Não direi que chorei. Não cheguei a tanto. Mas, me emocionei, apesar de já estar preparado para o desenlace desde o inicio do dia, ao calçá-lo, no começo da amanhã. Foi aí que observei que o couro, em determinados locais, estava praticamente fino, marcado por profundas rugas, aptas, a qualquer momento, a se abrir. E se abrindo, mostraria as vísceras da meia. A solução foi imediatamente pensada: a inatividade. Mas, não naquele dia, especificamente naquele dia, porque não havia outro, a meu dispor, para substituí-lo. Foi o que aconteceu: à noite mesmo, juntei o par e fui até o banheiro. Na cesta de lixo, com algumas palavras de agradecimento, me despedi. Agora, companheiros, sigo sozinho, com outro par. Vocês ficam aqui, porque sua missão está finda. Não há mais estrada para os dois. Os sapatos, assim, foram colocados na cesta do lixo, num hotel em Garanhuns, lado a lado, para que a inatividade jamais os separassem. Foi o breve discurso, suficiente para homenagear um par de sapato que muito me serviu, me acompanhou durante quase dez anos, ou mais, no expediente diário e em diversas e diversas solenidades, sapato escalado, portanto, para a minha vida profissional. Acredito que, nas centenas de vezes que o tenha calçado, estava invariavelmente entronado num terno, o que bem demonstra o alto grau que lhe conferi, a ponto de se tornar um acessório do terno ou o terno dele ser acessório, não posso, agora, sob o impacto da emoção da despedida, afirmar se o sapato era superior ao terno ou o terno ao sapato, discussão que, depois, com vagar, hei de enfrentar. De qualquer forma, a verdade de não ter sido apenas o seu papel de mero companheiro nos meus deslocamentos diários. Foi mais que isso: um soldado a meu serviço.
Nesse aspecto se distanciava de outros sapatos: na sua missão. Ou seja, não era um sapato comum, de ser usado em feira, ou durante o percurso de uma viagem, ou, numa ocorrência social, como lançamento de livro, enterro em dia de calor, passeio no shopping, ida a uma academia de ginástica, buscar os meninos na escola. Nada disso. Ao par de sapato foi dado a missão de me acompanhar no expediente diário, circunstância que lhe conferia, ante os outros, uma patente elevada, como se fosse, até, um acessório da minha vida de juiz, como, de fato, foi, até ter dado tudo de si, na abertura de rugas na parte superior, dada a minha mania, não corrigida ainda, de, ao sentar, dar uma dobrada no sapato, o que, aos poucos, vai criando no seu couro as inevitáveis rugas, passo para a sua duração de sua vida ser encurtada. Como foi.
Tudo muito bem relatado. O par de sapato ficou na cesta de lixo do banheiro, ocupando um espaço reservado ao papel higiênico e similares, a cesta transformada em caixão, a fim de que, depois, ser conduzido ao lixeiro, sem cerimônia alguma. Na manhã do dia seguinte, viajei. Mas, estranhamente, dias depois, ao calçar o novo par, do anterior não me lembrei mais. (08.10.2012)
Obs: Publicado no Diario de Pernambuco
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras.