foto Aurelio Molina entrelaços

Não concordo e nem pratico o chamado “culto à personalidade”. Todos nós, seres humanos, temos qualidades e defeitos. Alguns têm um pouquinho mais predicados do que a média. Outros, mais pecados que a maioria. Entretanto, somos todos, sem exceção, vergonhosamente imperfeitos. Somos capazes dos atos mais dignificantes e sublimes, mas também dos mais mesquinhos e cruéis. A história da humanidade é a prova cabal desta afirmação e nada que venha dos seres humanos me assombra, pois como dizia Rui Barbosa “o homem é o erro em procura da verdade”. Ainda somos um animal em evolução que precisará de milhares de anos de educação, cultura e de culto às virtudes para que alguns dos seus genes mais primitivos e selvagens se tornem desnecessários e desapareçam do genoma humano ou sofram mutação ou se tornem inativos. Entretanto, após assistir a duas escolas de samba comemorando 100 anos de nascimento de Miguel Arraes de Alencar, peço vênia para através do compartilhamento de algumas passagens também homenageá-lo. O ano era 1986 e o “cenário” composto pelo grupo que preparava uma proposta de governo na área de saúde. Após a apresentação da sugestão de programa, construído com muito trabalho e longas discussões por vários importantes e competentes técnicos, sanitaristas, profissionais de saúde e intelectuais, Arraes pigarreia e pede a palavra: – Muito bom, mas não ouvi nada sobre água. … Ahn? … Não entendi! … Como assim? … foram algumas de nossas silenciosas indagações e exclamações. Estavam ali as melhores novas propostas organizacionais sobre os serviços de saúde e a pergunta era sobre… água? E Arraes continuou, com sua voz rouca e grave: – Como vocês sabem, saúde é consequência de várias coisas. E uma das mais importantes é água. Sem acesso a ela fica difícil ter saúde e eu ouvi vocês por quase uma hora e não escutei nenhuma referência à água. Não me recordo se ele falou mais alguma coisa. Acho que sim e, talvez, muito. Mas assim como eu, muitos ficaram completamente “desconcertados” com sua sabedoria sertaneja, pois ele tinha total razão. Era um conceito básico e a gente tinha “passado batido”. Outro episódio digno de menção e reflexão aconteceu quando da intervenção estadual no Município de Jaboatão, em 1988. A equipe escolhida era formada, na sua maioria, por jovens entusiastas e idealistas querendo mostrar serviço. E lá fomos nós para o Palácio do Campo das Princesas para sermos oficialmente apresentados ao Governador de Pernambuco. Depois da fala introdutória do interventor e da apresentação pessoal de cada um, Arraes (que era conhecido por ser exigente e cioso com qualidade e resultados) inicia sua fala com a seguinte frase: “Administrar bem é muito importante, mas mais importante é ajudar na organização do povo, pois é o povo organizado que faz as mudanças tão necessárias”. Esta afirmação “emoldura” todas as diferenças entre um gestor apenas técnico e um estadista quando administra a coisa pública. E para aqueles que, equivocadamente e com preconceito, o viam como um coronel político extemporâneo ressalto sua erudição, seu empreendedorismo e sua capacidade de inovação em políticas compensatórias. Leitor habitual dos melhores articulistas de revistas e jornais nacionais e internacionais, na lide política diária utilizava-se tanto dos ensinamentos de Maquiavel quanto dos de Sun Tzu, general e estrategista chinês, cujo livro mais famoso (A Arte da Guerra) li por sua sugestão, estando sempre “antenado”, não só ao cotidiano e desafios imediatos do povo pernambucano e brasileiro, mas também à geopolítica internacional que, claro (e ele o sabia muito bem), estão todos interligados e interdependentes. Seu empreendedorismo pode ser dimensionado na sua obstinação de levar luz e água para todos (priorizando as regiões rurais) superando qualquer obstáculo. A criação de políticas compensatórias, como o programa Chapéu de Palha, criticadas à época por adversários tanto à direita quanto à esquerda do espectro politico, vieram a ser fonte de inspiração para muitos outros programas reconhecidos e exaltados, inclusive por instituições de grande representatividade mundial. Ele, que não admitia ter inimigos (apenas adversários políticos), tinha uma enorme capacidade dialógica (ao contrário do que alguns pensam) que muitas vezes não era exercitada pelo receio de alguns correligionários e colaboradores de, ao discordar de suas opiniões, ficarem vulneráveis a possíveis poderosas tréplicas embasadas numa experiência prática e teórica invejável para qualquer ser humano. Mesmo assim fui testemunha de vários ricos diálogos nos quais duas de suas Secretárias de Estado acabavam convencendo-o a seguir uma caminhada diferente da inicialmente defendida por ele, mesmo sabendo estarem diante de um notável cidadão do mundo, daqueles que Brecht considerava imprescindíveis. Daqueles que tinha princípios tão sólidos que nem mesmo a perseguição de dois ex-presidentes aos seus governos conseguiu faze-lo trair seus ideais iluministas e republicanos de liberdade, igualdade e fraternidade. Daqueles que, como o poeta, tinha apenas duas mãos e o sentimento do mundo. Saudações, Dr. Arraes! Sua vida, obra, exemplo e compromisso com uma sociedade mais justa “fizeram a diferença” para milhões de pessoas.

(Publicado no Diário de Pernambuco, 01/03/2016 página A2)

Obs: O autor, Prof. Dr. Aurélio Molina, Ph.D pela University of Leeds (Inglaterra) é membro das Academias Pernambucanas de Ciência e de Medicina.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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