(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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Lembro-me quando em 1988, os olhos do mundo se voltavam para o Chile, que sofria desde 1973 a cruel ditadura do general Augusto Pinochet. Perante a crescente pressão internacional , Pinochet foi obrigado a sujeitar-se a um referendo, a um ano de novas eleições presidenciais. Se o ‘Sim’ fosse mais votado, Pinochet governaria por mais 8 anos e o povo chileno continuaria sob seu tacão opressor. Com o ‘Não’, o ditador governava por mais um ano e não se recandidataria, realizando-se então eleições presidenciais e legislativas.
Rimos, celebramos e comemoramos naquele ano da graça de 1988. Bem diferentes os sentimentos de hoje, quando nos sentimos demasiado perplexos para chorar ou sentir raiva com o “Não” que derrotou os acordos de paz na sofrida Colômbia. O país vive sob a angústia do conflito com as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) há mais de meio século. Como é possível a população recusar um acordo que poria fim à Guerra mais longa do continuente, que já custou as vidas de mais de 200 mil pessoas?
O acordo era fruto de quatro anos de difíceis e sofridas negociações entre o presidente colombiano, Juan Manuel Santos, e o líder das Farc, Rodrigo Londoño, também conhecido como Timoleón Jimenez ou Timochenko. O Papa Francisco apoiava o acordo e havia declarado publicamente sua intenção de ir à Colômbia se ganhasse o “Sim”, como todos esperavam. No entanto, no último domingo, a opção por não ratificar o acordo foi escolhida por 50,2% dos votos válidos. A diferença entre o “Não” e o “Sim” foi pequena: menos de 60 mil votos.
A campanha pelo “Sim” mobilizou o mundo inteiro e, além do presidente Santos, tinha o apoio de uma série de políticos dentro e fora do país, incluído aí o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon. O referendo mostrou um pais rachado ao meio com metade aderindo à uma das opções. Sem contar a variável das abstenções que tiveram um nível altíssimo, mostrando claramente que o interesse pelos acordos de paz mobilizara mais a opinião pública internacional do que os colombianos.
O resultado mostra também que as feridas abertas pelo conflito permanecem latentes. Falou-se muito em perdão. O referendo, no entanto, demonstrou que perdoar 50 anos de agressões e violência não é fácil. Para muitos colombianos, havia manipulação nos acordos e temiam que a vitória do “Sim” desse às FARC um espaço político não necessário e mesmo perigoso: tornar-se partido político. Uma das cláusulas do acordo era que as Farc receberiam cinco cadeiras no Senado e cinco na Câmara nos dois ciclos legislativos seguintes. Além disso, o acordo previa igualmente que os culpados de crimes de guerra ou de crimes considerados contra a humanidade – tanto das FARC como das forças do Estado – não fossem presos.
O jesuíta colombiano Francisco de Roux, que muito tem trabalhado com as vítimas nas regiões arrasadas pela guerra, foi uma das pessoas que mais se empenharam pelo acordo de paz. De seus lábios saem palavras serenas e firmes nesse momento em que há tanta desolação no país: “Lutávamos para superar a crise espiritual que nos afundou na destruição de nós mesmos como seres humanos. Sonhamos que íamos dar um primeiro passo, aprovando a negociação com as FARC, mas não conseguimos como queríamos. Seguramente porque nós também formamos parte da crise como colombianos que somos. “
Por aí passa, parece-me, o caminho dos que realmente desejam a paz. Querem construí-la e por isso, como na bem-aventurança evangélica, serão chamados filhos de Deus. Francisco de Roux é um cristão. Há muitos que não necessariamente compartilham sua fé, mas creem, juntamente com ele e como ele, que a paz é possível e merece todo esforço para consegui-la.
Não é hora de apontar dedos e acusar uns e outros pelo fracasso do “Sim” na votação. É preciso ver que a Colômbia vive um problema sério de divisão interna e dificuldade de união. E cada um é parte do problema e não o contempla de fora, sem culpa, sem responsabilidade, sem implicação. Citando ainda o Pe. De Roux, “precisamente porque somos parte do problema, da crise, cresce hoje nossa responsabilidade em ser parte da solução.”
Quando a violência e a morte produzem tantas vítimas e tanto sofrimento não existe inocência. Somos todos responsáveis, estamos todos implicados. A desculpabilização universal, resultado de má leitura dos mestres da suspeita, ameaça atirar-nos em uma atitude distante e indiferente, não assumindo como nossos os erros daqueles que são nossos irmãos em humanidade, por muito que nos choquem alguns de seus gestos e atitudes.
À tristeza inicial, à decepção, ao desapontamento que certamente hoje são o pão amargo de tantos colombianos que anseiam pela paz tem que seguir-se uma continuação da luta pela paz, com serenidade forte e criativa. Jesus de Nazaré, Príncipe da Paz, seguramente vela pelo povo colombiano e lhe concede seu Espírito que, como diz a sequência da festa de Pentecostes: “…dobra o que é duro, guia no escuro, aquece no frio”. A Pátria Grande se solidariza com a Colômbia e assume com ela a continuação da caminhada em direção à paz tão desejada.
Obs: A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão” (Edusc)
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