(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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O Papa fechou a Porta Santa e encerrou o ano da misericórdia. Mas, ao mesmo tempo, escreveu a carta apostólica Misericordia et miseranda, que mostra que esta atitude deve ser o centro da vida de todo cristão. Comentarei detalhes importantes da carta na próxima crônica. Nesta resgato as raízes da centralidade da misericórdia para a vida.
A alguns pode deixar perplexos a misericórdia ser o maior desejo de Deus e não o sacrifício. Pois não nos ensinaram sempre que é importante fazer sacrifícios, porque esses agradam a Deus? Os da minha geração certamente perderam a conta de quantas tabelinhas de ramalhetes espirituais preencheram, em folhinhas parecidas com as do jogo de batalha naval, dando conta de quantos sacrifícios haviam sido feitos naquele mês. E esses sacrifícios consistiam em privar-se de balas, ou rezar ajoelhada no chão frio durante bastante tempo, ou passar um mês sem comer chocolates. Tudo isso para agradar a Deus. E agora nos dizem que ele não quer sacrifícios e sim misericórdia? Como assim?
Porque sabe disso, Jesus insiste. Sabe que não é espontânea em nós a prática da misericórdia. Não é natural nossa inclinação para olhar o outro sem julgá-lo, sem segregá-lo, sem classificá-lo com rótulos ou compartimentos que sigam nossos padrões. Pelo contrário, é costume nosso olhá-lo de cima. Pobre dele ou dela se não tem fé como nós, nem faz sacrifícios diários e miúdos que acumulamos, acreditando assim economizar para uma eternidade mais confortável ou mais brilhante.
Ganhar a salvação aplicando na poupança do sacrifício parece que não agrada a Deus. Pelo menos é isso que diz seu Filho Jesus, o único que O conhece verdadeiramente. E para reforçar ainda mais sua afirmação, Jesus o diz após ver seu poder questionado por ocasião da cura de um paralítico, depois de chamar para segui-lo um publicano malvisto entre o povo por ser desonesto e ladrão, após ser criticado por comer com publicanos e pecadores.
Impressionante contexto em que muitos de nós poderíamos identificar-nos facilmente com os críticos de Jesus. Esclarecedora situação em que estaríamos certamente entre os que julgam sem cessar o próximo e por isso têm muito que aprender em termos das preferências de Deus. Ele não se compraz com nossos sacrifícios, oferendas e rituais, com os quais pensamos comprar sua benevolência. Mas – pasmem! – deseja a misericórdia incessante e permanente, uma atitude de vida que nos faça aproximar-nos do outro com as entranhas carregadas de carinho, ternura e abertura total. Mesmo que o outro não seja puro, nem justo, nem imaculado, segundo os cânones oficiais.
Este é o aprendizado que somos convidados a encetar hoje e sempre.
Não podemos acreditar-nos mestres da pureza e doutores da ascese, exibindo em praça pública quão grande é o nosso espírito de penitência e sacrifício. Estamos sendo carinhosamente chamados pelo Senhor, em convite reforçado pelas palavras de Francisco, a sermos discípulos da misericórdia, procurando humildemente aprender a fazer dela nosso estilo de vida.
Em tudo a misericórdia deve perpassar-nos de alto a baixo. Deve inspirar nossas palavras, fazendo-nos “sair dos círculos viciosos das condenações e vinganças, que continuam a encadear indivíduos e nações”, tal como disse o Papa. A palavra do cristão, reiterou ele, “propõe-se fazer crescer a comunhão”. Portanto, logicamente não pode ser de juízo e condenação sobre o outro.
A misericórdia deve guiar nossos gestos. Estender a mão ao diferente, ouvir o angustiado, erguer o caído sem condená-lo, procurar colocar-se no lugar do outro para entender sua perspectiva e aprender com ela.
O próprio Papa deu o exemplo ao encontrar-se em Cuba com o patriarca Kirill, da Igreja Ortodoxa russa, em fevereiro passado. Um gesto concreto que pôs fim a uma separação entre cristãos que já dura mais de mil anos.
Tudo isso é um delicado aprendizado. Para tanto, necessitamos de disciplina. E do tempo propício para aprender do próprio Deus, que quer misericórdia e não sacrifício, que é misericórdia em Si mesmo. Ao longo de toda a Escritura, nós podemos ver e ouvir esse Deus desviando o rosto das gordas oferendas rituais a Ele feitas com o coração carregado de dureza e intransigência, com a vida pontilhada de cupidez e avareza. Não é possível agradá-lo assim. Pois o que Ele quer é misericórdia.
Deus é Aquele que recebe o filho que se foi com festa nunca antes vista naquela casa; que deixa para trás as noventa e nove ovelhas fiéis e sadias para buscar a que se perdeu nos espinhos do caminho por não seguir a voz do pastor. Em Jesus, encarnação de sua misericórdia, Deus acolhe a adúltera sem uma palavra de condenação; aceita com gratidão a homenagem do amor da pecadora pública que entra no banquete do fariseu e banha com lágrimas e perfume seus pés cansados da poeira da estrada; cura doentes, toca leprosos, abraça crianças, liberta os pobres, faz os cegos verem, os surdos ouvirem e os coxos andarem. Olhando para Ele aprenderemos que a misericórdia é maior que o sacrifício.
Obs: A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão” (Edusc)
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