Ivone Gebara 15 de agosto de 2016

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Moro numa periferia de Camaragibe, Pernambuco, quando não estou viajando pelo mundo afora. É a partir desse lugar que partilho algumas impressões e comentários sobre a inclusão digital.
A palavra inclusão chama a uma outra palavra: exclusão. Tal chamamento nos convida a lembrar que as formas de inclusão são igualmente produtoras de exclusão. E a exclusão digital, a meu ver, não é diferente daquela produzida pela lógica do capitalismo que democratiza bens hierarquizando-os. Torna, por exemplo, o chocolate, um produto excelente para uma elite e de má qualidade para o consumo dos pobres. É, portanto, dentro da lógica da inclusão/exclusão que também devemos entender a revolução informática digital de nosso século.

De dez anos para cá tenho percebido o quanto a computação e especialmente a internet tem modificado a cultura brasileira em geral e em especial as periferias das grandes cidades. A primeira modificação que tem chamado minha atenção é em relação à linguagem e aos novos interesses dos jovens e dos adultos. Os cursos de computação tornaram-se obrigatórios e se multiplicam para crianças, jovens, adultos e idosos. Todos querem entender algo dessa nova revolução que está modificando as relações humanas. Há uma avalanche de escolas de computação espalhadas pelos bairros. É sem dúvida uma nova fonte e um novo instrumento de trabalho. Para as caixas dos supermercados, as secretárias odontológicas, as secretárias médicas, os porteiros, os balconistas de lojas informatizadas e outros profissionais, o curso é absolutamente necessário. A classe C é integrada como mão de obra na grande rede de serviços gerais cada vez mais informatizados.

Os cursos de computação são igualmente parte integrante das atividades para a terceira idade com o objetivo de introduzir os idosos no mundo virtual. O computador pode até se tornar companhia e fonte de lazer para alguns idosos. A informática é hoje uma alfabetização que se inclui à alfabetização inicial. Sem ela não podemos nos mover nas instituições e nas atividades de nosso mundo globalizado gerenciado por esta tecnologia.
Nessa linha, observo o aparecimento das chamadas Lan House nos centros urbanos e nos bairros de periferia. Meu bairro não fugiu desta novidade. No começo os meus vizinhos mais jovens me falavam de passar a tarde na Lan House. Eu imaginava que era um barzinho com música ao vivo. Só depois percebi que era uma garagem velha com quatro computadores e uma geladeira ao lado para a venda de refrigerantes. As Lan House se multiplicaram no bairro e tornaram-se um ponto de encontro de adolescentes e jovens. Através delas, há um novo tipo de atividade comercial e novas conversas entre os jovens que trocam informações de todos os tipos. Há uma nova linguagem, muitas vezes hermética para os não iniciados, mas que tende a universalizar-se e a explicar-se pouco a pouco.

Hoje muitas pessoas de baixa renda possuem computador em casa. A facilidade de adquiri-los e pagá-los à prestação facilitam a vida de muitos, muito embora se apertem para pagar as mensalidades. Entretanto, como se sabe muito bem, muitos acabam perdendo os computadores por falta de pagamento. Nada de novo debaixo do sol capitalista… Apesar disso, de fato, a irrupção da informática com todas as suas novidades em expansão têm introduzido uma nova visão do mundo e uma nova maneira de cultivar as relações humanas. Os amigos distantes se tornam próximos virtualmente, as notícias familiares e outras se transmitem com facilidade, textos de diferentes tipos são divulgados, serviços públicos são agilizados, embora carreguem ainda uma enorme carga burocrática.

Muitas vezes em conversas informais, jovens vizinhos me perguntavam sobre meu blog preferido. Eu não sabia o que responder. Dizia que ainda não tinha nenhum. E os jovens riam me aconselhando a abrir alguns que segundo eles eram muito bons. Confesso que me sentia meio fora da nova cultura que parecia se impor a uma velocidade impressionante. Meu contato com o computador reduzia-se a escrever textos e mandar mensagens pelo correio eletrônico. No início eu o usava muito pouco como fonte de informações e não entendia nada da técnica de baixar músicas e arquivos.
Numa outra ocasião, alguns vizinhos me perguntaram se eu gostava de surfar. Eu respondi que já não tinha idade para isso, mas que achava muito bonito, sobretudo quando as ondas eram grandes e o surfador competente. Não, dona Ivone, disseram-me espantados, não é surfar de verdade, é surfar no computador… E acrescentavam: “um bom internauta deve surfar bem!”.

Na conversa apareciam expressões como “deleta o que eu disse” ou “meu link é outro” ou “preciso ir para o meuchat diário” ou “desconectei completamente”. Começava a perceber que a cultura e a língua portuguesa estavam num momento de grande transformação. O mundo do bairro se alargava para linguagens e horizontes imprevisíveis e me mostrava nele, as mudanças que estavam ocorrendo em todos os lugares do mundo.
Minha outra surpresa foi a de ter sido apresentada ao noivo de uma jovem vizinha. Ela me disse que o conhecera através da internet e que ele se tornara o grande amor de sua vida. Pensavam em casar-se em breve, mas antes queriam organizar uma festa junto com outros casais que haviam encontrado através da internet. Os preparativos para o grande evento eram virtuais. Nesse particular, o mundo virtual torna-se o lugar de cultivo de novos relacionamentos, embora saibamos dos riscos que encerram.

Andando pelas ruas de meu bairro vi um dia, uma faixa numa Igreja Evangélica: “Venha para um chat com o Senhor” e em outra ocasião, vi outra faixa onde se podia ler “Amigo, renove seu link com Jesus”.  E num aglomerado de pessoas em uma praça pública ouvi um pastor pregando a “palavra de Deus como o mais poderoso antivírus”.  O mundo virtual começa a introduzir-se nas igrejas, modificando sua linguagem e tornando-as aptas a atrair um bom número de fiéis que identificam estes ajustes como abertura de espírito para o mundo e um caminho de eficácia no anúncio do Evangelho. E, além disso, sabemos do crescente número de comunidades religiosas virtuais que estão nascendo. Organizam encontros virtuais e difundem textos para a meditação e formação dos fiéis.
Há, portanto, uma nítida modificação na cultura, na família, nas instituições, na linguagem e nos comportamentos introduzida pela revolução eletrônica digital global. Para as pessoas que estão fora deste universo, as explicações e traduções são sempre necessárias. E nesse particular, são os mais jovens os professores dos adultos. Além disso, são eles que, sobretudo nas periferias, são os melhores conhecedores de informática, os técnicos em computação, os que fazem a manutenção dos computadores populares, os que instalam e desinstalam programas, os que juntam e trocam peças das sucatas dos computadores amontoadas em muitos lugares.

A revolução da informática chegou às salas de aula não apenas em forma de computadores doados ou adquiridos, mas também como nova linguagem educacional usada pelos professores em sala de aula. Já se costuma dizer aos alunos: “gravem a aula no seu disco rígido”, “não perca a conexão”, “navegue nos bons sites”, “peça help” quando necessitar.

Não creio que a internet substituirá os livros e os professores como pensam alguns, mas guarda o atrativo da novidade e a rapidez nas informações. É uma chance para um aprendizado eficaz, mas é também um risco que pode levar a permanência na superficialidade das informações, dos conhecimentos e da reflexão.

A democratização da informática é um fato real, sobretudo nas cidades. Mas, como todos os bens nessa sociedade global, os bens digitais são marcados também pela hierarquia das classes sociais, pelos privilégios e pela corrupção. Nos lugares em que a chamada banda larga ainda não chegou, as conexões telefônicas aumentam o custo mensal das contas de telefone e da energia elétrica. Os cortes começam a acontecer como forma de exclusão daquilo que a princípio deu um gosto de inclusão social.

De fato, continuamos a ser os seres complexos e contraditórios que sempre fomos. Carregamos em nosso corpo as marcas da busca de privilégios, da ganância, da inimizade e competição com os outros. O mundo digital abre-nos para uma possibilidade de partilhar boas coisas, mas acabamos partilhando também comportamentos nefastos, vícios e destruição dos outros.

Com a era digital inauguramos mais um capítulo da história da humanidade. Capítulo desafiante, revelador de nossa enorme criatividade, da expansão de nosso saber e de nossa inventividade tecnológica, mas não isento de nossa condição de seres limitados e falíveis. Esta condição constitutiva se inscreve em tudo o que fazemos e creio que seguiremos assim até o final dos tempos. Sem negar esta frágil realidade, poderemos de forma sempre renovada e criativa, permitir que a solidariedade fale mais alto e que o amor ao próximo e ao planeta não seja esquecido. Estes valores são uma força de equilíbrio em nossas relações e criações, assim como a garantia de que a chama da justiça e do amor não se apagarão em nós.

Obs:  A autora é  escritora, filósofa e teóloga.
Texto publicado na Revista Tempo e Presença (junho/2008)

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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