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(Retalhos do Quotidiano)
Meditação a partir da leitura de João Batista METZ, Sobre a Teologia do Mundo
A mística cristã é a experiência pessoal e profunda da incessante busca da face pessoal de Deus, em Sua sentida ausência. É experiência gozosa e trágica, dilacerante, experiência de morte. “Morro porque não morro”, dizia Santa Tereza d’Ávila. É saudade, dizia a velhinha que aguardava a celebração da Eucaristia do Domingo de Páscoa, no mosteiro carmelita de Santos, SP: “A senhora deve estar cheia de alegria nesta data”, dizia-lhe alguém; e ela respondia baixinho: “Sim, minha filha, mas com uma pontinha de tristeza”. “Como, se hoje é Páscoa?” retrucava a moça.: “É que eu estou com uma imensa saudade d’Ele”, respondia. É assim mesmo, a mística é corrida apaixonada na direção daquele horizonte que se dá todo em suas maravilhosas cores, exatamente enquanto de nós se afasta – o “Deus sempre maior”, sempre adiante como a “coluna de fogo”, o Deus do Êxodo, da caminhada, nômade, sem morada permanente, passando na profundidade das próprias raízes de nós. Essa mística é necessariamente experimentada na ascese. Não são dois exercícios separados, mas duas dimensões que se dão uma na outra, assim como nos ensina São João, os dois amores se dão um no outro: “Quem ama nasceu de Deus e conhece a Deus; quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” ( 4, 7-8) (….). A experiência de Deus fugindo de nós se nos dá em nossa experiência de “fuga do mundo”. Mas o que é, na vida cristã a “fuga do mundo”?
“Fuga” não pode se colocar-se ao lado do mundo, cedendo à ilusão de criar-se outro “mundo”. Nessa ilusão, o que acontece de fato é a fixação num espaço ou num tempo do mundo. Se imaginamos habitar à margem do mundo, na verdade, refugiamo-nos em nós, pois inevitavelmente o mundo vem conosco, somos essencialmente parte dele e ele está em nós. Aliás, tentar viver essa ilusão é desesperar da graça. Pois é acomodar-se, finalmente, a perpetuar a condição atual de pecado do mundo. Quando olhamos para o monaquismo, por exemplo, como ele se desenha hoje, temos a impressão de algo “mundano”, quase pagão, conformista, fechado em si mesmo, “espaço de fuga” que termina por representar uma força de conservação e “canonização” sacralizante do estado atual do mundo. Quase já não se vê autêntica “fuga do mundo” dos grandes Pais a criar um “novo mundo” (pensemos nos Pais do Deserto, protesto vivo contra uma Igreja que “amolecia” e se amoldava à sociedade imperial; em São Bento, a criar autênticas “comunidades de base” e cooperativas de camponeses livres em pleno sistema feudal). No que vemos hoje, já não há quase nada da antiga “fuga mundi” o que vemos é muito mais “fuga de Deus” e de Sua Palavra que sempre julga o mundo e seu presente, o sistema estabelecido. Já quase não se veem monges e monjas a exorcizar os demônios corruptores deste mundo…
A “fuga do mundo”, na vida cristã, se funda na Promessa. Por força da Promessa, Deus julga o presente e nos liberta dele, potencia assim nossa liberdade em vista do futuro. A fuga não é espacial, mas temporal, é encarnação viva da Profecia, julgamento do presente e confiante anúncio do futuro. Não é fuga para fora, já que “fora” é pura ilusão, é fuga para adiante. Quem se liberta por força da Promessa e do Julgamento que Deus faz da situação atual do mundo, se projeta em fuga para o futuro, a saber, assume responsabilidade pelo mundo, pelo sonho de Deus a transformar-se em dinamismo da ação. É então que atualiza em si o gesto do próprio Deus: “Tanto amou o mundo que lhe deu Seu Filho único” (Jo 3, 16). A fuga na esperança, que equivale a vivo protesto e ruptura com o “status quo”, não se faz por desprezo. Mas por amor ao mundo, obra de Deus. A renúncia, a ascese cristã não vem motivada por desprezo, mas justamente por amor.
Há radical diferença entre amar o mundo e gozar do mundo. O amor ao mundo leva à renúncia e, se preciso, até à morte. A renúncia é “mortificação”, isto é, pequena quota de morte a cada dia, por amor. Quando a preocupação e o desejo sãoé apenas de gozar do mundo, significa que se tem o mundo em tão pouca monta que por ele não vale a pena sacrificar-se, muito menos entregar a própria vida. É ir completamente na contramão do caminho de Jesus: “Quem quiser salvar (agarrar-se) a própria vida, a perderá, mas quem perder (entregar) a própria vida por causa de Mim e do Evangelho a salvará” (Mc 8, 35).
A perspectiva da morte, como limite de toda esperança, é exercício ascético por excelência: ser cristão(ã) é chegar a ser de tal modo livre – e a liberdade se edifica pelo dom de si – que chegue ao ponto de se sentir livre da necessidade de sobreviver, ao sentir que morrer é a suprema afirmação da esperança e do amor ao mundo, obra de Deus. A aceitação da morte, natural ou mediante o testemunho de martírio, deve ser a corajosa e viva afirmação de que realmente se crê na Promessa de um novo futuro para o mundo. A certeza dessa Promessa é tão clara e luminosa que a morte vem a ser assumida como sua afirmação mais forte: entrega-se a vida sem medo nem hesitação porquê se tem a certeza de recuperá-la. A declaração do Arcebispo Oscar Romero permanece ecoando a nossos ouvidos em todo o Continente: “Se me matam, ressuscitarei na luta do povo de El Salvador”.
No martírio, o testemunho se faz transparente: desprendendo-se da própria vida, o mártir afirma claramente que crê e espera num mundo restaurado pelo amor. E está tão seguro disto que vale a pena entregar-se à morte. Crer na ressurreição não é só um motivo de consolo pessoal, mas uma afirmação radical de fé em relação ao futuro do mundo, a última e suprema afirmação que se faz a respeito da criação (cf. 2Mc 7, 26-29). É por isso que a ascese só tem sentido como preparação do corpo para a ressurreição. E o “corpo” não pode ser entendido, nem do ponto de vista da fé cristã nem da simples Antropologia, de maneira individualista, é o mundo se preparando para a ressurreição, mediante o processo da liberdade encarnada no dom di si, é a perspectiva do livro de Apocalipse.
16 Maio 1974 (publicado agora com leves modificações)
Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….
Imagem enviada pelo autor.