IvoneGebara

Nem todos os centros e nem todas as periferias são iguais.

As periferias nas quais vivemos raramente nos fazem pensar que são periferias. Tornam-se nosso lugar, nosso chão, nosso centro e as pessoas que lá convivem nossas vizinhas e amigas. Os morros, a vegetação, as escadarias, os buracos, os cheiros e até a sujeira das ruas são familiares.

Nossa periferia vivida é o centro do mundo, o meio da história, o planeta terra no imediato. Os acontecimentos do cotidiano, tristes ou alegres, é que tocam mais de perto a vida da gente. Cartões corporativos, novos partidos, falta de fidelidade partidária, vazamento de informações dos Ministérios, a disputa pela Casa Branca, a guerra no Iraque, o novo planeta descoberto não são o centro da vida, mas a periferia do mundo.

Tudo é relativo ao lugar em que estamos, às voltas da vida em nós, aos encontros formais e informais que temos, as coisas que buscamos e amamos. Nosso primeiro centro é a nossa vida imediata lá onde é vivida. Nossa preocupação maior é com nosso corpo, a nossa casa, o nosso emprego, a nossa fome, a briga que aconteceu na rua, o jovem assassinado filho de Dona Margarida… Nosso centro imediato é o lixo que não foi recolhido, as poças de água na rua atraindo mosquitos, o ônibus que atrasou de novo, a professora que não veio assumir a classe, a fila enorme no posto de saúde, a vontade imensa de tomar uma cerveja, a tristeza de ter perdido o namorado…

A periferia para quem mora lá tem violência, mas não é violenta. Não dá sempre medo, embora às vezes, quando a cachaça e a droga rolam soltas e os justiceiros assumem suas tarefas, chegue até a apavorar os próprios moradores. E eles mesmos são capazes de lançar pragas ao lugar onde vivem ou de buscar saídas onde parecem não existir.

A periferia torna-se periferia perigosa para quem quer dominá-la a partir de fora, para quem produz e vende notícia e só busca nela o que quer encontrar. Raramente vêem outra coisa. Raramente descobrem um outro rosto de humanidade, de arte, de capacidade de resistir na vida diante das dificuldades cotidianas. Raramente descobrem o humor e as mil e uma formas de amor. Desconhecem que a periferia tem sua arte, sua música, sua medicina, sua cultura misturada, suas religiões coexistindo ora em paz ora em conflito. Não sabem que a periferia, da qual têm medo, real ou produzido, é um caldeirão de riqueza, uma exposição de beleza e de solidariedade.

Quem define a periferia como periferia? E é periferia de quem? Quem é o centro? E quem determina o centro como centro?

Para muita gente que vive na chamada periferia, o centro é o lugar do comércio, o centro urbano aonde chegam os ônibus, o lugar distante onde muitas vezes é esquisito andar à noite ou de madrugada. Este centro é um lugar que foge ao cotidiano doméstico, familiar, aconchegante, conhecido.  Este centro é algo muitas vezes inevitável: “trabalho no centro”, “tenho que ir para o centro”, “não gosto de passar pelo centro”, “tem muita confusão no centro”.

A sociologia política construiu o centro como o lugar do poder, o lugar das grandes decisões, o lugar onde vivem os privilegiados, os que exploram o suor e o sangue dos habitantes da periferia. As religiões, por sua vez, não ficaram fora dessa dinâmica entre centro e periferia. Construíram seus centros de poder aparentemente longe da periferia. São esses centros que pretendem difundir suas visões e ordens para as periferias. Julgam-se o primeiro círculo da pedra salvadora jogada por Deus no lago da vida. Fazem-se o círculo central que determina a multiplicidade dos círculos concêntricos. Não acreditam nos círculos distantes do centro, mesmo quando se instalam nas periferias. Temem que as periferias não aprendam as lições do centro e provoquem desvios de doutrina e de poder.

A maioria das pessoas seduzidas pelo consumismo imposto pelo centro, não percebe que muita arte nasce das periferias, muita política do bem comum nasce muitas vezes da contestação presente naqueles lugares que não são o centro do poder, que não casam com ele, que não o legitimam.

A boa política se impõe a partir das periferias do poder. A boa arte é quase sempre periférica. A boa literatura igualmente. Mostram o lado obscuro da vida, o rosto oculto da maldade, o espetáculo da podridão dos centros, o pluralismo da beleza não reconhecida. É da periferia que se ouve o grito “não ficará pedra sobre pedra”. É da periferia que nasce o sonho de um “novo céu e de uma nova terra”.

Não seria ingênuo achar que o centro que crê dominar, domina realmente? Apesar de todas as ambigüidades e contradições não foi a periferia central do mundo que destruiu as torres gêmeas? Não foi o operário que se tornou presidente? Não foi o presidente que se tornou ladrão, carrasco e ditador?  Não foi do cárcere que nasceram obras de arte? Não foi dos campos de concentração que nasceram gestos de ternura e de justiça?

Centros e periferias se tocam, se confundem, se atravessam,  se transgridem, se recriam, se cruzam e descruzam.

Nos centros e periferias do mundo fala-se do poder das massas. De que massas? Das centrais ou das periféricas? Das maiorias ou das minorias? E nesse poder quem tem medo de quem? Quem manda em quem? Quem obedece a quem? Seria o centro masculino do mundo ou o centro feminino das periferias? O computador ou a biblioteca? Imaginem uma pane elétrica nos computadores de uma grande Universidade. O computador central não funcionará por dois meses… Volta-se à dinossaurica biblioteca, ao manuseio dos livros, ao cheiro da naftalina, à textura do papel, ao aprendizado lento da pesquisa… Voltamos à periferia da história? Lugar que fora outrora central e depois foi destronado pelos computadores… Voltamos a usar o lápis, a reaprender a escrever com a mão, a anotar, a resumir, a comparar, a consultar com mais vagar…

Onde está o centro e onde está a periferia?  Tudo depende do lugar em que estamos.

E se eu perguntasse a alguém: onde moras?

– Moro no centro, no cortiço central, lá onde a cidade começou…  E você?

– Eu, eu moro fora do centro, num lugar calmo e tranqüilo; um jardim paradisíaco, com vigias bem armados apesar de suas faces angélicas Guardam os portões de entrada que  abrem com senhas pessoais incluindo senhas para as crianças. Nenhum intruso pode entrar. É uma periferia distante, bem guardada de qualquer invasão dos bandos de desocupados do centro. Lá não há viadutos, nem pontes, nem túneis que servem de moradia para os mal-cheirosos sem teto do centro. Lá só vivem famílias, gente de bem, gente honesta, educada, gente limpa, sadia… Todos trabalham em grandes multinacionais. São executivos de categoria. Todos falam inglês até em casa. Lá, todos compram no mesmo supermercado especializado em alimentos de primeira classe. O pão e a carne chegam diariamente à suas casas, embalados higienicamente. O carro de distribuição tem uma senha especial para entrar…  Tudo é bem ordenado, cronometrado, previsto.

São estas as periferias onde domina a quase monotonia. Nela impera a ditadura da ordem fictícia. A fuga da história real. O Paraíso artificial. A preservação e os preservativos em intensidade máxima. O estado de guerra disfarçado em paz.

O pensamento crítico convida à consciência de um mundo plural, a necessidade de rever nossas análises e nossos conceitos. Necessidade de misturá-los à complexa mistura da vida. Viver é difícil… já dizia o filósofo Riobaldo, de Grande Sertão, Veredas… E nessa dificuldade há os que preferem ouvir o forró da esquina, o samba de brega do boteco, o conjunto barulhento que os moços do bairro organizaram, o cheiro do suor da gente nos ônibus… E outros preferem ou apenas sonham com a proteção dos novos campos de concentração, ricos e decorados, suntuosos e confortáveis, guardados por senhas a partir das quais somos de novo números vivendo num céu ilusório. Preferem talvez a fantasia da segurança e a falsa crença de que é preciso separar centros de periferias, pois lá vivem pessoas superiores e inferiores que precisam ser protegidas umas das outras.

Enquanto persistirem estas crenças separatistas não haverá salvação para os humanos! Estaremos sempre em guerra, sempre roubando a terra, a comida e a roupa uns dos outros, sempre vivendo na ilusão do poder e da segurança dos alarmes, das armas e dos exércitos.

Se continuarmos assim é melhor que a ferrugem destrua as riquezas acumuladas, que as traças festejem roendo as notas de dólares, de euros e de reais que não serviram para levar o pão e o vinho às mesas, e que formigas, gafanhotos, zangões e outros bichinhos invadam as moradias suntuosas que se levantaram no lugar das florestas, e que as águas desviadas dos muitos rios resolvam tomar posse de seu leito e destruam as plantações das Fruits Corporations, das Aracruz e de tantos nomes estranhos que se impuseram ao coração de nossa terra.

Apesar deste simbólico apocalipse final, há algo de novo que parece estar nascendo em nosso mundo… Ouçam os raps dos morros e aqueles dos cortiços e aqueles que se espalham pelos campos longínquos… Vejam os corpos se movimentando de novo, observem as novas danças ao som das violas, cavaquinhos e tambores. Guardem a nova poesia na memória… Estudem sua letra e sua rima… Não haverá algo novo vindo dos centros periféricos e das periferias centrais de nosso mundo?

Obs:  A autora é  escritora, filósofa e teóloga.
Texto publicado na Revista Tempo e Presença (abril/2008)

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]