Ina Melo 1 de julho de 2016

ina a moça do sobrado azul

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A bucólica praça com um chafariz no centro, recebia a brisa vinda do rio. Todos os dias Elídio, um jovem português das terras do além-mar, ia a pé para o armazém de ferragens, onde trabalhava. Caminhava devagar, admirando os sobrados pintados de cores fortes, com varandas de ferro bordado. Desde os primeiros dias, quando passava na praça, chamou à sua atenção, um sobrado de três andares pintado de azul. Na varanda, uma jovem loura de cabelos cacheados estava sentada com um livro aberto nas mãos e olhos fixos no infinito. Atravessou a rua para vê-la mais de perto. Alumbrou-se: bela, divina, etérea. O tempo passou e Elídio tudo fez para saber quem era a moça do sobrado. Mistério. Nada. Nenhuma informação. À noite quando voltava da Escola de Engenharia, quedava-se junto ao Chafariz na esperança de vê-la. Ela nunca aparecia. Triste, recolhia-se para o Hotel e sonhava. Sonhava… Estava apaixonado, irremediavelmente apaixonado. Aos domingos, costumava almoçar no Restaurante Leite onde se reunia à nata da sociedade. Os donos seus amigos, eram portugueses simpáticos e acolhedores. Sentia-se em família. De temperamento retraído, bebia pouco e não fumava. Certo dia Leonardo, seu companheiro de viagem convidou-o para almoçar. Ao entrarem, Elídio viu sentada ao fundo, duas senhoras idosas bem vestidas e com elas a bela jovem do sobrado azul. Tinha certeza. Seu coração disparou, o rosto avermelhou-se. O primo, espantado disse: oh! moleque, que houve, viste fantasma? Ele, com riso amarelo, disfarçou. Animando o almoço, um senhor idoso tocava ao piano canções da moda. Da mesa onde estavam seguia com os olhos os movimentos das senhoras. Viu quando se levantaram para irem embora. A jovem alta, vestida com rendas e “frou-frous”, lembrava uma lua em noite de verão. Não notaram a sua presença, como também as dos demais clientes do restaurante. Ele prometeu que iria desvendar aquele mistério. Depois do almoço foram ao Jockey-Club e no fim da tarde, quando o sol mergulhava por trás do casario colonial, parou na praça, decidindo vigiar o sobrado. Nenhum movimento. As crianças alegres saíam pelas mãos do seu anjo de guarda. Cansado e triste foi dormir. Teve uma noite agitada. Não conhecia ninguém nas redondezas. Guardava para si essa alucinação, esse amor que crescia cada dia mais, quase fazendo explodir seu coração. Ao vir da terra mãe, fizera um propósito: dedicar seu tempo para trabalhar e estudar. No outro domingo, por insistência do amigo Leonardo, foi para a Tertúlia do Clube Internacional. Pouco depois viu chegar as senhoras, acompanhadas com a moça do sobrado azul. Cumprimentaram algumas pessoas e sentaram-se. Decidido, jurou: quando o baile começar, vou convidá-la para dançar! Assim aconteceu. Abraçados e enlevados, nem notaram os olhares indiscretos dos jovens no salão. Ele tímido, ela silenciosa. Quando a deixou se apercebeu que nem o nome dela perguntara. Que estúpido sou, pensou! Tempos depois, resolveu ficar à espreita e viu sair do sobrado uma preta velha gorda, com um lenço branco na cabeça. Alcançou-a e logo perguntou: Desculpe senhora, qual o seu nome? Dondon, respondeu. Dona Dondon, diga-me, quem é a bela jovem que todos os dias lê um livro na varanda de sua casa? Olhos arregalados, respondeu: oxente! Moço: ali só moram velhos, o mais moço é o meu filho João, o motorista. Ele insistiu: qual o nome da dona da casa? com um muxoxo, respondeu: as senhoritas d`Alencastro Albuquerque Guimarães e saiu resmungando. Elídio, contente sabia pelo menos o nome da família de sua amada. Quando voltou do trabalho foi procurar o amigo médico que conhecera no navio, para perguntar sobre as moradoras do sobrado. Ele prometeu que se informaria de tudo. Três dias depois, Elídio convidou-o para um copo de vinho no Leite. O restaurante estava vazio. Sentados na penumbra da noite, abriu o coração para o amigo. Contou da moça na varanda e de como se apaixonou por ela, da vez que a encontrou no restaurante e no baile onde tinham dançado. Admirado, o amigo falou: não sabes nem o nome da rapariga? Ela não falou? Será muda? Ele a tudo respondia com um balançar negativo de cabeça. Estranho essa história. Segundo fui informado, naquele sobrado moram três irmãs idosas, sendo a mais nova muito doente, doença que médico nenhum conseguiu descobrir. Elas vivem reclusas desde a morte dos pais em Lisboa, num acidente de automóvel. Riquíssimas têm apenas a velha ama que as criou e o filho dela, motorista e contador, que administra os bens da família. São donas de um Solar no Poço da Panela, às margens do rio, onde de vez em quando passam o fim de semana. Ninguém me falou de sobrinha ou prima jovem morando no Sobrado. Elídio, pensativo disse: acha que estou mentindo? Será que me apaixonei por uma miragem? Muitas coisas lhe passaram pela cabeça. Três meses é muito tempo, não posso estar com alucinações. Irei visitar o Sobrado Azul. Um pouco mais tarde, os jovens foram ao velho bairro do Recife, numa casa de mulheres alegres. Retornaram de madrugada. No domingo, Elídio, antes de ir almoçar, resolveu sentar no banco da praça e observar o sobrado. O movimento era grande, o sol brilhava, pessoas alegres e coloridas iam para o passeio matinal. De repente, viu o mulato sair com as feições carregada de preocupação. Resolveu segui-lo. Apressado caminhava pela Rua Manoel Borba, quando parou o homem perguntando: deseja alguma coisa? Estou com pressa, vou procurar um médico para minha patroa. Foi então que ele vislumbrou uma chance de entrar no Sobrado. Disse: posso ajudar, tenho um amigo médico, se quiser… mas devem ter um médico de família, pois não? Oh! disse o mulato aliviado, venha comigo, precisamos do senhor. Elídio pediu que esperasse. Disse que morava no Hotel São Domingos, ali na Praça. Subiu, bateu na porta de Leonardo e explicou o acontecido. Este, imediatamente seguiu-o. Com o coração batendo desordenadamente subiram as escadas que levava ao interior da casa misteriosa. No primeiro andar, deparou-se com uma sala de assoalho brilhante, com móveis e adornos do mais fino gosto. Rápidos, galgaram outro lance e entraram num salão com belos tapetes orientais e paredes cheias de quadros e livros. De pé, trêmula, estava uma senhora de quase setenta anos, pele clara, loura e olhos azuis, avermelhados pelas copiosas lágrimas derramadas. Recebeu-os carinhosamente, explicando que sua irmã estava exalando o último suspiro e, como o médico da família viajara, agradecia-lhes a presença. Ele, logo apresentou Leonardo, médico de renome em Lisboa, de passagem pelo Recife. A senhora, convidou-os a entrarem na alcova iluminada pelas velas, de onde exalava um perfume de jasmim e morte. Na cama alta com dossel de cetim¸ pequena, frágil, etérea, estava uma mulher ainda jovem, pálida e moribunda. Ao seu lado, sentada, segurando-lhes as mãos longas e brancas, uma senhora de meia idade, rosto tranqüilo e cabelos pretos. Assim, que o mistério se desvendou. Leonardo, ao se aproximar, viu que nada poderia ser feito. No leito havia só o corpo, o espírito partira há tempo. Chamou as senhoras orientou-as e entregou-lhes o atestado de óbito. Elídio, estarrecido, permanecia mudo! Passado um momento, perguntou a mais idosa das senhoras: e a jovem que sempre estava na varanda com um livro nas mãos? Lembram-se, que nos encontramos na Tertúlia do Internacional, há menos de um mês e eu chamei-a para dançar? Admirada, Lucy, a de cabelos escuros, disse: ah! moço, o senhor tem razão. Dulce, era teimosa e sempre ia para a varanda receber a brisa do rio, gostava de ver os pássaros e as crianças na Praça. Desde jovem sofria de um mal incurável. Lia e estudava muito, era alegre. Depois da morte dos nossos pais ficou muito triste e a vida foi acabando para ela. A última vez que saímos, foi justamente na festa do Internacional. Para surpresa nossa, um jovem convidou-a para dançar, fazendo-a muito feliz. Ficamos tão admiradas! Penso que algo de mágico aconteceu. De lá para cá, ela piorou e os senhores estão aqui para verem o acontecido. Cabisbaixo, triste, angustiado, Elídio, juntamente com o amigo, deixou o sobrado azul. No fim da tarde, quase ao anoitecer, viu sair um pomposo caixão com a sua amada etérea e irreal. Precisava certificar-se de que não estava louco. Como não percebeu tamanha fragilidade? Leonardo então, pacientemente lhe explicou. Não te preocupes, caro amigo, isto acontece, foi uma alucinação, tu a enxergavas com os olhos do amor que, como sabes “não ver, não ouve e não fala”. (Recife/1972)

Obs: Imagem enviada pela autora.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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