domsebastiao america latina

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Marcelo Barros, irmão muito querido, é monge daqueles que se faziam antigamente, grandes agentes de evangelização de povos inteiros, depois da invasão do império romano. Eram peregrinos, andavam com pouco e sem pouso, parecidos com o jeito de Jesus: Bonifácio evangelizou a Alemanha, Agostinho a Britânia (Inglaterra), Columba a Escócia, Patrício a Irlanda… Marcelo peregrina pelo Brasil afora por variados grupos e movimentos populares, passa a fronteira e anuncia a Palavra na Venezuela e na Bolívia, alonga os passos e aparece na Itália, na França… e ultrapassa fronteiras, antes tão bem fixas e estabelecidas, monge católico sai por países vizinhos a dialogar com gentes aborígenes de variadas etnias e entre nós rompe as distâncias entre a “igreja” e o “terreiro”… Pois bem, há pouco tempo me deu de presente um de seus belos livros, publicado desde 2009: “O Sabor da Festa que Renasce – Para uma Teologia Afro-latíndia da Libertação” (Edições Paulinas). E, ao passá-lo a minhas mãos, quase me segredou: “Adotei a terminologia que você usa, ‘Afrolatindia”. E eu lhe respondi: “Só que desde algum tempo já tenho pensado noutra palavra”.

Há uns anos atrás, de repente, me veio um pensamento solto: “Como toleramos, com evidente e estranha naturalidade, o absurdo de chamar nosso continente de “América Latina”? Sabia que uma organização de estudiosos e agentes da Libertação se tinha autodesignado “Ameríndia” e que a Dom Pedro Casaldáliga, bispo rodeado de povos aborígenes em Mato Gosso, era de  agrado falar de “Ameríndia” em lugar de “América Latina”. Fiquei a pensar. Voltar a “Abya Ayala”, antigo nome de antes da conquista, não pegaria. “Ameríndia” tinha a desvantagem de referir-se apenas às populações aborígenes e aos conquistadores. E os povos chegados de África continuariam invisíveis. Veio-me, de repente, uma expressão: “América Afro-Latíndia”. Minha justificativa era a seguinte: “América”, depois de já tantos séculos, é um clichê que não se pode evitar, tornou-se clássico. Procurei divulgar esse nome, mas não me parecia satisfeito. É certo que ressaltava os povos africanos e os “índios”, mas a homenagem à conquista vinha por duas vezes: “América” e “Lat(ina). Como quer que seja, deixei de dizer e de  escrever “América Latina” e passei a espalhar o novo nome, embora ainda incomodado.

Quem sabe, muita gente se pergunte por que se incomodar por tão pouco, se o nome do Continente já se cristalizou em nossas mentes e corações. E, afinal, por que dedicar tanta importância a um simples nome? É que o nome designa uma realidade, uma coisa, quem sabe, pessoas e povos inteiros, um acontecimento, uma identidade onde a gente se reconhece. Por debaixo de um nome tem uma visão, algum projeto, até mesmo uma ideologia; um pouco que se diz e um muito que se oculta. Em nosso caso, “América” homenageia Américo Vespucci, navegador italiano a serviço do projeto colonial europeu. “Latina” nos assimila ao Ocidente da Europa, aos povos que invadiram e conquistaram estas terras, antes habitadas por nossos povos originários.  Na verdade, espalharam prepotência, traição, opressão, violência e morte. No caso do Brasil, como certos intérpretes dizem hoje, essa violência está na matriz de nossa nacionalidade, até hoje. Como se mata e por motivos egoístas e até fúteis! No Centro-Oeste, até hoje se diz que “índio bom é índio morto”. E os povos chegados de África onde ficam? Que tragédia! e por isso me vinha a sensação de absurdo quanto à naturalidade com que pronunciamos e celebramos nossa própria alienação. “América Latina” quase nada diz de nós, ao contrário, oculta e rouba nossa identidade. Conformar-se com esse absurdo é aceitar passivamente que nos roubem a própria identidade: ao falar de nós, continuamos por séculos a falar de outrem e contra nós, a ocultar-nos e tornar-nos invisíveis, a nós e a nossos ancestrais, e isto com a maior naturalidade.

Depois da primeira fase, quando cunhara a expressão “América Afro-Latíndia”, passei a pensar que o mais adequado seria designar o continente como “Afroameríndia” e, a partir daí, só falo e escrevo assim. Antes de tudo, exclui-se o nome “América”, e o fato de incluir os povos negros nos une desde o Caribe até o sul do Continente; os povos aborígenes se mencionam no final da palavra, com o acento mais tônico, afinal eram os primeiros habitantes (não digo “donos” porque essa não é uma categoria inteligível entre eles): “afro” e “índia” (embora surgido de um equívoco, este termo já está consagrado a designar os povos aborígenes), aí estão os dois polos de acentuação; no meio, vem a menção dos conquistadores, sempre presentes desde a ocupação do território, a cultura trazida e imposta, e seu próprio sangue, mas a memória da conquista se insinua no menor pedaço da palavra e não é palavra tônica, mas átona. Agora, sim, nosso nome fala de nós, é afirmação de nossa identidade e história, e com ele podemos ter sob os olhos a grande unidade da Pátria Grande, desde o Caribe até a Patagônia.

Obs: Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….

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Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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