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O medo nascia em casa. Para evitar que a gente fosse a rua, mamãe contava a história do homem, que, de saco na mão, roubava o fígado das crianças. Bastava a conversa séria, concatenada, para fazer a gente desistir de ficar perambulando nas calçadas. Ora. Eu ouvia a história, buscando na imaginação uma fisionomia para o homem que arrancava o fígado das crianças, colocava-o num saco e desaparecia. A história me deixava indignado, mas eu me mantinha em silêncio, incapaz de uma só pergunta, inclusive para testar se ela estava dizendo a verdade. Não tinha dúvida. Contada por mamãe, só podia ser verdadeira.  O que acontecia as vítimas, eu não fazia ideia. Não se falava que a vítima, por exemplo, morria, como deveria morrer, se lhe fosse aberta a barriga para extrair o fígado.

Não sei exatamente até quando a história fez efeito. Do que me lembro, eu era muito pequeno, e, para evitar que escapasse do seu controle, indo para  a rua, sozinho, o convite sempre tentador da calçada, as macabras façanhas do homem que roubava fígado vinham à tona. Acredito que era contada até eu comecei a estudar, atividade que já nos era autorizada quando a gente enchia o saco de ficar em casa, sem ter o que fazer. Evidentemente que um dia a história deixou de ser relatada, ou porque eu já fosse a rua sozinho, como ia para a escola, sempre próxima de casa, ou porque já não se fazia mais necessária a estranha pedagogia da pregação do medo.

O certo é que o homem do fígado habitou minha cabeça e minha revolta durante certa época,  sem que tivesse a iniciativa de pedir a alguém para me apontar o nome de alguma vítima conhecida. Mas, surtiu todo o efeito desejado, me impedindo de sair de casa, o que era tão fácil, já que o portão do oitão, bem leve, não oferecia dificuldade para ser aberto, e, mamãe, preocupada com os afazeres da cozinha, não poderia permanecer a manhã inteira me vigiando.

Outra história que engoli foi a da pessoa que, para não morrer, se escondia dentro de um pote, de modo a não ser encontrada pela morte. Até aí tudo bem. Mas, tia Madrinha, a gente indo para um sítio no Batula, comer araçá, contou tanta história de assombração, que, a noite, pela primeira vez, tive uma bruta insônia, fruto do medo. Já inseri o fato em um conto. Faz tempo.

Obs: Publicado no Correio de Sergipe
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras. 

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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