IvoneGebara

Será que ainda precisamos de canonizações? Não seriam elas algo contra a afirmação da liberdade como prerrogativa dos seres humanos? Será que necessitamos cerimônias tão pomposas, com a presença de chefes de estado, embaixadores, reis e príncipes para, na aparência, corroborar tais ações do papa?

A multidão de fiéis na Praça de São Pedro foi impressionante no último vinte e sete de Abril. A força do catolicismo reapareceu de novo publicamente em todo seu vigor, particularmente no seu poder de propor aos fiéis vivos sua adesão a alguns mortos como símbolos de um cristianismo/catolicismo bem vivido. João XXIII e João Paulo II foram elevados ao altar e agora são “sujeitos” de veneração do povo católico de todo mundo. Muitas dúvidas e críticas assim como adesões e elogios circularam pelos meios de comunicação social em relação aos nomes indicados. Não há como chegar a um consenso de opiniões dada a pluralidade do “Povo de Deus”. A hierarquia clerical responsável pelas decisões é que julgou as indicações e tomou a decisão final executada pelo papa em missa solene. Não sei se os hierarcas se lembraram das devoções dos mais pobres pouco afeitos a venerar papas, muitas vezes identificados a reis e senhores poderosos. As devoções dos pobres são mais ligadas a Virgem Maria, a Jesus e aos santos mais tradicionais como São Francisco, São José, Santo Expedito que acreditam ser mais capazes de entender seu quotidiano sofrido.

As questões que levanto fogem até certo ponto dessa polêmica entre nomes indicados e querem abrir-se a outra problemática. Podemos imitar os santos, os mártires, os heróis, os grandes líderes? Como se faria isso? Seriam eles, depois de mortos, proprietários de qualidades superiores e isentos dos limites de sua própria história? Não estaríamos nós alienando nossa responsabilidade histórica e pessoal de reconhecer que cada um de nós tem que viver sua história e suas opções? Não estaríamos deixando de lado as ações de mulheres e homens na construção de nossa história atual para seguir modelos que embora tenham tido o seu valor não poderão ser imitados? O que imitar neles? E como fazê-lo de fato? As perguntas são existenciais e não abstratas, visto que vão exigir comportamentos pessoais em nossa história atual.

Na proposta de imitação como propõem alguns grupos da Igreja Católica certamente não entram considerações mais críticas em relação aos escolhidos para a santidade. Por que não chamar a atenção também dos erros cometidos no passado que não deveriam ser repetidos? Perceberíamos talvez com mais clareza a mistura e a contradição presentes no ser humano e em suas ações. Mas, provavelmente esse procedimento crítico e realista macularia a figura do santo ou do herói e fugiria do esquema de perfeição dualista presente na Igreja. Fugiria igualmente da oposição firmemente mantida pela maioria entre céu e terra, entre Deus e os homens, entre o bem e o mal, entre anjos e demônios. De fato admite-se nos ambientes de Igreja que o santo ou o herói não tenham sido perfeitos, mas não se fala em direto do que poderia ter sido evitado ou do que pode parecer criticável em vista do bem comum situado e datado. Os escolhidos para a santidade institucional aparecem como protótipos do bem, da coragem, da justiça de forma que suas fraquezas e covardias não aparecem. Mais uma vez o “homem ideal” ou idealizado assim como “a mulher idealizada” segundo alguns parâmetros estabelecidos torna-se modelo para os fiéis. Esse modelo foge do ordinário da vida e é capaz de acentuar sacrifícios inúteis e neuroses de muitos tipos nos fiéis. Conhecemos, além disso, a vida de santos/as que se infligiram torturas e sacrifícios corporais que já não há como imitar.

Intuo que muitas vezes estamos pouco conscientes do significado alienante das imitações. Ao imitar alguém deixo de mostrar meus dons pessoais, deixo de lado minha maneira própria de ser, deixo de reconhecer minha capacidade pessoal e, de certa forma me diminuo buscando na pessoa alheia minha realização pessoal. A imitação proposta no catolicismo não é a arte do teatro em que o ator ou a atriz interpretam um romântico apaixonado ou um carrasco ditador e depois voltam a ser atores à espera de novos papéis. A imitação que a Igreja propõe é uma espécie de conformidade a um ideal de vida considerado mais perfeito que outro e por isso digno de ser imitado. Sem dúvida muitos fiéis sabem que certas vivências pessoais e escolhas não podem ser imitadas. Nesse caso, exaltam-se as virtudes que presumidamente o santo/a teria vivido e essas virtudes passam a ser proclamadas porque fortalecem as convicções da instituição religiosa. É interessante notar que a virtude da obediência a um modelo de ser humano que a Igreja considera mais próximo da vontade divina parece ser uma constante nos modelos de santidade. Os santos são, salvo excepções, submissos à Igreja hierárquica e se não foram em vida passam a ser depois de mortos. A vida do santo/a é reinterpretada de forma a servir aos interesses e aos valores defendidos pela instituição.

Outra questão é a de saber que critérios seguir para elevar aos altares e decretar que a vida dessa pessoa é digna de imitação. O que motiva algumas pessoas a quererem tornar santo ou santa a uma outra pessoa? Pensariam elas que isso promoveria e acrescentaria valor e glória aos fiéis defuntos? Que razões tem o papado para acolher e decretar sua santidade? Como podem os juízes de uma causa de beatificação ou de santificação julgar que aquele indivíduo foi agradável a Deus? De que Deus se está falando? Que modelo de Deus está em jogo? Que implicações políticas e econômicas têm essas ações que de repente introduzem uma auréola na cabeça de um “morto” e mandam imprimir santinhos para serem vendidos ou distribuídos aos fiéis? Tudo isso sem falar dos extraordinários milagres muitas vezes exigidos como forma de provar a santidade de alguém.

Por que não falar que as pessoas e nelas se incluem certamente os que já saíram fisicamente dessa história nos inspiram, nos ajudam a carregar nossos fardos, nos ensinam conforme nossas necessidades. A inspiração parece um fenômeno que indica maior liberdade do que a imitação. Mas, as canonizações não vão por esse caminho. Têm a ver com Canon, com leis que se estabelecem para os fiéis mesmo que se diga que cada um é livre de acolher ou não a vida deste ou daquele santo como seu modelo.

Tenho consciência de ter mais perguntas do que respostas e nas perguntas manifesto minha inquietação em relação aos rumos que está a tomar o papa Francisco em relação ao lugar das devoções na vida dos católicos. Embora reconheça a qualidade de sua pessoa, de seus discursos e ações em relação aos pobres desse mundo inquieta-me a contradição de sua teologia. E essa contradição, a meu ver, diminui a força de sua palavra, sobretudo quando falamos de justiça nas relações humanas.

Às vezes tem-se a impressão de que o papa é cativo de um esquema religioso estabelecido e consagrado pelo Vaticano. Por mais que ele tente quebrar as hierarquias e os formalismos com gestos mais simples, em situações como as canonizações, ele rende-se a esses procedimentos e torna-se publicamente conivente com eles.

Será que ainda precisamos de canonizações? Não seriam elas algo contra a afirmação da liberdade como prerrogativa dos seres humanos? Não reforçariam as hierarquias tão presentes em nosso mundo, hierarquias que excluem que privilegiam e que marcam diferenças sociais e às vezes até ontológicas entre as pessoas?

Será que necessitamos cerimônias tão pomposas, com a presença de chefes de estado, embaixadores, reis e príncipes para, na aparência, corroborar tais ações do papa? Sem dúvida muitas pessoas julgam tudo isso, um reconhecimento do poder da Igreja e, sobretudo o reconhecimento das virtudes e qualidades dos candidatos a santos e santas. Vive-se ainda na necessidade da adoração de pessoas tanto a nível político, artístico e religioso. Não se trata aqui de negar aos diferentes grupos o direito de constituir um fã clube religioso, mas sim de ajudá-las a desenvolver uma reflexão que as torne mais libertas e responsáveis pelos destinos do mundo e por sua vida pessoal.

Mais uma vez somos convidados/as a pensar, a tentar compreender melhor o que nos acontece e o que nos é proposto. A fé não pode ser o esquecimento de nossos valores historicamente situados, ela não pode se reduzir a uma adesão ao projeto do outro por melhor que ela/ele seja. A fé não é algo banal, mas vital. A fé não é escuridão e obediência cega, mas acolhida da vida na sua diversidade de aspectos, acolhida da originalidade de minha pessoa, de meu caminho, de suas luzes e sombras. Mas tudo isso, não nos esqueçamos, habita na diversidade da vida, irredutível a um modelo único, a uma forma única, a uma linguagem única.

Creio que é preciso pensar mesmo sabendo que os pensamentos de muitos não influenciam a massa e nem as hierarquias. Não podemos abrir mão da dignidade e da grande aventura de poder pensar e repensar a vida, de senti-la desde lugares e formas diferentes e de assumir a parte que nos cabe em nosso pedaço de chão. Tal postura tem consequências em nossas vidas, em nossas crenças e na relação que mantemos com pessoas e instituições. A vida não nos pede que conformemos nossa própria vida à de outros, mas que deixemos florescer a originalidade que nos constitui regada pela contribuição e inspiração de muitos/as(.Maio 2014)

Obs:  A autora é  escritora, filósofa e teóloga.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]