O maestro desceu do táxi, olhou para o cartaz da fachada do teatro e, em seguida, observou que não havia veículo algum no estacionamento e, sem se conter, saiu caminhando. Os braços em descompassados movimentos indicavam o estado de tensão que naquele momento o dominava. Ao chegar à porta principal a encontrou fechada: ´Não, não acredito no que estou vendo! Estão muito enganados se pensam que vou adiar o ensaio?´ E, seguiu pela lateral do teatro até encontrar a primeira porta onde bateu com a aldrava repetidas vezes mas ninguém atendeu, então bradou:
-´Tem alguém aí? Que diabo aconteceu? Vigia, vigia!`
Ao retornar à porta da frente, ouviu um barulho seguido de uma voz:
– Já vai… Já vai… E, o porteiro esfregando os olhos apareceu:
– Ah! É o sinhô? Bom dia, maestro?
– Não está me vendo? Por que esta porta ainda está fechada?
– Doutor, ela estava aberta. Fechei agorinha mesmo. Me apertei e, quando fui lá dentro o sinhô chegou.
– Onde estão os músicos?
– Sei dizer não sinhô.
– Alguém ligou?
– Não sinhô.
– Qualquer dia deste largo tudo, eles que arranjem outro maestro. Não suporto mais gente irresponsável. Parece que ninguém tem compromisso com nada? Tem certeza que não escutou o telefone tocar?
– Tenho. Se tivesse eu tinha escutado.
– Como, se estava dormindo?
– Ah doutor! Dormindo tava não.
– E essa cara de sono?
– Posso ter cochilado durante a noite, mas desde as seis estou acordado. Ontem foi um dia de cão pra mim. Meu filho ficou doente e tive de levá-lo para o hospital. Quando cheguei lá, me chamaram para render o vigia. Aí deixei o menino com a mãe dele no hospital e vim direto pra aqui. Sei que errei deixando sozinho com a mãe, mas o medo de perder o emprego me fez agir desse jeito. Por isso estou de plantão.
– Você fez certo, me desculpe.
– Precisa desculpar não.
– Precisa sim, quem tem responsabilidade merece consideração. Como é mesmo o seu nome?
– Diocleciano da Anunciação.
– Fique grudado na porta, se aparecer alguém diga que eu já estou na área. Que cheguei e não estou nada satisfeito com esse atraso.
– Sim, senhor.
Nos bastidores do palco Marco notou que os instrumentos musicais também não haviam chegado e irritou-se ainda mais: ´Do jeito que me sinto não respondo por mim. Ah! Alguém vai ser punido. Ora se vai!` Para ele toda profissão deveria ser exercida com cuidado para minimizar erros. Por isso, tudo o que fazia, analisava aos mínimos detalhes.
Essa era uma atitude herdada da infância. Ainda garoto recebia educação como se fora um adulto. Os pais queriam prepará-lo para o mundo o mais cedo possível. Com dez anos o internaram num colégio profissionalizante. Desejavam que além do ensino básico também dominasse uma ou mais profissões das sete que o educandário oferecia. Acostumado a obedecer, interessava-se por tudo. O boletim de notas foi o melhor registrado no colégio, até então. E logo depois surgiram as descriminações: hostilidades de censores, de colegas e até de alguns professores. A reação dele foi dedicar-se cada vez mais aos estudos. Nas horas vagas, sentado no parapeito da janela e, atiçado pelo clarear dos relâmpagos, pelo som dos trovões, pelo vento, pela chuva seus companheiros de solidão, lembrava-se de quando via os meninos da sua rua a correr e a pular aproveitando aquele momento. Para sair da nostalgia contava os dias para entrar de férias. Férias de fim de ano, férias de verão e se imaginava solto, livre como aqueles que ali brincavam num vai e vem sem fim. Acompanhar o pai aos ensaios no conservatório de música ou visitar parentes nos fins de semana eram as distrações permitidas.
Num dos seus aniversários recebeu uma carteira com um cartão onde o seu pai escrevera: “Vitórias, apenas vitórias interessam. O vitorioso não é o bom, nem o excelente, é o inigualável. Para chegar a isso tem que se empenhar, dar de si o máximo. Quem age dessa forma torna-se imbatível. O mundo lá fora não é o que você vê em casa. Às vezes a chance de se alcançar os louros é única. Não deixe passar a oportunidade de conquistá-los.”
O comportamento do pai teve início com a falência do avô que vivia do comércio. A preocupação com o perder tornara-se obsessiva. Ninguém se atrevia a perguntar o motivo de tanta correria atrás de dinheiro e poder. Aumentar o patrimônio cegava a razão e a necessidade de mantê-lo Com isso chegaram a se questionar: “adquirir mais bens ou deixar de viver para mantê-los?” Decidiram “curtir a vida”. Entretanto, os ditos amigos notando a escassez do mel, saíram um a um em busca de nova colméia. Marco vendo o que se passava, questionava-se: “Se a herança tivesse sido outra, pai agiria diferente, seria menos controlador? Isto me parece impossível, mas até que gostaria de ter vivido aquela experiência.”
No ano em que se iniciaram as aulas de música, no internato, submeteu-se a um teste para tocar na banda marcial. O instrumento escolhido foi o trompete que se tornou companheiro inseparável. Num ritual sistemático, limpava para tocar, para guardar e até mesmo quando o manuseava para mostrá-lo a alguém. A partir daí, as tensões atenuadas pela música foram se reduzindo afastando-o da solidão. Em pouco tempo se fez notar pelos acordes que conseguia criar. Dia a dia se interessava mais por música. Até os colegas que o descriminavam queriam aproximação, queriam escutá-lo tocar e improvisar solos. No último ano de internato o convidaram para ser o regente da banda marcial. E, quando compôs o hino do colégio e o da banda as regalias se tornaram freqüentes. Ganhou prêmios e simpatia de todos.
Terminado o ensino médio, voltou para casa. Trazia consigo um trompete, que ganhara de premio quando a banda do colégio foi considerada a melhor do estado naquele ano, bem como, dois objetivos: queria ser maestro e estudar fora do país.
Os pais a princípio foram contra, entretanto sem conseguir dissuadi-lo, cederam. A mãe considerava uma ingratidão o filho ir para tão longe quando podia ficar no país. O pai, que sempre exigia mais, dessa vez agiu diferente, colocou a mão sobre o ombro do filho e o lembrou da história do irmão, o tio que também se chamava Marco e que era apaixonado por música. Saia do emprego carregando o violino debaixo do braço. Ia direto para um restaurante e passava a noite, às vezes até dias, tocando e bebendo sem ir para casa ou ao emprego. A família ignorava seu paradeiro. Muitas vezes até onde ele trabalhava ia para saber se havia alguma notícia. Ao retornar das farras chegava doente, sem dinheiro. A família sem recursos pouco podia fazer para recuperá-lo. Quando recobrava as forças voltava ao trabalho. Dias depois nova farra, nova ausência. “Não o eduquei para isto, meu filho. Veja se é mesmo isso o que você quer.” Sem perder a calma Marco respondia: “Eu ainda tenho o cartão que o senhor me deu com a carteira de presente naquele último aniversário antes de ir estudar no colégio do interior, lembra-se? Por todos estes anos que estive fora de casa procurei fazer o melhor conforme o que me ensinaram. Nunca fui contra aprender seja lá o que fosse. No internato, descobri na música a alegria de viver. Não me pressionem. Sei cuidar dos meus interesses. Estudei o máximo que pude e vi que não é o suficiente para mim. Quero mais. Ficar longe de vocês não significa que irei esquecê-los. Deixem-me livre para decidir a minha vida. Já sou adulto.”
Meses depois, já no conservatório, experimentou uma nova forma de vida. A tranqüilidade associada à disciplina e a determinação adquirida, contribuíram para ser notado e destacado dos demais. A crítica local o anunciava como um novo potencial da música erudita. Tornou-se querido e admirado pelos mestres e colegas e, ao findar o curso, recebeu convite para assumir o comando da orquestra sinfônica de uma cidade próxima de onde estudava. Ali permaneceu por dois anos quando houve necessidade de renovar o quadro de músicos.
O critério usado nas entrevistas com os candidatos foi por muitas vezes questionado pelos coordenadores mais antigos. Músicos experientes foram rejeitados, alguns solistas substituídos, alterações que chamavam a atenção da crítica local: uns elogiavam, outros criticavam. Ele continuava firme e seguro das suas decisões. Em algumas das suas justificativas, dizia: Talentos todos têm, alguns têm algo a mais, têm futuro, outros somente eu sei, confiem em mim. Daí vinha conflitos, abafados muitas vezes devido ao seu conhecimento musical. A diretoria por muitas vezes, para não perdê-lo, acatava suas decisões. Mesmo assim quando menos se esperava ele deixava a direção da orquestra e ia para outro país.
Após dez anos pela Europa voltou ao Brasil. O convite para a regência de uma orquestra sinfônica municipal de uma cidade próxima de onde morava, tornou-se irrecusável. Regalias e um bom salário faziam parte das condições impostas. Todos os dias, numa mesma hora, entrava religiosamente no teatro pela porta principal. Na ala acústica por ele projetada permanecia até o escurecer remontando partituras, compondo, entrevistando músicos, etc. Vivia respirando musica.