Padre Beto 15 de outubro de 2016

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Baseado na história real de Ramón Sampedro, o filme “Mar Adentro” de Alejandro Amenábar retrata a luta de um homem para dar fim a sua própria vida. Nascido em uma pequena vila de pescadores, Ramón sofreu, na juventude, um acidente que o deixou tetraplégico e preso a uma cama por 27 anos. Com uma lucidez e inteligência cativantes, Ramón lutou na justiça pelo direito de decidir sobre a sua própria vida, o que gerou vários conflitos com seus familiares, com a igreja e com a sociedade. Com sua luta, Ramón põe em questionamento não o significado da vida, mas se esta vida realmente nos pertence. A lucidez de Ramón nos faz questionar o quanto o desejo de morrer pode ser tornar uma legítima luta pela dignidade e pelo desejo de viver.

Muitas vezes, diante de decisões que devemos tomar ou simplesmente frente ao nosso futuro, queremos uma “luz”, uma idéia, uma sugestão de Deus ou de um amigo. Tentamos nos socorrer para algum “oráculo” que nos dê segurança. Na verdade procuramos fugir de algo essencial para o ser humano que, muitas vezes, nos amedronta: a liberdade. Para Sartre, a angústia é a condição do ser humano e justamente dela que tentamos, às vezes, fugir. Tomamos consciência desta condição de angústia a partir do momento que percebemos que nossa dignidade como pessoa humana encontra-se no fato de que ninguém pode tomar uma decisão em nosso lugar. A angústia é o reconhecimento de uma possibilidade como “minha” possibilidade. Em outras palavras, diante das situações e do futuro incerto sou eu que tenho que decidir. A angústia se torna perceptível quando a consciência se vê na condição de ainda não ser, separada de um futuro possível por sua própria liberdade. O que eu projeto como meu futuro está sempre “nadificado” e reduzido simplesmente à categoria de mera possibilidade, porque o futuro que sou permanece ainda fora de meu alcance. Se pretendo escrever um artigo, este se constitui em uma possibilidade ainda não realizada. Este artigo é verdadeiramente “meu” como mera possibilidade. Se começo a escrevê-lo hoje, não sei se amanhã irei continuá-lo. Amanhã, com relação a ele, minha liberdade pode exercer seu poder “nadificador”; amanhã posso, por minha própria vontade, desistir de terminá-lo. Para que minha liberdade venha a se angustiar com este artigo que escrevo, é preciso que eu o assuma como minha própria decisão ou responsabilidade, ou seja, que eu descubra, por um lado, minha essência como aquilo que fui (fui um “querer escrever um artigo”); por outro lado, que eu descubra o nada que separa minha liberdade dessa essência (fui um “querer escrever este artigo”, mas nada pode me obrigar a escrevê-lo); e por fim, que eu descubra o nada que me separa do que serei no futuro (descubro a possibilidade permanente de abandonar o artigo como condição mesmo da possibilidade de escrevê-lo). Estas três dimensões em relação ao artigo é o sentido da minha liberdade.

Como exemplo oposto ao do escrever um artigo, podemos citar o despertador. O despertador ajuda a me libertar da angústia, pois ele me garante o despertar e o ir para o trabalho. O despertador intervém autoritariamente em meu delicioso sono e me recoloca diante de minhas obrigações. Com ele não há escolha. Eu o programo para ser por ele ordenado. Da mesma forma, a moralidade, a rotina, o sistema econômico, as leis sociais que nos impomos exclui a nossa angústia ética, pois todas estas coisas, nas quais fomos mergulhados, nos retiram o peso da decisão. Não preciso pensar sobre o meu ser ou meu agir, pois eles são determinados pela expectativa da sociedade. Neste sentido, os valores que possuímos são extraídos simplesmente de sua exigência social, não da exigência de nossa vontade. Nós não escolhemos os valores através de uma intuição contemplativa que os compreende como sendo valores. Porém, o verdadeiro valor, aquele que assumo não por ser controlado por outros, mas porque estou convicto de sua importância, só pode surgir de uma liberdade ativa. Daí minha liberdade é o único fundamento dos valores e nada, absolutamente nada além da liberdade de pensamento, justifica minha adoção dessa ou daquela escala de valores. O grande problema é que preferimos a tranqüilidade passiva à liberdade ativa. Preferimos que um Deus decida por nós, ou aceitamos as fatalidades da vida como “vontade” de Deus ao invés de tentarmos entende-las. Preferimos jogar a culpa nos políticos corruptos ou no sistema econômico ao invés de compreendermos nossa participação e conivência com toda a ordem social podre. Preferimos viver no “paraíso”, do que na angústia da decisão sem percebermos que o primeiro é o inferno da escravidão, enquanto o segundo é o céu da consciência.
Quando me compreendo como a origem primeira de meu possível, isto é o que se chama de consciência de liberdade, caminho acima das conveniências sociais e dos padrões pré-estabelecidos. Somente com a consciência da liberdade, que é simultaneamente angustiante e prazerosa, posso ter um viver criativo e produtivo, como também fazer realmente a diferença frente à massa social.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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