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Já houve época em que estivemos entre a cruz e a espada. Foi no período da colonização da América Portuguesa, mais precisamente a partir da metade do século XVI até a expulsão da Companhia de Jesus, em meados do século XVIII. Naquele contexto, com frequência a religião fora utilizada para legitimar a invasão, a exploração, a opressão e a própria escravidão. Muitas vezes o sofrimento foi apresentado como vontade divina e anestesiado com explicações religiosas. O Estado e a Igreja andavam de mãos dadas, mas não era um bom casamento.

Com suas particularidades, essa situação atravessou a fase imperial, iniciada em 1822. Assim, a Constituição brasileira de 1824, em seu art. 5, afirmava: “A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo”. Porém, com a Proclamação da República (1889), ocorreu o divórcio público entre Estado e Igreja, instituindo-se o Estado laico. A propósito, a Constituição de 1891 situa a questão religiosa na esfera privada e determina: “Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados” (art. 72).

A atual Constituição (1988), no art. 19, I estabelece que o Estado, em todos os seus níveis, não promoverá, nem subvencionará ou impedirá o funcionamento de cultos religiosos e igrejas. De igual modo, não manterá relações de dependência ou aliança, a não ser de colaboração de interesse público. A criação do Estado laico e a imparcialidade confessional representaram importantes ganhos para todos, como o respeito ao pluralismo religioso, a liberdade da ciência, o avanço da democracia política, a melhor caracterização do papel e do exercício da função de cada instituição etc.

O Estado laico é aquele que não assume uma igreja ou religião como oficial. Em sendo assim, também não lhe cabe proibir, coibir ou condenar à invisibilidade pública qualquer organização ou manifestação religiosa. Significa dizer, portanto, que em sociedades democráticas, a liberdade religiosa constitui um dos princípios e dos direitos fundamentais pelos quais o Estado deve zelar. Por outro lado, a livre expressão das crenças e das práticas religiosas não pode transgredir a ordem pública.

Ao nos afastarmos da situação que nos punha entre a cruz e a espada, houve avanços na direção de um bom relacionamento entre a fé e a política.  Essa busca foi protagonizada com destaque por setores mais populares e proféticos das igrejas, sobretudo ligados à Teologia da Libertação e às Comunidades Eclesiais de Base. Nesta ótica, a fé precisa estar articulada de forma orgânica com a política para garantir concretude histórico-libertadora a ambas. Assim, a fé e a política deixam de ser vistas como instâncias antagônicas e excludentes para serem tratadas como vias imprescindíveis e complementares na tarefa de promover a participação, a integração e a humanização da sociedade.

No concreto de sua existência, nem sempre a Igreja, o Estado e a Sociedade (a fé, o poder e a política) funcionam de modo harmônico, equilibrado ou colaborativo. E há, inclusive, situações em que esses desencaixes se revelam gritantes. Valha como exemplo o processo eleitoral de 2010, que evidenciou aspectos lamentáveis como foi o caso da instrumentalização que certos candidatos fizeram da fé com vistas a atrair votos, desqualificando candidaturas adversárias. Houve apelo recorrente a um fundamentalismo político mascarado  de motivações éticas e religiosas.

Tendo explícito interesse eleitoreiro, emergiu, entre outras questões polêmicas, o tema do aborto. Ficou nítida a adoção de uma política maniqueísta, onde um grupo se auto-identificou como partidário do “bem” com a missão de combater a oposição que lhe representava ameaça para chegar ao poder, caracterizada como partidária do “mal”. Verificou-se uma sistemática demonização da campanha presidencial, onde um candidato se auto-apresentou como o melhor defensor da vida, revestido de caráter sacralizado e outro foi descrito com características satânicas, ou seja, como abortista, violento, perigoso, incapaz, rude etc.

Para todos os efeitos e sob todas as situações, ressalte-se que as religiões, as igrejas e as múltiplas formas de manifestação de fé podem se constituir em sistemas de sentido, de organização da vida pessoal e social, em princípios orientativos etc. Por outro lado, podem também se transformar em mecanismos de controle, de dominação, de alienação, de legitimação da desigualdade e da exploração. Em suma, podem prestar-se para oprimir ou para libertar; para construir ou para desintegrar e destruir.

Quanto à política, sabe-se que existem duas modalidades. De uma parte, a política do “p” minúsculo, relacionada a escândalos, corrupção, nepotismo, falsas promessas eleitoreiras, alianças espúrias e interesseiras, candidaturas aventureiras, submissão à ditadura do capitalismo neoliberal etc., ou seja, politicagem. De outra, a política do “P” maiúsculo, identificada com o bem comum, a justiça, a igualdade social, a democracia, a cidadania plena etc. Essa deve ser aplaudida, fortalecida e articulada com a fé para garantir vida e dignidade para todos.(10.03.2011)

Obs: O autor é Doutor em Sociologia, pós-doutor em Educação e professor da Universidade Federal do Sul da Bahia.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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