Vladimir Souza Carvalho 1 de novembro de 2016

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Os sinais da trovoada começaram muito antes. O desinteresse pela leitura, a boca que não sabia mais perguntar, a indiferença pelo que se passava ao seu redor –  ela que era tão curiosa -, , o olhar perdido no nada. A tentativa de fazê-la escrever em caderno seu nome e o dos seus não surtiu efeito. O dela saia errado. Os raios aumentaram, provocando-lhe uma queda. Daí, as pernas não conseguiram se manter firme para o deambular diário. Ainda teve consciência para recusar a cadeira de rodas. Depois, foi a voz que desapareceu, braços e pés ficando rígidos, o movimento limitado aos olhos e a boca, para o regurgitar quando o organismo repelia, e, também, para manifestar a dor e para a tosse que tanto lhe maltratava. Passou a ser um toco de gente, da cama para a cadeira, nos braços dos que lhe amparavam, o banho dado por terceiros, nela, tão antiga, sem puder mais guardar sua nudez.

Era o início do fim. E foi. Desenlace lento e vagaroso, porque se esbarrava na tranquilidade de seus gestos, na falta de pressa, na perfeição que procurava dar a tudo que fazia, na dieta rigorosa que sempre teve.  Às vezes, acho que era uma forma de prevenir a todos que ia partir, que precisava ficar mais para alertar de sua viagem, para não surpreender ninguém quando tivesse de dar o adeus definitivo, como deu, fazendo o corpo recusar o  oxigênio, aproveitando o início da manhã,  momento ideal para embarcar em direção ao mundo distante e desconhecido, onde os seus – que se anteciparam – já estavam alinhados a sua espera. Fez, então, o coração parar, como se dissesse que sua missão terminara, o momento da partida despontava, voando a alma para outras plagas, deixando apenas o fragmentado corpo para repousar ao lado dos restos mortais de papai. Não havia mais nada a fazer. Seu livro não dispunha mais de páginas para se escrever algum ato ou fato. O momento era aquele. E foi. Se foi.

A morte trouxe-lhe de volta a serenidade do seu rosto. Da sua trajetória, ficaram as sementes plantadas que germinaram, estendendo as raízes via de filhos, netos e bisnetos, que, pelos séculos afora, lhe darão continuidade, porque os filhos ressaltarão sua conduta de mãe para os seus netos, e estes para os que ainda hão de brotar, de forma que, sempre lá para trás, no baú da história familiar, o seu nome permanecerá coberto de estrelas, como exemplo a ser admirado, mulher e mãe que, no recinto de seu tugúrio, distribuiu amor e atuou sempre como um gigante.

Hoje é saudade, só saudade que traz à lembrança os idos vividos, a conduta ativa, o amor aos seus, saudade que não se evita, que invade o coração, que se apossa da mente, que comanda o pensamento, que mistura lágrimas com sorriso, a queimar suavemente. E, eu, minha mãe, que aprendi tanto com você, desde as primeiras letras, voltei, no dia 21 de maio, a vê-la num bonito vestido, você que, nos últimos seis anos, só trajava pijama e roupas outras de dormir, porque era assim, bem arrumada e elegante, que você deveria fazer sua última viagem – Correio de Sergipe, 06 de junho de 2015.

Obs: Publicado no Correio de Sergipe (em 06 de junho de 2015))
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras. 

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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