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“Em tudo amar e servir à sua divina Majestade” (EE. 233)

Presenciamos hoje uma busca por experiências religiosas, manifestando-se em várias modalidades e utilizando métodos diferentes. Esta diversidade confirma a insuficiência das referências apenas doutrinais para nos guiar na aventura arriscada que é a vida humana. O fato se explica pelo pluralismo de afirmações irreconciliáveis e pelas rápidas e sucessivas mudanças socioculturais que não deixam de atingir as entidades mestras de sentido, como são as religiões e as Igrejas. Há, sem dúvida, uma crise latente e experimentada por todos nós. As questões reais que afligem o nosso cotidiano não encontram solução satisfatória nos enunciados  e  nas  orientações  que  recebemos  do  passado.  Elas  parecem  extrapolar  os quadros tradicionais, questioná-los mesmo, sem que consigamos enquadrá-las logo através de explicações adequadas e orientações pertinentes.

Neste momento volta-se o ser humano para algo mais fundamental que é a sua própria experiência. Naturalmente, como veremos, esta experiência pessoal não abdica das referências passadas, mas ganha um status qualificado na vida da pessoa. É o fenômeno que assistimos nos vários setores da vida humana: cultural, ético e também religioso. Numa sociedade dominada pela racionalidade funcional que valoriza a produtividade e a eficácia, este fenômeno redunda na atmosfera relativista respirada por todos nós. A experiência pessoal dita as cartas e se arvora em critério de verdade e de ação. Inseridos na atual sociedade  os  cristãos  voltam-se,  também  eles,  para  uma  experiência  pessoal  que fundamente e oriente suas vidas.

Numa palavra a mística está na moda. Realidade difícil de ser definida com clareza, já que se encontra em formas diversas nas várias religiões. Poderíamos arriscar uma definição dizendo ser uma experiência direta com uma Realidade Transcendente e Última, mas teríamos que nos corrigir imediatamente, já que este acesso nunca é imediato porque acontece sempre dentro de uma tradição religiosa recebida, em cujo interior será experimentada e entendida esta Realidade Transcendente. Porém, ao ser uma constante em muitas religiões, nos permite fazer duas observações. A primeira nos demonstra que a própria realidade da pessoa humana está estruturalmente aberta para uma Realidade que a ultrapassa. Com outras palavras, o ser humano não se basta a si próprio e necessita do Transcendente, que nós chamamos Deus, para atingir sua felicidade. A dimensão religiosa do  homem  é  assim  intrínseca  à  sua  própria  realidade,  e  não   algo  acrescentado posteriormente devido a circunstâncias do contexto vital. A segunda observação nos chama a atenção para um dado importante: experiência mística e tradição religiosa não se opõem, mas se exigem mutuamente. A mística que despreza o quadro religioso acaba se degradando a ser apenas um aprofundamento humano de si mesmo, que aprisiona a pessoa em si mesma. A religião desprovida de mística se reduz a enunciados doutrinais e a mandamentos morais teóricos, formais e ineficazes.

Mesmo acontecendo no interior de um quadro religioso, por se tratar de uma experiência com o próprio Transcendente, com o que é diferente de tudo o que foi criado, com o completamente Outro, com o Mistério, a experiência mística apresenta características incapazes de serem dominadas pela razão humana e, portanto, de serem expressas adequadamente.  Ao  serem  interpretadas  irão  refletir  necessariamente  o  quadro hermenêutico ou a linguagem recebida de cada religião. Deste modo não podemos descartar a priori experiências místicas de outras religiões simplesmente como “naturais” ou pior ainda como falsas.

A mística cristã se caracteriza primeiramente por se dar no interior da fé. Não é aprofundamento de si, evasão para dentro do eu, que poderia chegar a dispensar a fé. Ela é, pelo  contrário,  fruto  desta  fé,  que  sustenta  as  experiências  do  místico  em  direção  ao mistério de Deus. Em seguida por ser obra da graça de Deus, é dom que não pode ser alcançado pelo ser humano entregue às suas forças. Além disso, ela está subordinada ao valor mais alto da caridade (1Cor 13); portanto a experiência mística cristã nunca é fim em si  mesma.  Finalmente,  mesmo  que  o  cristão  disponha  de  certa  compreensão  do  dado objetivo da revelação, ele experimenta inevitavelmente a inefabilidade do mistério de Deus que ultrapassa sempre qualquer conceituação humana. Se tu compreendes, não é Deus, já afirmava Santo Agostinho.

Fundamento da mística cristã é o fato de termos sido criados para receber o próprio Deus que se entrega a nós. Deste modo, todo ser humano experimenta a atração divina, o amor de Deus. Não é propriamente um conhecimento como estamos acostumados a ter. Trata-se mais de uma consciência da ação de Deus em nós, de estarmos voltados para a fonte última de nossa existência, a qual o vocábulo “Deus” procura exprimir imperfeitamente. Mesmo com a revelação de Jesus Cristo Deus permanece mistério para nós,  como também o próprio Cristo. Igualmente o dom do próprio Espírito Santo, cujo amor derramado em nossos corações (Rm 5,5) nos leva a nos doarmos a nossos semelhantes, à semelhança de Jesus Cristo também conduzido e obediente ao Espírito (Hb 9,14).

Por atingir o centro da pessoa humana (do qual provém a inteligência, a afetividade, a liberdade),  a  ação  de  Deus  goza  de  uma  evidência  subjetiva  por  parte  de  quem  a experimenta, embora a pessoa não consiga traduzi-la em conceitos e convencer outros do que lhe parece evidente. Pois ela está intimamente implicada nesta percepção, como alguém que ama e não encontra palavras suficientes para expressar o que experimenta. Como a experiência mística não é perfeitamente clara, já que nela se faz presente o mistério de Deus, é um conhecimento envolto em mistério, que exige um sério discernimento (Rm 12,2; Ef 5,10), pela facilidade de nos enganarmos ao refletir sobre nossa experiência primeira. Naturalmente quanto mais crescermos em graça, tanto mais cresceremos em clarividência para discernir o que melhor convém (Fl 1,9s).

Esta mística fundamental, tal como a apresentamos, aparece assim como uma dimensão intrínseca à vida do cristão. Ela constitui o fundamento indispensável de toda e qualquer mística que se queira cristã. A diversidade das místicas no interior do cristianismo provém de fatores humanos que acentuam e tematizam mais certos aspectos do que outros. Importante é ressaltarmos que todo o institucional deve estar a serviço do encontro pessoal do fiel com Deus. Palavra de Deus, sacramentos, a Igreja, as pastorais, as espiritualidades, tudo isso deveria ter sempre uma função mistagógica, a saber, introduzir o cristão no mistério de Deus. Para não cairmos numa mera docilidade à instituição ou à doutrina por ela ensinada.

A mística inaciana é uma modalidade de mística cristã. Suas raízes se encontram na própria vida de Inácio de Loyola. A agitação dos “espíritos” que experimentou como convalescente no castelo de Loyola, as duras provações na gruta de Manresa, a importante “visão” do Cardoner, a atividade apostólica de levar a outros suas próprias experiências espirituais são os marcos de uma trajetória desenvolvida por Deus, cujo resultado foi, como ele próprio relata na autobiografia (99), um crescimento em devoção, isto é, “na facilidade de encontrar a Deus”. E de encontrar a Deus em todas as coisas. Jerônimo Nadal, um de seus primeiros companheiros que melhor o entendeu, achava isto uma graça insigne, a graça de ser contemplativo na ação ou, como Inácio formulava, de encontrar a Deus em todas as coisas. Embora mergulhado em muitos trabalhos nada o distraia de Deus, pois o encontrava em tudo o que fazia.

A primazia da experiência espiritual perpassa todo o livro dos Exercícios Espirituais. Sempre  é  decisivo  o  encontro  pessoal  do  exercitante  com  Deus,  de  tal  modo  que  o orientador “deixe imediatamente agir o Criador com a criatura” (15). Porém a melhor expressão da mística inaciana está na conhecida “contemplação para se alcançar amor”. As duas observações iniciais esclarecem suas características. “O amor consiste mais em obras do que em palavras” e “o amor é comunicação de ambas as partes” (231). Daí se constituir como uma mística de ação, como aparece no pedido da graça própria a esta contemplação: “em tudo amar e servir à sua divina Majestade” ou numa mística de entrega de si “pelo conhecimento interno de tanto bem recebido” (233). Daí os quatro pontos desta contemplação girarem em torno dos dons recebidos de Deus (234-237). Buscar e encontrar a Deus em tudo é ver a realidade toda à luz da fé e responder na entrega (serviço) ao Reino de Deus.

Daí Santo Inácio vetar aos jesuítas longas orações no tempo dos estudos. “Podem exercitar- se em buscar a presença de Nosso Senhor em todas as coisas. Por exemplo, conversando com alguém, deslocando-se de cá para lá, vendo, degustando, prestando atenção, pensando, e, finalmente, em todas as mesmas ações, pois é verdade que sua Divina Majestade se acha em todas as coisas com sua presença, com sua potência e com sua essência” (Cartas 242). Daí também suas palavras a um missionário jesuíta: “É possível elevar o espírito até Deus, no meio das atividades e dos estudos; a partir do momento em que se transforma tudo em serviço de Deus, tudo se torna oração”. Naturalmente sem excluir a oração formal como veremos mais adiante.

As condições requeridas para se poder “buscar e encontrar a Deus em todas as coisas” podem ser resumidas em três expressões: fé consciente, liberdade interior e intenção reta. Fé consciente significa aqui olhar a realidade com os olhos de Deus, que foi a grande graça que Inácio obteve no Cardoner e que marcou toda a sua vida posterior. Ir além do que mostram os olhos humanos, perceber a realidade profunda das coisas e das pessoas, chegar à sua verdade última, captar o divino no humano. Um olhar de fé que não é passivo, extático, mas que reconhecendo o amor de Deus entranhado nas criaturas busca responder a tal amor no serviço ao Reino. Numa frase de Jerônimo Nadal: “Tudo ver e apreciar a partir de Deus e em toda ação deixar-se conduzir pela luz da fé”. Quem nos oferece esta perspectiva de leitura na fé é Jesus Cristo. Assim é imprescindível o contato com Ele na oração, a familiaridade com suas palavras e suas ações. Tal será a graça pedida em todas as contemplações dos Exercícios Espirituais: “conhecimento interno do Senhor” (104). Só assim não seremos dominados por outras leituras da realidade provenientes do egoísmo e que constantemente nos atingem.

Liberdade interior é a segunda condição para sermos contemplativos na ação. O serviço ao Reino é uma opção livre, mas que repercute em toda a nossa vida. Toda a dinâmica dos Exercícios  consiste  numa  pedagogia  da  liberdade,  libertando-a  gradativamente,  na seqüência das contemplações e das meditações, das amarras que a aprisionavam e degeneravam. Aí está o sentido das meditações do reino, das duas bandeiras, dos três tipos de pessoas e dos três modos de humildade. Só assim pode o exercitante realizar uma eleição ou reforma de vida na linha da vontade de Deus. A entrega de uma liberdade realmente libertada se expressa na oferta da contemplação para alcançar amor: “Tomai, Senhor, toda a minha liberdade” (234).

Se tivermos presente que a vida terrestre de Jesus Cristo foi de total fidelidade à vontade do Pai, então esta vida reproduz a vontade de Deus dentro da nossa história humana. Se a meditação do Reino expressa o compromisso fundamental de seguir o Mestre de Nazaré, este compromisso se concretizará ao longo das contemplações sobre a vida de Jesus, as quais indicam ao exercitante o que Deus quer dele naquele momento. A esta liberdade não se chega sem a renúncia ao amor próprio e à cobiça de bens materiais, como demonstram as meditações centrais dos Exercícios. Inácio valorizava mais a curta oração de alguém mortificado do que a longa oração de alguém não mortificado.

Intenção reta. Já aparece claramente nos Exercícios Espirituais. O que nos move ao agir não deve ser ditado pelas “afeições desordenadas” (1), mas somente pelo serviço ao Reino (16). A oração preparatória que retorna sempre ao longo de todo o retiro pede “que todas as minhas intenções, ações e operações sejam puramente ordenadas a serviço e louvor de sua divina  Majestade”  (46).  Inácio  volta  a  insistir neste  ponto  nas  próprias  Constituições. “Todos se esforcem por ter a intenção reta, não somente quanto ao estado de vida, mas também quanto a todos os seus pormenores, pretendendo sempre puramente servir a divina Bondade, e agradar-lhe por causa de si mesma, e por causa do amor e benefícios singulares com que nos preveniu” (Const. 288). No fundo a pureza de intenção significa sem mais a conformidade com a vontade de Deus. A união mística é uma união das vontades, de Deus e da pessoa. E mais uma vez a mística inaciana se caracteriza como mística na ação e na vida.

Para sustentar e manter viva esta atitude de fé frente à realidade Inácio de Loyola valoriza uma prática tradicionalmente conhecida como o “exame de consciência”. Para ele mais importante mesmo que a própria meditação diária. Entretanto dentro de sua espiritualidade esta  prática  torna-se  peculiar,  devendo  ser  entendida  mais  como  uma  tomada  de consciência da nossa identidade cristã, pois se trata de assumir o nosso cotidiano à luz de Deus. É o exercício diário do olhar de fé, que exige esforço, mas que também nos permite encontrar  a  Deus  em  tudo.  Na  mesma  linha  está  o  que  conhecemos  como  “exame particular”, quando concentramos a atenção e o esforço espiritual no domínio de uma falta ou na aquisição de uma virtude. Poderíamos ainda acrescentar “os Exercícios Espirituais na vida cotidiana”, modalidade muito difundida e fecunda em nossos dias.

A mística inaciana goza de uma atualidade inédita em nossos dias. Não para podermos ser “inacianos”, termo que Santo Inácio sempre rejeitou para os seus seguidores, mas simplesmente para podermos ser cristãos. Vejamos algumas razões que fundamentam nossa afirmação. Primeiramente por vivermos numa época de crescente pluralismo cultural e religioso acompanhado de rápidas e sucessivas mudanças na sociedade, que questionam, desvalorizam e inutilizam as referências do passado e os padrões tradicionais de vida. Os mapas de ontem já não nos satisfazem hoje. Como agir segundo o Evangelho nesta avassaladora instabilidade, da qual não conseguimos fugir? Também experimentamos em nossos dias uma crise das representações tradicionais de Deus, que nos deixam perplexos e nos incitam a buscá-lO não tanto através de outras imagens, mas especialmente através da experiência pessoal.

Vivemos ainda numa cultura que valoriza a subjetividade, a pessoa no que tem de próprio e de único. O discurso ético universal não contempla a situação existencial de cada um, com a enorme bagagem de suas experiências e conhecimentos, com os condicionamentos concretos de seu contexto sociocultural, com o grau de evangelização que alcançou. Deste modo resta sempre um espaço para o cristão tomar suas decisões com consciência e maturidade, sendo adulto também na Igreja, e não só em sua vida familiar e profissional. Hoje experimentamos também um anseio generalizado por relações afetivas estáveis, por nos sentirmos inseridos numa autêntica comunidade humana. Este fato lido numa chave cristã significa a busca por genuínas comunidades de fé, onde possamos partilhar e robustecer nossa vida de seguimento do Mestre de Nazaré. Entretanto a formação de uma comunidade de fé obedece às mesmas condições que garantem a constituição de uma comunidade humana qualquer. A primeira delas implica que as experiências de seus membros sejam experiências comuns, entendidas e avaliadas igualmente por todos. As experiências  humanas  vividas  na  fé  devem  ser,  portanto,  comuns,  fundamentando  a posterior partilha, discurso e práticas de um grupo cristão. A ênfase dada por Inácio de Loyola à experiência do encontrar Deus em todas as coisas se mostra assim de uma surpreendente atualidade para a ansiada vivência comunitária da fé.

Esta reflexão sobre a mística inaciana, por se tratar do núcleo de sua espiritualidade, nos questiona seriamente. Conseguimos realmente vivê-la? Haveria passos gradativos para se chegar à meta proposta por Santo Inácio? Podemos apontar momentos de nossa vida em que pudemos vivenciá-la? Quais os meios mais eficazes para torná-la uma realidade em nossa caminhada na fé?

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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