foto josue voeira

Henri Lefebvre em sua obra “Direito a Cidade” (2001) expõe uma máxima interessante, eis: se uma das garantias da cidade é permitir ao cidadão habitar, então essa garantia capacita o eleito a ter direito à cidade, exercer sua objetividade, assim como imprimir nos espaços da cidade a subjetividade existencial.

Contextualizando essa máxima, a realidade brasileira aponta para um déficit habitacional muito grande nos dias atuais, segundo pesquisa do ano de 2011 feita pela Fundação João Pinheiro, naquele ano o déficit habitacional no Brasil era de 5,6 milhões de domicílios, dos quais 82% estavam localizados em áreas urbanas.

A realidade é posta, muitos não possuem o direito à habitação ou quando possuem ela é tomada pela atmosfera pauperizada, consequentemente o direito à cidade é desregular e seu exercício atravancado em descompassos. Pensar a questão da habitação na contemporaneidade é vislumbrar não só as garantias externas aos cidadãos é, também, visualizar a projeção do Sistema sobre o território. É entender que a habitação é uma questão chave para a compreensão dos limites sociais, bem como das desigualdades ocasionadas pelos modos de produção do espaço urbano.

Porque como Sistema projetado no território, a habitação dentro da cidade é resultado da integração de uma “ordem distante” com uma “ordem próxima”. Lefebvre (2001) acredita que a “ordem próxima” se estabelece na relação entre os indivíduos, enquanto a “ordem distante” se forma pelos condicionamentos relacionais das Instituições representativas da sociedade.

No estágio presente do capitalismo a cidade é consolidada pela primazia do valor de troca em detrimento do valor de uso. Sobre o direito à habitação, a “ordem distante” consegue impor-se no território construindo uma cidade fragmentada e altamente segregada do ponto de vista socioespacial.

Em “A Revolução Urbana” (1999) Henri Lefebvre acredita que o atual estágio não deve ser compreendido isolado, como um sistema fechado, apesar de que essa noção se impõe na formatação atual das cidades dentro do capitalismo. É funcional e fundamental compreender a contemporaneidade das cidades como resultado de um processo de desenvolvimento sustentado em flexões e inflexões do território e da urbanização em que a habitação é um pré-existente módico que permaneceu com a mesma função social desde a vida agrária, no entanto se viu resignificada a partir da lógica de produção capital na contemporaneidade.

Henri Lefebvre (1999) fala de “períodos de desenvolvimento da cidade”, traça uma linha imaginaria desde a vida agrária até a produção industrial, correspondendo respectivamente ao grau zero da urbanização e a urbanização em sua totalidade. Inicialmente, para o autor, as cidades existentes antes da industrialização possuíam uma capacidade política ligada exemplarmente ao modo de produção própria. As cidades gregas e romanas com seus contingentes de escravos; as cidades asiáticas e medievais concentradoras de comerciantes, são exemplos.

Habitar nesta época era congregar em comunidade, participar da vida social. Os atributos da cidade permitiam ao cidadão habitar espaços polivalentes e socialmente mistos. Ainda não havia a dualidade entre regiões pobres e regiões ricas, mas isso não quer dizer que inexistia hierarquia social, havia sim, só que os modos de distinção se davam pelas características da habitação, como qualidade do revestimento, estrutura, numero de pavimentos.

Ainda na linha proposta por Lefebvre, o Século XVI representa um ponto de passagem da vida agrária para a urbana, neste momento há a introdução na vida social do valor mercadoria nos objetos produzidos. Essa consciência de valor é fundamental para generalizar a produção como mercadorias e, ao mesmo tempo, antecipar um futuro próximo dentro do processo de industrialização.

Em “O Capital”, Karl Marx escreve: “A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estomago ou da fantasia” (p. 41). Como objeto a mercadoria possui a faculdade da satisfação, do sacio alheio, por isso pensar a mercadoria como elemento organizador do espaço urbano é ver que “a mercadoria, o mercado e os mercadores entram triunfantes na cidade” (LEFEBVRE, 1999, p. 22).

A mercadoria impulsiona a transformação do espaço urbano, pois como detentora da capacidade de aglutinar valor de troca e valor de uso, a consciência social sobre a mercadoria impulsionou, por exemplo, a passagem da Inglaterra agrária e artesanal para uma Inglaterra industrial. Neste momento o espaço urbano é alterado para abrigar locais de trabalho e de residências, industrias e subordinados à produção. O espaço da cidade é submetido à lógica dos interesses do capital.

A própria cidade é uma obra, e esta característica contrasta com a orientação irreversível na direção do dinheiro, na direção do comercio, na direção das trocas, na direção dos produtos. Com efeito, a obra é valor de uso e o produto é valor de troca. O uso principal da cidade, isto é, das ruas e das praças, dos edifícios e dos monumentos, é a Festa (que consome improdutivamente, sem nenhuma outra vantagem além do prazer e do prestigio, enormes riquezas em objetos e em dinheiro) (LEFEBVRE, 2001, p. 4)

A cidade é resultado da invasão do valor, da mercadoria e das tecnologias, com um contingente populacional crescente o senso de expansão urbana é medido pelo alargamento das bordas periféricas. A cidade contemporânea delega o direito à habitação a periferia sem ao menos se preocupar com a urbanização e sim com uma urbanização desurbanizante e desurbanizada.

Isso é realidade de muitos confins da África, Ásia e America Latina, especificamente na Amazônia, que devido aos modos constituintes da sociedade civilizada em suas regiões assiste apenas a manutenção dos espaços produzidos pelo capital, onde a mercantilização das cidades promove um direito à cidade fragmentário, na qual a noção de habitar se qualifica pelo sentido de oferta de trabalho e renda na Região.

O trabalho e a renda como fundamentos do valor troca desta cidade mercadoria concebe um novo espaço urbano como objeto e não como direito, vende a realidade em fragmentos, onde proprietários dos meios de produção, proprietários fundiários, imobiliárias fatiam o espaço urbano em pequenos pontos de natureza absoluta.

A cidade capitalista na Amazônia além de fragmentaria é um espaço do não-direito, do não-capital, é um lugar de passagem e de pouca retenção e muita dispersão. O solo deste modelo de cidade não abriga e nem promove afetos, seus sujeitos e suas realidades, principalmente a habitacional, é produzida a partir da lógica socioespacial da cidade e suas acessibilidades.

A ideia de “ganhar a vida” é o motor coletivo da população desta cidade mercadoria incapaz de gerar afetos e integração, incapaz de concluir os espaços de habitação, mas sagaz em segregar e estimular formas de distinção a partir do local onde o sujeito se encontra, de onde se reproduz a lógica do valor de troca desta cidade mercadoria. Lefebvre está certo em sua colocação, habitar é exercer as garantias externas na cidade, mas os espaços disponíveis para a habitação se diminuem,encurtam-se em um sentido e descompassam em outros vitais para a manutenção das sociabilidades, das integrações socioespaciais, na verdade incapazes de gerar um “espelho social” em que cada um se reflita no outro, do outro no alheio e do tudo em todos.

Obs: O autor é “Professor universitário, Crítico literário, Escritor. Escreve regularmente nesta revista sobre Contra-Racionalidades, Complexidade e temas pertinentes aos modos de Existir”

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]