foto Marcel Camargo

 “ninguém sai de casa a menos que
casa seja a boca de um tubarão
você só corre para a fronteira
quando vê a cidade inteira correndo também”
(Warsan Shire)

A Síria não é a única nação que espalha refugiados pelo mundo, mas encontra-se em evidência, principalmente em razão da morte do menino Aylan, cuja imagem do corpo sem vida à beira da praia disseminou-se rapidamente nas redes midiáticas. Desde sempre, na história da humanidade, povos foram forçados a deixar seu local de origem, seja forçosamente, como no caso do tráfico de escravos, seja por iniciativa própria, quando não se vislumbra mais nenhuma saída, a exemplo dos refugiados sírios e de outras nações.

Dados do Acnur e Frontex indicam que, somente neste ano, cerca de 330.00 migrantes e refugiados chegaram à Europa, via Mediterrâneo, dos quais 2.500 morreram. De acordo com a Onu, cerca de 200.000 pessoas chegaram à Grécia e 110.000, à Itália, também em 2015. Os três destinos que são mais solicitados pelos migrantes, segundo o site Zero Hora, são Alemanha, Suécia e Reino Unido, sendo que a maioria deles não aguarda em campos de refugiados que já estão lotados nos países vizinhos, viajando à própria sorte em direção à Europa.

Tem-se, assim, uma multidão de pessoas que deixam para trás bens materiais e identidade cultural, tentando escapar de uma situação que não mais suportam. Abrem mão de sua geografia, dos domínios de sua raça e de sua cultura – elementos constituintes de uma nação, segundo Herder -, anulando a dimensão da própria existência, de tudo aquilo com que se identificam, tornando-se seres culturalmente aéreos, desprovidos de identificação, não mais acolhidos por um território. E, se não mais podem viver em meio aos identificadores da própria identidade cultural, desconfiguram-se enquanto sujeitos históricos, à maneira de trânsfugas, que – embora involuntariamente – renunciam à terra e a tudo o que nela lhes caracteriza e estrutura em seus aspectos sócio-históricos. Tal sistemática acaba por deslocá-los geograficamente e, consequentemente, desestruturá-los psicologicamente.

Encontram-se vazios, tolhidos da ludicidade de sua infância, da aceitação necessária de sua adolescência, dos sonhos que dignificam sua juventude e da serenidade desejável de sua velhice. Isentam-se de quaisquer capacidades de agir com iniciativa e anseios próprios, visto que condicionados a determinismos não mais geográficos ou biológicos, mas tão somente imputados por ordens que lhes fogem à compreensão. Não sofrem os desígnios de deuses ou de outras forças sobrenaturais, senão as consequências de atos dos quais são meras vítimas. Como tão bem pontua o jornalista Mauro Santayana, a Europa carrega grande parcela de culpa por sua atual situação de sitiar grande número de estrangeiros, haja vista ter apoiado a intervenção dos Estados Unidos tanto no Oriente Médio quanto no Norte da África. Isso porque os governos europeus ajudaram na invasão de países como Iraque, Líbia e a própria Síria, inclusive equipando, com armamentos, os terroristas que engendraram o Estado Islâmico.

O mundo tão breve se redesenhará, ou seja, todos sentiremos as consequências desse crescente número de refugiados sitiados sem destino, seja por meio da reconfiguração geográfica, de mudanças paradigmáticas quanto a valores culturais e religiosos ou de impactos na economia mundial. Temos, pois, diante de nós, uma problemática com urgentes necessidades de resolução e de ajuda, pois agora se estende além dos espaços antes esquecidos e ignorados. Não se trata somente da Síria, mas de todos os países onde a guerra civil e/ou a intolerância religiosa impelem os cidadãos à fuga desesperada, tais como Angola, Líbia, Iraque, Haiti e Colômbia.

O acolhimento necessário aos imigrantes infelizmente esbarra na crise econômica mundial, no temor de que o estrangeiro venha roubar empregos, que já são escassos. Muitos brasileiros que apoiam abertamente a entrada de imigrantes nos países europeus, por exemplo, são os mesmos que bradam violentamente contra os migrantes nordestinos que entram no estado de São Paulo. Como se vê, a resolução do problema envolve o enfrentamento conjunto de vários conflitos outros, atrelados dialeticamente à problemática como um todo, emperrando-lhe uma solvência tranquila. É preciso, contudo, perceber que aos refugiados não havia outra forma de agir, não havia a quem recorrer. Trata-se de indivíduos alquebrantados, sentindo-se párias, sem identidade, sem chão, sem esperança.

Ninguém quer sair de casa, deixar o país, o que se construiu e largar tudo para trás de uma hora para outra. Os refugiados são o retrato da desesperança que impele o ser humano a arriscar a própria vida para fugir a uma situação que o impede de respirar com mínima tranquilidade. Se as recentes imagens de naufrágio de imigrantes não sensibilizarem as autoridades o suficiente, para que se operem ações nesse sentido, continuaremos assistindo a corpos boiando, a esperanças afogadas no desespero de quem é tão somente vítima.

Obs: O autor é graduado em Letras e Mestre em “História, Filosofia e Educação” pela Unicamp/SP, atua como Supervisor de Ensino e como Professor Universitário e de Educação Básica. 

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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