“Se a bioética não for crítica, pode se tornar apologética ou ideológica.”
Bruce Jennings, Editor Chefe da Enciclopédia
Enciclopédia (4ª. Ed.), 2014.
Lembro-me com frequência de um pensamento, repetido à exaustão por um excelente professor de metodologia científica, nos tempos de estudante de Filosofia. Dizia com frequência que “A realidade não se dá a conhecer tão facilmente quanto ingenuamente nós pensamos!”
Um outro pensamento recorrente deste sábio mestre era o de que “todo ponto de vista, é sempre a vista a partir de um ponto” e que um só ponto de vista, é sempre uma visão redutiva e limitada da realidade e que para podermos apreender e compreender a realidade na sua globalidade, precisamos levar em conta outros pontos de vistas.
Nesta visão global é que teríamos a chance de estarmos tocando a verdade a respeito da realidade. O que julgamos ver como realidade, não passa senão de uma interpretação parcial e redutiva.
Sem dúvida alguma vivemos tempos de incertezas e de “complexidades crescentes” como nos ensina o célebre pensador Frances Edgard Morin. O conhecimento científico trilhou uma rota que ganhou um saber mais preciso e completo em termos de profundidade, com a exigência de especialização que trouxe como consequência a fragmentação do saber. Jocosamente afirmamos com frequência que “o especialista é aquele que sabe sempre mais de cada vez menos, até saber quase tudo de quase nada”.
Para conhecermos, isolamos, dissecamos e separamos o objeto que nos interessa, afastando-o do seu meio original e colocando-o em um contexto artificial. Veja o que ocorre seja por exemplo no âmbito da medicina com o corpo humano e depois somos incapazes de ver e colocar tudo num conjunto harmônico de uma pessoa! A hiperespecialização, enquanto ganhou em resolutibilidade no combate a determinadas doenças raras, por exemplo, mas nos deixou com a visão do todo profundamente comprometida. E falamos então de desumanização dos cuidados, quando a pessoa é reduzida a um mero objeto de estudos e investigação.
O conhecimento científico trilhou uma rota que ganhou um saber mais preciso e completo em termos de profundidade, com a exigência de especialização que trouxe como consequência a fragmentação do saber.
Edgard Morin diz que o conceito de complexidade não se opõe ao simples, mas ao simplificador. Reconheceu a simplificação no domínio do conhecimento científico, da redução (do global a seus elementos), da disjunção (entre objeto e contexto e entre os saberes especializados), da ordem (o determinismo em geral e da abstração (que eliminação do concreto). É claro que tivermos grandes progressos no conhecimento, mas também se criaram zonas de ignorância cada vez maiores. É neste contexto que Morin fala da emergência de dois princípios, o primeiro é o da religação dos saberes.
Religar converteu-se num princípio cognitivo permanente: um conhecimento que isola seu objeto mutila-o e oculta seu caráter essencial. Assim uma informação adquire sentido num sistema de conhecimento, um conhecimento adquire sentido nas condições históricas dos fatos concretos em que surge. O segundo princípio de Morin, perante a insuficiência da lógica clássica diante das contradições que ela rejeita é necessidade de se assumir uma dialética que ligue (outra vez a religação…) as contradições, a qual ele chama de dialógica. Estes dois referenciais constituem o núcleo do “paradigma” do conhecimento complexo que na sua obra sobre seu Método, procura elaborar os instrumentos conceituais que permitem religar os conhecimentos.
Sob o efeito da acumulação dos saberes, a ciência setorizou-se e seus três grandes campos de conhecimento, a física, a biologia e as ciências humanas, isolaram-se uns dos outros. Cada um destes campos, por sua vez, setorizou-se e, em todos os domínicos, técnicos e especializados, desenvolveram-se conhecimentos compartimentados. Com isto a cultura científica tornou-se uma cultura especializada, na qual cada disciplina tende a se fechar em si mesma e a se tornar esotérica, não apenas para a pessoa comum, mas até mesmo para os especialistas das outras disciplinas.
“O conhecimento é navegar num oceano de incertezas, em meio a arquipélagos de certezas”
Neste contexto os especialistas se intimidam diante das ideias gerais e os não especialistas fazem tentativas vãs de resolver os problemas. Aqui Morin fala que o homem culto do século XXI necessita ter alguns instrumentos capazes de enfrentar os desafios da complexidade, a partir de conhecimentos interdisciplinares, o cosmo, a natureza, a realidade e o humano. Para Morin, “O conhecimento é navegar num oceano de incertezas, em meio a arquipélagos de certezas” e também o empreendimento científico tem sempre necessariamente um componente ético, quando fala de “ciência com consciência”.
É neste contexto que surge a imperiosa necessidade de introdução da perspectiva bioética. A intuição original de Potter, enquanto define a bioética como sendo uma “ponte entre duas culturas – ciências e humanidades – que não dialogam”, e também como “ponte para o futuro”, ganha consistência e uma perspectiva saudável de eliminar os muros do conhecimento compartimentalizado e especializado que separa e divide, ao propor uma perspectiva de conhecimento multi, inter e transdisciplinar.
A imagem de bioética como ponte de Potter é a mesma ideia de ligação e religação de que fala Morin. Neste contexto, necessitamos utilizar um novo instrumento que nos possa dar uma visão, explicação e conhecimento e compreensão, o mais fiel do que seja a realidade.
Necessitamos utilizar um novo instrumento que nos possa dar uma visão, explicação e conhecimento e compreensão, o mais fiel do que seja a realidade.
Para se conhecer o mundo mais distante, das estrelas, planetas e galáxias inventou-se o telescópio. Para termos o conhecimento da realidade micro, em nível de células ou genes ou nano, invisível a olho nu, temos o microscópio e o nanoscópio; para auscultarmos os órgãos interiores do nosso corpo temos hoje o estetoscópio; numa consulta médica para sabermos do funcionamento dos órgãos internos temos como instrumento o endoscópio; se estivermos num submarino para vermos a realidade acima das águas dispomos de um periscópio.
Para termos uma visão global e total da realidade necessitamos colocar juntos todos estes instrumentos, visões e conhecimentos num verdadeiro caleidoscópio, que o Dicionário Aurélio define como sendo pequeno instrumento cilíndrico, em cujo fundo existem fragmentos de vidros coloridos, os quais ao refletirem-se sobre um jogo de espelhos angulares, formam-se imagens coloridas múltiplas, em arranjos simétricos.
É aqui que surge a necessidade deste novo instrumento chamado bioetoscópio. Este instrumento é uma síntese criativa integrativa de todos estes instrumentos, visões e conhecimentos especializados, que são importantes e necessários, mas ainda parciais. Trata-se de um instrumento de conhecimento, que a partir de uma tábua de valores humanos e vitais (princípios e/ ou referenciais éticos) nos dão uma visão, conhecimento e saber, específico e original.
Esta novidade e originalidade deste saber é constituída de algumas características específicas de serem abertos, dialógicos, multi, inter e transdisciplinares, para além do nível pessoal e social, abarca a dimensão cósmica e ecológica da vida e que nos compromete no presente histórico que vivemos de trabalhar com esperança, para garantir um futuro digno de vida para as futuras gerações.
Obs: Publicado em A12com/artigos em 02.01.2016)