondo o corpo nu, autodenominar-se de “vadias”… Como você entende essa forma de protesto? É válida, válida com ressalvas ou colabora negativamente com o movimento feminista?

IG: Há uma ingenuidade dos analistas dos movimentos sociais na medida em que pretendem limitar os protestos e reivindicações às suas próprias concepções de decência, do permitido e do proibido. É claro que nos chocamos com a quebradeira dos grupos nas manifestações de rua e reclamamos quando isso atrapalha a nossa vida cotidiana. É claro que o diálogo sobre as reivindicações seria o melhor caminho. Mas nem sempre o sistema capitalista reconhece o melhor caminho e ele mesmo incita à violência sem controle, aquela que deixa sair o pior de nós contra os outros, aquela que é capaz de bombardear campos de arroz e destruir obras de arte milenares, aquela que me leva a roubar meu melhor amigo e mandar matar aquele que atrapalha meus planos políticos. Muitas formas radicais de protesto das mulheres chocam-nos porque não estamos habituados a um comportamento público das mulheres, sobretudo quando expõem o corpo nu como forma de protesto.

O corpo nu das mulheres continua sendo exposto para vender mercadorias masculinas, para excitar desejos, mas esse nu é suportável pela maioria. Esse nu aprovado pelo mercado dá dinheiro e favorece empreendimentos econômicos, pode ser no máximo criticado por alguns religiosos puristas. Entretanto, quem se perguntou por que esse grupo de mulheres se autodenominou de “vadias”? Qual a sua história? Do que reclamam com sua irreverência? O Google pode até dar uma resposta breve a essas pertinentes perguntas. Essas formas de protesto, penso, não atingem o movimento feminista mundial, visto que este é plural e tem formas variadas de expressão.

Adital: Durante as últimas eleições brasileiras, alguns analistas políticos afirmaram que uma das razões enfrentadas por Dilma Rousseff para sua reeleição deveu-se ao fato dela ser mulher. A afirmação soa um pouco estranha, haja vista a presença de mulheres na Presidência de países como Argentina, Chile, Alemanha… Na sua opinião, essa afirmação faz sentido? Nós, brasileiros, ainda somos um país machista?

IG: Creio que, na maioria dos países do mundo, mesmo as figuras femininas tradicionais fortes como Margaret Tachter e Indira Gandhi viveram os limites do poder impostos pela condição feminina. De fato, há um certo susto de se ter uma mulher no topo do poder de uma nação. De reclusa nos limites da vida privada para a ascensão pública o percurso é grande demais. Talvez o título de rainha seja até mais suportável porque envolvido com todos os aspectos fantasiosos do passado e da atual diminuição real desse poder. Nesse sentido, é quase espontâneo se atribuir ao governo de uma mulher deficiências, fraquezas e outras coisas no estilo.

Dilma Rousseff enfrenta, como outras mulheres, as dificuldades de estar no topo político da nação. Entretanto, o que a maioria das pessoas não vê é que a política de um país não depende apenas da/do presidente, mas depende, igualmente, das forças econômicas e políticas em jogo, assim como da participação dos cidadãos. Combinar políticas e propinas, interesses corporativos e bem comum, partidos de interesses sectários com a administração de um país de proporções continentais é um difícil jogo de xadrez. De fato, o machismo persiste no Brasil, mas a falta de caráter e de visão do bem comum é uma doença bem mais difundida e perigosa. Assola políticos e empresários, contagia a classe média e as classes populares, se instala nas instituições sociais e nas igrejas como praga a ser combatida diariamente.

Adital: No fim do ano passado, assistimos à infeliz declaração de um parlamentar brasileiro, que afirmou que “não estupraria” uma colega parlamentar “porque não queria”. Como você analisa esse e outros casos parecidos?

IG: A falta de caráter e de visão do bem comum torna homens e mulheres cegos a qualquer visão humanista de respeito a cada ser humano na igualdade e diferença de uns em relação aos outros. O parlamentar brasileiro que usou essa e outras expressões durante sessões da Câmara mantém-se no poder porque a cultura política brasileira permite. Ele é útil ao’ vale tudo’, que se pode assistir nas ações e discursos dos políticos. A falta de decorro parlamentar é moeda de troca de privilégios políticos e satisfaz aqueles que buscam a justiça e a injustiça com as próprias mãos. Nessa situação, as mulheres não estão isentas desses pecados, embora os cometam com menor intensidade pública. Somos todas e todos essa mistura contraditória e paradoxal e é dentro dela que podemos encontrar caminhos que tornem a vida cidadã mais respeitada.

Obs: Fonte – ADITAL
A autora é  escritora, filósofa e teóloga.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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