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Introdução: horizontes diversos

O tema que me foi pedido parece, à primeira vista, querer relacionar dois pólos que nenhuma conexão mútua realmente apresentam. Primeiramente pela distância temporal entre o século XVI e o início do século XXI. Em seguida pela diversidade cultural  entre  a  mentalidade  católica  européia  de  então  e  a  consciência  planetária hodierna no que diz respeito às religiões. A convicção tranqüila de ter a verdade e a possibilidade única de salvação, já que a ausência do batismo incapacitava os pagãos a serem cidadãos do céu, refletia-se nos desejos e nos sonhos do cavaleiro de Cristo de ir para terras não cristãs para proclamar o Evangelho e converter seus habitantes para o cristianismo. Nada mais natural e condizente com a consciência histórica de seu tempo.

O horizonte teológico no qual se situa a temática atual do diálogo inter-religioso representa toda uma longa evolução histórica de cunho não só religioso, mas também social, político, cultural, acelerada pela rapidez de locomoção em nossos dias e pela irrupção  dos  modernos  meios  de comunicação,  fatores  que  tornam  os  habitantes  do planeta muito próximos uns dos outros. A gravidade dos problemas sociais, a ameaça sempre presente de uma guerra que pode fugir a qualquer controle, o distanciamento econômico escandaloso e sempre crescente entre países ricos e pobres, a reação étnica, cultural  e  religiosa  a  uma  globalização  que  pretende  tudo  nivelar,  o  materialismo hedonista característico da atual cultura, a busca de referências consistentes numa sociedade  do  descartável  e  da  curtição,  são  alguns  fatores  que  levaram  as  grandes religiões a se conhecerem melhor, a se respeitarem, a se enriquecerem mutuamente e a dialogarem entre si em vista da paz e da justiça no mundo.

Como podemos verificar, estamos longe do contexto sociocultural e religioso da Europa do século XVI, que iniciava suas viagens transoceânicas e suas descobertas de outras terras, ainda surpresa com os novos povos, culturas e religiões. Contudo S. Inácio, mesmo apresentando uma espiritualidade de raízes medievais, pela educação religiosa que recebeu, pelas leituras decisivas da Vita Christi e do Flos Sanctorum, possui características  da  modernidade  nascente  no  apreço  à  disciplina,  ao  planejamento,  à pessoa como individuo, ao uso dos meios, ao conhecimento requerido para uma tomada de decisão. Nesta perspectiva se compreende sua insistência na abolição do coro para a reza das horas canônicas, sua preocupação com a formação cultural dos jesuítas, seu receio de fixar a atividade da nova Ordem com demasiadas normas e regras, para só citar alguns traços de sua modernidade.

Uma conclusão modesta

A atividade missionária da jovem Companhia de Jesus recolherá estas características inacianas e as concretizará criativamente em terras asiáticas, americanas e africanas. O que hoje conhecemos como inculturação da fé já foi percebido e realizado incoativamente por muitos missionários jesuítas, os quais de modo algum se limitam a um Mateus Ricci, a um Roberto de Nobili, ou a um José de Anchieta. Seu objetivo de anunciar o Evangelho salvífico numa linguagem que pudesse ser entendida por seu auditório levou-os, muitas vezes, a procurar conhecer melhor as religiões que encontravam, sabendo respeitá-las e procurando salvar o que nelas não se opunha diretamente às verdades cristãs. Uma postura que não concretiza perfeitamente o que hoje entendemos por diálogo inter-religioso, mas que representa já um grande passo nesta direção.  Aqui sim poderíamos vislumbrar uma ligação,  embora indireta, entre Santo Inácio e o diálogo inter-religioso.

Sem dúvida uma conclusão decepcionante para o leitor que foi mordido pelo título deste artigo. Será que nada mais temos a dizer? Não creio. Pois até aqui exploramos apenas o horizonte sociocultural onde estava imerso o santo, mostrando-o sensível e acolhedor de uma modernidade que nascia. Falta-nos, todavia abordar, o que sem dúvida é bem mais importante, seu horizonte espiritual e teológico. E aqui estaremos mais bem servidos, como veremos.

Uma nova perspectiva a partir da experiência de Deus

Fundamental para se compreender a pessoa e a obra deste soldado basco é, sem dúvida, sua experiência de Deus. Uma experiência que não se limitou a alguns meses de convalescência no castelo de Loyola, mas que o acompanhou na gruta de Manresa, em suas viagens e em seus primeiros intentos de apostolado. Pois a ação salvífica de Deus atinge o ser humano no que ele tem de mais íntimo, no centro mesmo de sua pessoa, repercutindo-se nas várias dimensões de sua realidade humana. Como diz a Sagrada Escritura, Deus fala ao coração do homem e da mulher. Como não temos um acesso direto ao centro de nossa pessoa, cuja realidade se torna visível e acessível através das nossas faculdades, da nossa afetividade, dos nossos desejos e inspirações, dos nossos atos e opções, não nos resulta nada fácil captarmos esta ação divina de uma só vez e com toda nitidez e transparência que gostaríamos.

Além disso, a experiência de Deus, como toda experiência realizada pelo ser humano, é captada como tal através de uma interpretação, por mais simples que seja. Se ela é realmente uma experiência humana, goza então de certa luminosidade, de certa racionalidade, que a distingue de um choque meramente físico ou de uma sensação meramente animal. Toda experiência humana é, assim, sempre uma experiência interpretada. E nem sempre acertamos na compreensão adequada da mesma. A mesma experiência pode receber leituras múltiplas, que podem se opor, mas que também podem ser apenas diversas, completando-se umas as outras, e revelando deste modo a riqueza e a verdade da experiência realizada.

Deste modo podemos dizer que a experiência da ação salvífica de Deus pode se estender no tempo, constituindo uma história, apresentando momentos qualitativos preciosos, recebendo sucessivas interpretações que se corrigem e se completam, relacionando-se mais amplamente com novas realidades, questionando algumas, solucionando outras, confirmando-se a si própria em face dos novos desafios. Um olhar sobre os anos de conversão de Inácio de Loyola, considerados sob este prisma, confirma o que dissemos. As luzes e as sombras, as consolações e as desolações, as certezas e as dúvidas, as leituras corretas e as falsas, os fervores e as tentações, os momentos de alegria e de desânimo, tudo isto constitui o palco onde se desenrolou, se plasmou e se fortaleceu sua experiência de Deus. Desde a agitação dos bons e maus espíritos que surpreendia o soldado convalescente, passando pelas reações nem sempre corretas na gruta de Manresa, pela grande iluminação do Cardoner, pelo que aprendia de seus confessores e das conversas espirituais com seus retirantes, até o confronto com as questões surgidas da ordem religiosa recém fundada, como comprovamos de seu diário espiritual, todos estes elementos constituem a experiência de Deus própria de Inácio.

Experiência e expressão

Como toda experiência humana acontece sempre no interior de um horizonte sociocultural, que lhe fornece a linguagem pela qual se constitui e se exprime, assim também a experiência de Deus. Ela não pode prescindir de seu contexto, sob pena de perder sua identidade e não poder ser reconhecida como tal. Em todas elas, mesmo nas da mística mais elevada, a linguagem do tempo e do lugar está presente. A história da espiritualidade cristã confirma o que afirmamos. Mas a expressão da experiência humana não se limita, muitas vezes, a repetir o contexto lingüístico do qual brotou. Pois a própria experiência  goza  de  certa  autonomia,  é  também  fonte  de  saber,  questionando  e explodindo os quadros culturais tradicionais onde acontece. Também a experiência de Deus, e esta ainda com mais razão, como veremos. A rica pluralidade e variedade das experiências de Deus ao longo dos séculos, graças a homens e mulheres que viveram intensamente sua fé, trouxeram sempre algo de novo e de original, permanecendo, entretanto, no interior da grande tradição cristã e, assim, reivindicando, com justiça, serem autênticas experiências de Deus.

Deste modo, talvez possamos generalizar e dizer que nas expressões das diversas experiências de Deus ao longo da história do cristianismo e reconhecidas como tais pela Igreja Católica, encontramos freqüentemente, sem que haja uma preocupação por parte de quem fez tal experiência de uniformizar tal pluralidade, representações múltiplas da experiência salvífica com o mesmo Deus, advindas seja do contexto circundante, seja do próprio Deus. Não é nosso objetivo demonstrar plenamente como esta verdade também se encontra nas representações da ação de Deus, captada e expressa por Santo Inácio. Apenas mencionaremos algumas características, à guisa de exemplo.

Representações inacianas de Deus

Tanto  nos  Exercícios  Espirituais,  como  nas  Cartas  e  nas  Constituições  da Companhia  de  Jesus,  encontramos  representações  de  Deus,  oriundas  do  contexto sociocultural e religioso deste santo. O tratamento dado a Deus como “Vossa Majestade”, ou a Cristo como “Rei eterno”, a postura típica de Inácio diante de Deus como “reverência”, como generosidade de um “nobre cavaleiro”, caracterizam e emolduram sua imagem de Deus por um lado, mas, por outro lado, encontram-se lado a lado com outras imagens de Deus, talvez menos explícitas e conhecidas, contudo, muito características deste santo. São estas que nos interessam mais, porque provêm, como que de dentro, enquanto emanam da própria experiência inaciana de Deus.

Um Deus que age diretamente na pessoa

Experiências sucessivas  fundamentaram  sua profunda convicção de que Deus atua diretamente nos seres humanos em vista de sua salvação. Desde as primeiras intrigantes descobertas, acontecidas ainda em seu leito de convalescente no castelo de Loyola, até suas resoluções relativas à nova ordem religiosa, toda a vida de Inácio foi sempre se dispor para captar e interpretar corretamente a ação de Deus, pela qual Ele lhe manifestava sua vontade. Os próprios Exercícios Espirituais constituem um contexto de silêncio, de fé atuante, de oração regular, de confronto com a Palavra de Deus, contexto este que possibilita ao exercitante experimentar esta ação, aprender a captá-la de modo pessoal e, sobretudo, saber interpretá-la como ação salvífica divina.

Assim aquele que dá os exercícios não opte nem se incline a uma parte ou outra, mas, ficando no meio, como o fiel de uma balança, deixe imediatamente agir o Criador com a criatura e a criatura com o Criador (EE 15). O advérbio imediatamente está aqui para diretamente. Agente principal do percurso espiritual do retirante é o próprio Deus, sendo o diretor do retiro apenas um acompanhante e colaborador para que esta atuação de Deus seja bem captada e entendida pelo que faz os exercícios.

Esta convicção volta no assim chamado primeiro e segundo tempo da eleição. Num é dito que Deus nosso Senhor move e atrai a vontade, de tal modo que a pessoa espiritual segue o que lhe foi mostrado, sem duvidar nem poder duvidar (EE 175). No segundo tempo a pessoa chega a bastante clareza e conhecimento pela experiência de consolações e desolações, e pela experiência do discernimento dos espíritos (EE 176). Em ambos os casos, a ação direta de Deus na pessoa humana se encontra claramente pressuposta e afirmada.

Expressões típicas das experiências feitas por Inácio são as conhecidas regras para discernimento dos espíritos (EE 313-336). Delas sobressai uma, que caracteriza o que é próprio e exclusivo da ação direta de Deus na pessoa. Somente Deus nosso Senhor dá consolação a uma pessoa sem causa precedente, porque é próprio do Criador entrar, sair, causar moção nela, atraindo-a toda ao amor de sua divina Majestade (EE 330).

Para Inácio a atuação salvífica de Deus implica uma interpelação à liberdade humana:  trata-se  de  sintonizar  a  própria  liberdade  com  a  liberdade  divina,  ou corresponder à vontade divina como expressamos mais tradicionalmente. Subentendido aqui está o fato de que esta vontade não se expressa nas normas gerais da fé cristã ou da Igreja, consistindo apenas numa aplicação das mesmas num caso particular ou numa pessoa concreta. Antes esta vontade se transmite através da própria experiência pessoal da ação de Deus, a saber, através das moções, dos espíritos, dos sentimentos, para empregar termos caros a Inácio.

Toda a preocupação de Inácio será de melhor caracterizar este agir divino, já que ao chegar ao ser humano ele se encontra em meio a outros apelos, sentimentos, inclinações, sonhos, esperanças, que habitam o coração de homens e mulheres. Sua profunda capacidade introspectiva vai nos fornecer estas orientações que os anos posteriores apenas confirmam e valorizam. Se a ação divina pode ser distinguida de outras forças presentes no ser humano então goza ela de certa singularidade, de certa luminosidade, que garante sua identidade. Não se trata de um sentimento sem conteúdo, de uma moção apenas afetiva, de uma sensação vazia. Além de afirmar a possibilidade da ação direta do Criador, Inácio reconhece também que a mesma deixa marca, através da qual pode ser reconhecida e identificada.

Um Deus sempre maior, um Deus mistério

A concepção inaciana da vida do cristão implica que este esteja sob uma contínua ação divina. Teologicamente expressamos isto afirmando ser a própria fé um dom de Deus, um fruto do Espírito Santo agindo em nós. Contudo esta ação que nos possibilita crer, esperar e amar é considerada por Inácio numa chave existencial. Ele não pretende elaborar uma teologia, mas simplesmente “ajudar as almas”, como costumava expressar. Deste modo está ele mais atento às interpelações desta ação à liberdade humana. Entretanto ao manifestar sua vontade, Deus se manifesta a Si próprio. E como esta manifestação de sua vontade acontece para Inácio ao longo da vida da pessoa, da comunidade vista como uma unidade, da humanidade também considerada como tal, temos que reconhecer que a manifestação de Deus apresenta novos aspectos, características inéditas, traços originais ao longo da história do indivíduo, das gerações, da humanidade.

Embora mantendo representações de Deus oriundas de seu contexto tradicional, que evocam ambiente de corte e de nobreza, Inácio afirma simultaneamente e com mais profundidade a incapacidade de confinarmos Deus a uma imagem determinada. Deus é sempre maior do que conseguimos pensá-lo, Deus sempre nos desconcerta e surpreende, desde que estejamos atentos e dóceis às suas interpelações. Estamos acostumados a considerar a ação de Deus sob o ponto de vista quase que exclusivamente da liberdade. Neste sentido, costumamos enfatizar a importância de estarmos abertos à ação de Deus ou a necessidade de sabermos captar e, sobretudo interpretar tal ação. Neste mesmo sentido acentuamos que o discernimento deve constituir uma atitude permanente na vida do cristão, não se resumindo a apenas alguns momentos especiais, como num retiro espiritual.

Conseqüências da visão inaciana

Tudo isto é correto, mas pede uma complementação. O agir divino, sempre novo, inédito e original, nos obriga a retocar e modificar representações passadas de Deus, nos faz desconfiar de nossos conceitos sobre Deus, nos leva a tomar consciência que aqui estamos diante de Alguém que foge às nossas tentativas de entendê-lo e enfileirá-lo ao lado de outros objetos de nosso conhecimento. Procurar corresponder à vontade de Deus é  uma  expressão  que  na  sua  simplicidade  abriga  uma  experiência  tremendamente exigente. Pois Deus é liberdade e não deve se submeter ao que dele esperamos. Decepcionando nossos planos e expectativas é que Ele também se manifesta como Deus. Daí a experiência custosa para o ser humano de deixar simplesmente Deus ser Deus, tendo plena soberania e domínio de sua vida.

Toda a dinâmica dos Exercícios Espirituais é nos levar a esta atitude contínua de discernimento da ação de Deus. Trata-se, no fundo, de uma pedagogia, iluminada pelos mistérios da vida de Jesus Cristo, que procura libertar nossa liberdade (1a semana), levando-a a se entusiasmar e abraçar a pessoa de Jesus de Cristo (2a semana), confirmando-a na opção feita pela sua manifestação plena no mistério pascal (3a e 4a semanas). A atitude contínua de discernimento se expressa na “contemplação para alcançar  o  amor”,  mas  já  está  presente  também  no  “princípio  e  fundamento”, confirmando a circularidade dos Exercícios Espirituais. Trata-se, portanto, de uma espiritualidade dinâmica e aberta às novas situações existenciais, sociais, institucionais, e que procura discernir no desafio da nova realidade a vontade de Deus. Espiritualidade profunda,  mas  exigente,  que  corre  o  perigo,  como  tudo  o  que  é  profundo,  de  ser banalizada e reduzida a expressões e chavões, desprovidos da experiência mística que lhes daria vida e sentido.

A atualidade da espiritualidade inaciana

A outra conseqüência desta espiritualidade não é muito valorizada na literatura inaciana. Ela nos confronta continuamente com o Mistério de Deus, que inviabiliza quaisquer representações, que decepciona nossas expectativas, que desmente nossas especulações,  que  abre  novos  e  inéditos  horizontes,  que  nos  acompanha  através  da história, mas que não revela seu nome. Numa época de profundas e aceleradas transformações culturais na sociedade, em dias em que sofremos com um pluralismo de mentalidades,  de  discursos  e  de  linguagens,  de  práticas  e  éticas,  sem  conseguirmos reduzi-los à unidade que nos possibilitaria melhor entendê-los, não nos admira que tal situação também se reflita nas representações tradicionais da vida cristã e eclesial, bem como nas práticas religiosas herdadas do passado.

A crise atual é, no fundo, uma crise de linguagem. E o cristianismo não está dela imune. Sobretudo em sua mensagem sobre Deus. A insuficiência das imagens clássicas provoca positivamente uma busca da experiência, mas também, negativamente, um silêncio e um vazio de Deus na sociedade, como se observa já na Europa e em algumas camadas sociais entre nós. Neste quadro de fundo a espiritualidade inaciana ganha um realce todo peculiar. Pois ela não nos permite “domesticar” Deus numa noção, fazendo-o corresponder a nossas idéias, juízos e expectativas. Ela nos abre, pelo contrário, ao desconhecido, ao futuro, ao imprevisível e nos educa a acolher Deus como mistério, com o respeito devido à sua transcendência e à sua divindade.

Espiritualidade também atual para uma época caracterizada como o fim da cristandade. Pois, relativizando imagens passadas nos capacita a olhar e levar a sério a realidade em transformação, buscando nela os “sinais dos tempos” que mediatizam a fala de Deus, o que Ele quer de nós nestes dias. A nova linguagem que daí poderá surgir não nos atemoriza, pois Inácio já nos ensinou a lidar com um Deus sempre maior e a não identificá-lo com suas representações. Este traço de Inácio se reflete em sua preocupação de não “fechar” as Constituições da Companhia de Jesus, como um bloco definitivo, supra-temporal, imune da historicidade inerente a qualquer obra humana e, sobretudo, como algo que cristalizasse para sempre a liberdade criativa de Deus. O que teve sua origem nas experiências dos primeiros companheiros deveria se manter aberto para novas experiências. Deus semper maior!

Espiritualidade inaciana e diálogo inter-religioso

Se fossemos perguntar pela razão que torna possível um diálogo entre membros de religiões diferentes, com doutrinas e práticas diversas e estranhas umas às outras, poderíamos oferecer uma dupla resposta. Temos que encontrar algo comum, que permita, aos participantes do diálogo, encontrar no outro algo familiar e mesmo próprio. Este elemento comum se encontra já numa consideração de cunho meramente antropológico. O ser humano não se basta a si mesmo. E ainda mais. Não se explica a si mesmo no que tem de mais específico, sua inteligência e sua liberdade, sem reconhecer que está estruturalmente voltado para um transcendente, para um infinito, para um horizonte inalcançável, que possibilita o seu conhecer e o seu agir livre. Este estar-voltado-para-o- transcendente caracteriza o ser humano e fundamenta a existência das religiões.

Uma segunda característica comum já é de ordem teológica. As religiões reconhecem implícita ou explicitamente que este Transcendente chega, de algum modo, até o ser humano, nele atua, deixa transparecer algo desta ação, ocasiona uma experiência específica que dá origem a um movimento religioso determinado. Naturalmente esta experiência do Transcendente será captada e expressa sempre num contexto sociocultural e existencial particular. Esta leitura da experiência não se segue à mesma, mas a constitui como esta experiência religiosa determinada, sem que possamos separar o que compete à ação do Transcendente e o que compete à reação humana.

Fundamental aqui é reconhecer a ação de Deus também fora do cristianismo, pois tal  ação  salvífica  se  sedimentará  necessariamente  de  algum  modo  nas  religiões  não cristãs. Esta conclusão justifica o diálogo inter-religioso, pois ambas as partes em diálogo podem aprender uma da outra, sem renunciar à própria identidade ou pô-la entre parênteses. Pois refletem o Deus transcendente que realmente nelas atuou. A linguagem (doutrina) e as práticas (ética, culto) podem diferir bastante, mas não o suficiente para impedir que a raiz comum se manifeste de certo modo.

Esta afirmação vem confirmada pela modalidade mais fecunda do diálogo inter- religioso. Esta não consiste na explicitação teológica e nem nas atividades empreendidas em comum, porém no relato tranqüilo e sincero das próprias experiências religiosas por parte de homens e mulheres que vivem realmente o que crêem. Já Santo Inácio afirmava a ação salvífica direta de Deus em suas criaturas, reconhecia a dificuldade de percebê-la em sua verdade sem deformá-la e deixava regras de cunho heurístico para nos ajudar nesta percepção. O contexto sociocultural e religioso em que viveu não lhe permitiu dizer mais com relação a um diálogo inter-religioso, que pressupõe uma outra consciência da fé cristã.  Mas  ofereceu  sem  dúvida  uma  importante  contribuição  num  ponto-chave  do diálogo atual entre as grandes religiões.

Mistério de Deus e diálogo inter-religioso

Também o reconhecimento do mistério de Deus, ou do Deus sempre maior, por parte de Santo Inácio, se reveste de grande importância para a convivência pacífica entre as religiões. Naturalmente a imagem do Transcendente é decisiva para a identidade de cada religião. O cristianismo o demonstra a sobejo com a revelação do Pai feita por Jesus Cristo através de suas ações e de suas palavras. O fato de que Deus é amor e nos acolhe incondicionadamente determina toda a doutrina e ética cristã. Mas, por outro lado, a compreensão desta verdade é sempre histórica, limitada, epocal, podendo sempre receber novos aportes vindos de perspectivas diferentes das nossas. Este fato aconteceu de fato ao longo da história, seja com o cristianismo, seja com outras religiões. Primeiramente devido às novas óticas de leitura, aos novos horizontes de compreensão, às novas linguagens, que fazem emergir do já sabido o que antes está latente, implícito ou simplesmente escondido. É o entorno cultural que nos possibilita novas leituras, através de suas novas questões e de suas novas categorias. Expressões dogmáticas inéditas, intuições  surpreendentes,  sistematizações  originais  já  clássicas  e  linguagens  novas povoam a história da fé cristã.

O outro fator que leva a um enriquecimento das expressões e das práticas numa determinada religião é o seu conhecimento das outras religiões. Estas podem oferecer sempre uma perspectiva diferente para a leitura dos próprios textos sagrados ou das próprias experiências salvíficas fundantes. Com isto, sem perder a identidade e sem contradizer textos ou experiências passadas, pode haver um progresso na compreensão e na expressão dos mesmos. Aqui entra a verdade do Mistério de Deus, percebida tão bem por Santo Inácio, que possibilita novos aportes porque nenhuma formulação humana conseguirá exprimi-lo.

A pessoa de Jesus Cristo

Antes de terminar deve ser observado que a mística de Santo Inácio é trinitária e que nela Cristo desempenha um papel único e exclusivo. A pessoa de Jesus Cristo como Deus feito homem e, portanto, como manifestação plena e definitiva do Transcendente e como salvador único e universal, caracteriza sem mais a fé cristã e tem um significado central na espiritualidade inaciana. Naturalmente também Jesus de Nazaré experimentou diretamente a ação divina em sua humanidade. Também Jesus de Nazaré experimentou uma evolução em sua consciência humana de Deus. Aprendeu através de sua vida e de sua história que este Deus é um Deus sempre maior, correspondendo sempre à sua vontade, mesmo sem entendê-la por vezes.

Confessamos em Jesus Cristo a verdade última sobre Deus, mas reconhecemos também que este Deus permanece mistério para nós, já que nem podemos afirmar nos ter apropriado perfeitamente desta verdade que é Jesus Cristo, que pertence também ao mistério de Deus porque é Deus. Santo Inácio o reconhece quando nos diz para pedirmos sempre o “conhecimento interno do Senhor para mais amá-lo e segui-lo”. Com outras palavras, conhecer intimamente sempre mais Aquele que já conhecemos. Não seria uma outra expressão para o mistério de Deus ou para o Deus sempre maior?

Intencionalmente não abordamos um outro viés para o estudo do nosso tema. Tratar-se-ia de se concentrar na pessoa concreta que assimila e vive a espiritualidade inaciana. Aqui estaria em primeiro plano a pedagogia inaciana e a atitude de fundo que ela plasma no que a acolhe. Também aqui temos todo um veio a ser explorado, que realçaria os elementos formativos desta espiritualidade para a vivência cristã numa sociedade pluralista, seja do ponto de vista cultural como do ponto de vista religioso. E que mais uma vez demonstraria a atualidade surpreendente desta espiritualidade!

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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