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HINO DO RIBEIRÃO BONITO E REDONDEZAS

Ribeirão Bonito, Cruz do Padre João, alta Cascalheira, gentes do Sertão
O suor e o sangue fecundando o chão.
Mãe Aparecida, o profeta João, Terra da Esperança, povo em mutirão,
Igreja dos Pobres em Libertação.

1. Os índios pais banhavam sua vida nas águas livres deste Ribeirão.
Filhos da Liberdade já perdida, a injustiça nos banha em poeirão.
2. Sempre tocados, retirantes fomos, mas chega o dia de firmar o pé.
Ninguém é mais do que também nós somos, filhos de Deus, iguais à luz da fé.
3. Da União fazemos nossa força; da Liberdade nosso novo ar.
A terra que é de Deus é também nossa. Quem sabe ser irmão, pode ficar.
4. Festando a Páscoa em cada Eucaristia, sentindo o Cristo vivo em cada irmão.
A Igreja se constrói no dia a dia de um povo que labuta em mutirão.

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De 15 a 30 de Julho passado, estive na Prelazia Católica de São Félix do Araguaia para colaborar em encontro de formação teológica de agentes de pastoral. Uma experiência que já vem se repetindo desde alguns anos atrás. Desta vez, de 15 a 17 tivemos a Romaria de Mártires da Caminhada que acontece de cinco em cinco anos, no Santuário de Mártires da Caminhada. Éramos cerca de 3.500 pessoas, vindas de vários países e de grande parte do Brasil, talvez da maioria dos estados. A Romaria manifesta de maneira particular o rosto da Prelazia. Neste ano coincide com a celebração de quarenta anos do martírio do Padre João Bosco Penido Burnier, jesuíta assassinado por um soldado de polícia quando ele e o heróico bispo Dom Pedro Casaldáliga estavam no recinto da delegacia de Ribeirão Bonito para protestar pela prisão de duas mulheres que eram torturadas por não revelar o esconderijo de seus maridos perseguidos no conflito entre lavradores e grandes proprietários de terra. Também há quarenta anos foram assassinados na Prelazia o índio Simão Bororo e o padre Rodolfo Lunkenbein. Os bispos presentes à Romaria éramos sete: Dom Pedro, já em seus 88 anos, com a saúde fragilizada, mas intensamente envolvido na preparação do evento; Dom Adriano, atual bispo da Prelazia; Dom Leonardo, atual secretário geral da CNBB e ex-bispo da Prelazia; Dom Roque, arcebispo de Porto Velho, Rondônia, presidente do CIMI (Conselho Indigenista Missionário); Dom Eugênio, bispo de Goiás; Dom Vilar, bispo de Cáceres, com um grupo de jovens leigos e leigas, há um mês em missão no Mato Grosso, na Prelazia; e eu, bispo anglicano.

Os bispos presentes fomos convidados a partilhar a palavra após a leitura do Evangelho, dirigindo ao povo breve saudação. Minha fala foi a seguinte: Apenas duas palavras. A Romaria nos confirma no ensinamento do Apóstolo São Paulo em Romanos 12, 1-2: “Ofereçam o corpo de vocês como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, este é o sacrifício coerente da parte de vocês. E não se deixem moldar pelas estruturas do sistema deste mundo, mas transformem-se pela renovação profunda de sentimentos e pensamentos a fim de poder discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, agradável e perfeito”. Nosso culto é a oferta quotidiana de nossos “corpos”, isto é, de nossas relações e tarefas quotidianas. A Romaria é expressão de nossas opções e ações em solidariedade com a luta de nossa gente. Aqui, nesta celebração da Santa Eucaristia, confirmamos e aprendemos que “adoração a Deus se dá ‘em espírito e em verdade’, pela participação na luta do povo”. Vamos repetir em conjunto: adoração a Deus se dá pela participação na luta do povo. Fora disso, qualquer culto não passa de idolatria. Pois a vida do povo pobre e a causa de sua libertação têm de estar no coração, no centro da vida da Igreja de Jesus. A segunda palavra: Aqui temos a graça de experimentar, no gesto vivo de caminhar em unidade, carregando a memória de nossos mártires, nós que viemos de tantos diferentes lugares e somos gente tão diversa e ecumênica, aqui contemplamos no hoje da romaria a Igreja do amanhã. Vamos repetir em conjunto: “Contemplamos no hoje da romaria a Igreja do amanhã”. Igreja comprometida com as causas do povo, testemunha do Evangelho, militante, ecumênica e plural. Todos e todas nós somos membros desta Igreja de São Felix do Araguaia.

As duas canções, aqui reproduzidas, podem ser tomadas como “imagem” típica, expressão simbólica da Prelazia, ambas criação de Dom Pedro Casaldáliga, de quem é também a mensagem destinada a peregrinos e peregrinas da Romaria de 2016:

“Possivelmente seja essa, para mim, a última romaria pé no chão. A outra já seria contando estrelas no seio do Pai. De todo modo, seja a última, seja a penúltima, eu quero dar uns conselhos. Velho caduco tem direito de dar conselhos…
E a memória dos mártires, o sangue dos mártires, mais do que um conselho, é compromisso que conjuntamente assumimos, ou reassumimos. São Paulo, depois de tantos dogmas que anuncia, tantas brigas teológicas, tantas intrigas por cultura, dá um conselho único: “o que eu peço de vocês é que não esqueçam dos pobres”; o que eu peço de vocês é que não esqueçam a opção pelos pobres, essencial ao Evangelho, à Igreja de Jesus”. A opção pelos pobres. E esses pobres se concretizam nos povos indígenas, no povo negro, na mulher marginalizada, nos sem-terra, nos prisioneiros…, nos muitos filhos e filhas de Deus proibidos de viver com dignidade e com liberdade.
Eu peço também para vocês que não esqueçam do sangue dos mártires. Tem gente, na própria Igreja, que acha que chega de falar de mártires. O dia que chegar de falar de mártires deveríamos apagar o Novo Testamento, fechar o rosto de Jesus. Assumam a Romaria dos Mártires, multipliquem a Romaria dos Mártires, sempre, recordemos bem, assumindo a causa dos mártires. Pelas causas pelas quais morreram, nós vamos dedicar, vamos doar, se for preciso morrer, a nossa própria vida também…
E ainda uma palavra: há muita amargura, muita decepção, há muito cansaço… Isso é heresia! Isso é pecado! Nós somos o povo da esperança, o povo da Páscoa. O outro mundo possível somos nós! A outra Igreja possível somos nós! Devemos fazer questão de vivermos todos cutucando, agitando, comprometendo. Como se cada um de nós fosse uma célula-mãe espalhando vida, provocando vida. A Igreja da libertação está viva, ressuscitada porque é a Igreja de Jesus. A teologia da libertação, a espiritualidade da libertação, a liturgia da libertação, a vida eclesial da libertação não é nada de fora, é algo mui de dentro, do próprio mistério pascal, que é o mistério da vida de Jesus, que é o mistério das nossas vidas.

Para todos vocês, todas vocês, um abraço imenso, de muito carinho, de muita ternura, de um grito de esperança, esse cantar viva a esperança que seja uma razão… Podem nos tirar tudo, menos a via da esperança. Vamos repetir: “Podem nos tirar tudo, menos a via da esperança!” Um grande abraço para vocês, para suas comunidades, e a caminhada continua! Amém, Axé, Awere, Saúde, Aleluia!
Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia

HINO DA PRELAZIA DE SÃO FÉLIX

Do Araguaia até o Xingu, do Pará ao Travessão: Prelazia de São Félix,
Povo de Deus no sertão! Nas águas, na terra, na Ilha, na Serra;
na mata, na aldeia, na rua, na estrada;
um só Povo em caminhada,
que lutando, unido vai, buscando a Casa do Pai!

  1. O Senhor Ressuscitado nos tirou da escravidão
    pra vivermos libertados do pecado e da opressão.
    2. Batizados no seu Filho, o Pai nos faz filhos seus
    E nos irmana o Espírito na Igreja, Povo de Deus.
    3. A luta do dia a dia nos faz irmãos dos irmãos
    E a Páscoa da Eucaristia confirma nossa união.
    4. Se acreditamos no homem é porque cremos em Deus
    Queremos nova esta terra, porque esperamos os céus.

Finalmente, durante os dias em São Félix, nasceu-me uma espécie de relatório da Romaria em forma de quase-poema. Tomo a liberdade de publicá-lo para que mais gente tenha a oportunidade de, ao menos, sentir o “aperitivo” do evento e assim saborear algo do que experimentamos em Ribeirão Cascalheira, sede do martírio do padre João, parte da heroica Prelazia de São Felix do Araguaia:
ROMARIA DE MÁRTIRES DA CAMINHADA

“Profetas/Profetisas do Reino
povo em romaria
feito rios que correm
de longe, de repente
a enchente
da multidão, afluentes
de distantes nascentes,
desde longínquas terras
d’África, Alemanha, Argentina, Bolívia
Chile, Colômbia, França, Peru
e dos muitos rincões do Brasil:
do Quilombo
das “aldeias”
da roça,
das margens das cidades
da rua
dos “movimentos” (quanta juventude!)
das Igrejas (quantas “pastorais”!)
das comunidades…
gente de muitas gentes
a desaguar no “bonito Ribeirão
Cruz do Padre João”
mais de três mil
gotas de esperança
“coluna de fogo”
na escuridão
das incertezas da estrada
teimosia
na alegria
firmes os pés na caminhada
de tanto sangue e lágrima
derramada.

O escuro da noite
rasgado
pelo vermelho de fogo
de vestes, estandartes e cartazes
como as damas do Evangelho
lâmpadas em punho
subversiva memória
de sangue derramado
de mártires
“presentes na caminhada”
profético anúncio
de vidas fecundas, ardentes
caídas quais sementes
no chão de nossas vidas
“vidas pelo Reino, vidas
pela Vida”.

Cantar a misteriosa poesia
da coragem
do martírio
era rir da ilusão
dos ídolos da opressão
nas lágrimas das velas
era chorar a impotência
de um povo sem rumos
carente de organização.

Até quando, Senhor?
Tantas vidas imoladas
nos altares
do latifúndio
da monocultura
do trabalho escravo
das Igrejas cegas
do capital servas
da “economia que mata”
que destrói a mata
esgota as águas
envenena o ar
profana a terra
derrama o sangue
de tantos e tantas jovens
da massa da gente pobre
e de homens e mulheres
em aliança nobre
todos, todas
a trazer na fronte
a rubra marca
de ao Cordeiro pertencer
para com a terrível Besta
não se parecer.

O sangue de Abel
sobre nós se asperge
da fonte que brota
tal água corrente
aos pés da Cruz
Abel é Jesus.

“Na terra vermelha
descalço” e frágil
assentado na cátedra
da dor
pela esperança curada
palavra viva de herói da fé
tal Agostinho de Cantuária
em trono de pedra talhada
Pedro
rocha inabalável
dos fundamentos da Igreja
tirada.

Na terra de Pedro
confessor da fé
Pedro, o guarani
na ceia-memória do Sacrifício
qual bloco de pedra
inteiro de coragem
a vida toda em oferta nas mãos
nos quebranta e exalta
longe nos atira
assassina bala ao apontar
silenciosa a repousar
alojada
feito hóspede de honra
bem juntinho do coração:
“Até quando?
Sinto doer
sem forças
já não posso correr
a qualquer momento
matar-me é seu poder
mas não vou me render
de meu povo defender”.

Até quando, Senhor?
Quando a romaria
afinal será Êxodo
da multidão
à Terra em direção?
Quando seremos “torrentes
no deserto”?
Quando, Senhor, vamo-nos deixar
por Ti conquistar?
Quando do alto
do sonho e do símbolo
o povo passará
no chão a lutar?
Quando o preço do sangue
terá comprado
dos pobres a organização?
Até quando, Senhor?
Com das testemunhas a unção
apressa-nos os passos
na caminhada da Libertação!

Dom Sebastião Armando
Ribeirão Cascalheira, Mato Grosso, domingo, 17 de Julho, 2016

Obs: Imagens enviadas pelo autor.
Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB…..

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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