Foto padre mario

“Minha vontade é conquistar o mundo inteiro, vencendo todos os inimigos, e assim alcançar a glória do meu Pai. Portanto, quem quiser vir comigo há de trabalhar comigo, afim de que, seguindo-me na luta também me siga na glória” (EE 95).

A meditação do Reino não é apenas uma meditação como as outras. Posta na entrada da segunda semana, ela tem uma finalidade precisa e abrangente. Juntamente com outros três exercícios tipicamente inacianos, a saber, as meditações das duas bandeiras e dos três tipos de pessoas e a consideração dos três modos de humildade, oferecem um conjunto determinante para a compreensão das contemplações da vida de Cristo oferecidas nos Exercícios. Cada uma delas tem seu sentido no conjunto, representando passos gradativos para levar o exercitante a um real amor e seguimento de Jesus Cristo. Cada uma delas desvela o que é exigido neste seguimento, descrevendo o desafio (Reino), oferecendo critérios de discernimento (Duas bandeiras), fortalecendo a liberdade (Três tipos de pessoas) e empenhando a afetividade espiritual (Três modos de humildade). Vistas em seu conjunto oferecem a chave de interpretação inaciana para a contemplação de todos mistérios da vida de Jesus Cristo.

O objetivo da meditação do Reino aparece no segundo preâmbulo, como em geral nas meditações e contemplações do retiro inaciano. “Pedirei a Nosso Senhor a graça de não ser surdo a seu chamado, mas pronto e diligente para cumprir sua santíssima vontade” (EE 92). Estas simples palavras podem deixar desapercebida a importância desta meditação. Trata-se de despertar no exercitante uma atitude básica de adesão à pessoa de Cristo e à causa do Reino, sem a qual as contemplações posteriores perderiam seu sentido e sua força. A vontade de Deus, ainda expressa imprecisamente nesta meditação, irá se desvelar ao longo de todo o retiro, pois os mistérios da vida de Jesus são, todos eles, manifestações desta vontade. Cada mistério deixa transparecer não só a obediência de Jesus ao Pai, já que nunca pecou, mas igualmente a vontade de Deus acontecendo visivelmente, já que sempre acolhida e realizada por Jesus. Deste modo ela nos é acessível no próprio desenrolar da vida e da história do mestre de Nazaré.

Além deste objetivo mais imediato esta meditação, por sua importância no conjunto dos Exercícios, incide decisivamente no objetivo das demais semanas inacianas, formulado assim pelo próprio Inácio: “conhecimento interno do Senhor que por mim se fez homem, para que mais o ame e o siga” (EE 104). Conhecimento real de Cristo, amor autêntico a Cristo e seguimento efetivo de Cristo pressupõem o dinamismo de identificação com Cristo, inaugurado na meditação do Reino e desenvolvido nas demais meditações e considerações tipicamente inacianas. Este dinamismo demonstra que a finalidade das contemplações da vida de Cristo não consiste em dar lições morais ou oferecer exemplos de virtudes, mas que é bem mais abrangente.

A espiritualidade inaciana é profundamente cristocêntrica e a meditação do Reino confirma esta afirmação. A pessoa de Jesus Cristo aí ocupa o lugar central. Mas Santo Inácio, antecipando-se à teologia atual que não admite separação entre cristologia e soteriologia, ou entre Jesus Cristo e o Reino de Deus, leva o exercitante a considerar a pessoa de Cristo enquanto voltada para sua missão salvífica de implantar o Reino de Deus. Sem o horizonte do Reino a pessoa de Jesus Cristo seria incompreensível e sua identidade comprometida, ao sabor das mais diversas opiniões ou interpretações. A missão de Jesus define sua pessoa, seu relacionamento único com o Pai, suas opções concretas, numa palavra, sua história. Aderir à pessoa de Jesus Cristo significa aderir à causa do Reino. Mas esta conclusão não basta ainda para Santo Inácio. Pois o Mestre de Nazaré nos deixou um modo próprio de trabalhar pelo Reino, na obediência ao Pai, aceitando ser o Messias por Ele querido. Deste modo, aderir a Cristo significa assumir a sua obra do mesmo modo que ele a assumiu. A meditação inaciana apresenta assim três elementos conexos entre si: a pessoa, a obra e o modo de executá-la. É o que veremos a seguir.

A pessoa de Jesus Cristo tem importância central. Ninguém investe sua vida numa organização, numa instituição, numa ideologia, enfim num produto humano tão frágil e imperfeito como cada um de nós. Investimos nossa vida na entrega a uma pessoa, a Alguém que faz jus a este amor. O Cristo ressuscitado presente nesta meditação é um Cristo que lutou pelo Reino e chegou à glória de Deus, é um Cristo vencedor. Sua pessoa irradia forte atração pelo acolhimento e pelo amor dedicado a todos, sobretudo aos mais necessitados. A comparação, típica da Idade Média tardia, com um rei temporal lançando-se na luta pela libertação da Terra Santa, que certamente representava naquele tempo uma figura que atraía e fascinava, comprova a preocupação de Inácio de levar o exercitante a se deixar conquistar pela pessoa de Jesus Cristo. Inácio realmente quer provocar a afetividade do exercitante, pois bem conhece sua força para iluminar a inteligência e mover a liberdade humana. Mas para que este investimento afetivo não se degenere num sentimentalismo superficial e passageiro, o qual acabaria por ignorar a própria pessoa de Jesus, Inácio introduz nesta meditação o tema do Reino.

De fato, toda a existência de Jesus Cristo foi viver para o Reino, foi fazer acontecer este Reino. Proclamar o amor de Deus pelos seres humanos e levar homens e mulheres a viverem deste amor primeiro, amando-se mutuamente. Responder a Deus assumindo o seu modo de ser e de agir, obedecer a Deus fazendo entrar na história humana o amor eterno de Deus. Tal foi a vida de Jesus Cristo, revelação plena de Deus em seu ser e em seu agir. “Passou por toda parte fazendo o bem” (At 10,38). O Reino irrompe assim na pessoa de Jesus, que convida seus seguidores ao mesmo compromisso, a serem como Ele, a semearem por toda parte a fraternidade, o amor e a justiça. O sentido último da existência humana está em abraçar a causa do Reino, à semelhança de Jesus Cristo nossa matriz. O seguimento de Cristo é a vocação universal do cristão, mas não podemos segui-lo sem abraçar a causa de toda sua vida: fazer o Reino de Deus acontecer na historia. Amar Jesus Cristo significa então investir a própria liberdade na causa do Reino, assumir sua pessoa descentrada de si e voltada para os outros, deixar, como Ele, que o amor desinteressado e gratuito impere em nossa vida, dite nossas opções, acione nossos afetos, enfraqueça e neutralize nosso constante egoísmo. Só assim seremos como Cristo, isto é, cristãos. Só assim daremos nossa contribuição para uma humanidade mais fraterna e justa. Santo Inácio expressa tudo isso a seu modo: “Minha vontade é conquistar o mundo inteiro, vencendo todos os inimigos, e assim alcançar a glória de meu Pai. Portanto, quem quiser vir comigo há de trabalhar comigo, a fim e que, seguindo-me na luta também me siga na glória” (EE 95).

À primeira vista estaria completo o tema da meditação do Reino: acolher Jesus Cristo e sua causa. Não para Santo Inácio. Ele bem sabe que os caminhos de Deus não são os caminhos dos homens. Ele bem sabe que nosso egocentrismo pode corromper as causas mais santas. Ele bem sabe da vida de Cristo, das biografias dos santos, da sua própria experiência pessoal, que há um só modo de fazer o Reino acontecer: o modo querido por Deus. O testemunho dado pelos Evangelhos é evidente. As tentações de Cristo no deserto em torno do Messias pobre e fraco, o espírito das bem-aventuranças, a fecundidade do grão que cai na terra e morre (Jo 12,24), a simplicidade e humildade escandalosa com que Deus entra na história humana, a renúncia à violência e ao poder, o perdão em face das injúrias são alguns exemplos de como Deus quer fazer realmente acontecer o Reino.

Para Santo Inácio se trata não só de querer o que Deus quer, mas ainda de querer o modo como Deus quer. Realizar o Reno, obra divina, do modo divino, e não humano. Isto significa que para sua realização não valem os critérios humanos: o que é vencedor, o que é poderoso, o que é popular, o que é majoritário, o que é eficaz. Uma obra humana é julgada a partir de seu resultado. O sucesso é vitória, o fracasso é derrota. Mas o Reino não é obra humana: o sucesso tangível não o satisfaz, nem o insucesso verificado o desanima. Ele se situa para além desses critérios. Dada a propensão do ser humano de tudo julgar a partir da eficácia e do sucesso, Santo Inácio quer enfatizar a lógica divina manifestada claramente na existência de Jesus Cristo. A fecundidade do trabalho pelo Reino passa pela negação da lógica humana do sucesso. É na fraqueza do ser humano que a força de Deus se manifesta, como bem observou São Paulo.

Situar-se numa perspectiva que relativiza a leitura meramente humana significa situar-se numa perspectiva de fé, que é, afinal, a perspectiva de Deus. Para chegar a tal o ser humano deve renunciar a si mesmo, à sua propensão de se colocar no centro e daí avaliar tudo. Ele deve igualmente se liberar de sua fascinação pela eficácia e pelo resultado verificável, morrendo para seu eu egoísta. Santo Inácio expressa o mesmo com palavras fortes: “não apenas se oferecerão inteiramente para esse trabalho, mas ainda, agindo contra sua sensualidade e contra seu amor carnal e mundano, farão oferendas de maior valor e importância” (EE 97). Agir contra uma perspectiva egocêntrica é situar-se no plano superior da fé. O Reino é de Deus, e ele acontece quando e como Deus quer. Se o amor é o componente decisivo, amar é sempre renunciar ao que é seu, morrer para si mesmo em prol dos outros.

Só quando chegamos a relativizar os critérios humanos na vida espiritual, na ação apostólica, na Igreja, chegamos de fato a uma fé adulta. Só então poderemos avaliar a densidade da graça pedida ao longo dos Exercícios: “conhecimento interno do Senhor para mais amá-lo e segui-lo” (EE 104). O conhecimento profundo do Senhor, o amor autêntico do Senhor, o seguimento real do Senhor não se dão para quem não assume a lógica divina. Trabalhar pelo Reino do modo como Cristo o fez, nos leva a conhecer Cristo de dentro, por nos conformar ao seu modo de ser e de agir. Aqui se dá a chamada união com Cristo, aqui se entende a mística da ação, própria da espiritualidade inaciana. “Vossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3,3). Daí podermos melhor entender a profundidade da exclamação de Paulo: “Vivo, mas não sou mais eu, é Cristo que vive em mim. Pois a minha vida presente na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20).

Santo Inácio pretende com esta meditação fazer o exercitante crescer em liberdade interior para que o que Deus dele quer possa melhor ser captado e acolhido. Daí a oferta de seguir o Cristo pobre e injuriado. Mas Santo Inácio bem sabe que tudo isto é obra da graça, que o ser humano entregue a suas forças jamais poderia alcançar. Daí deixar que nisto Deus tenha a última palavra: “se vossa santíssima Majestade me quiser escolher e receber nesta vida e estado” (EE 98). De fato, é Deus que nos convida por Jesus Cristo, é Deus que nos capacita a respondermos na fé, é Deus que nos faz entrar gradativamente na vida de Cristo. Daí a importância de deixar Deus dispor de nós, sem nos entregarmos a sonhos e imaginações heróicas, provenientes de nossa própria perspectiva humana, das quais tanto desconfiava o nosso santo basco.

A meditação do Reino na medida em que impregna a vida do cristão lhe possibilita uma experiência nova, uma outra maneira de viver sua fé. O crescimento na identidade com Jesus Cristo tende a relativizar todo o resto. Com isto o cristão ganha ampla visão do que realmente interessa ao Reino de Deus, aceita com naturalidade as insuficiências próprias, não exige dos outros e da Igreja o que não podem ser, intui a mão de Deus onde muitos só vêem motivos de lamentação, consegue resistir às pressões da cultura dominante sem perder a paz, irradia uma fé sólida que atinge tantos hoje em busca de referências firmes para suas vidas.

Neste momento é importante não se iludir com relação à sociedade na qual vivemos e que, sem dúvida, constitui sério obstáculo à vivência desta meditação. Traço marcante da atual cultura é o individualismo moderno, o qual não significa propriamente o respeito pela subjetividade, conquista histórica do próprio ser humano, mas assinala um modo específico de considerar a vida, os outros, a sociedade, os bens materiais, vistos sempre em função de si próprio. O que eu posso usufruir dos outros e do que me rodeia? Talvez seja esta a característica cultural mais antievangélica dos nossos dias, que está atingindo em cheio a vida familiar, profissional, social e política dos nossos contemporâneos. Outro sério obstáculo é o atual culto à eficácia que passou do mundo da ciência, da técnica e da economia para os demais setores da sociedade, até da Igreja, onde os resultados devem se adequar e até superar os recursos investidos. Decorrente daí, nós constatamos que se encontram em baixa a lógica divina do Reino, a fé nesta força de Deus, a importância enorme da oração. Outro traço marcante de nossos dias é o valor exagerado dado ao que aparece, ao que é sensacional, mesmo que seja mera fachada cobrindo um vazio e uma mentira. Só existe o que aparece na mídia. É mais importante o marketing do que propriamente o produto. E Paulo nos lembra que a nossa vida é escondida em Cristo! Se o Reino cresce na medida em que assumimos a postura de Jesus Cristo, então para a Igreja é mais fundamental o ser do que o fazer, a qualidade do dom do que a quantidade das atividades. Não estaria aqui a explicação última por tantas divisões, tensões, rivalidades e agressividades no interior da Igreja, embora todos estejam visando aos mesmos objetivos? Poderíamos acrescentar que hoje a aventura da fé já não mais goza do apoio da sociedade e nem sempre do apoio da Igreja, sempre que procurarmos vivê-la na fidelidade â meditação do Reino.

Resta-nos responder à pergunta final: como viver em nossos dias esta importante meditação do Reino? Uma resposta muito pessoal que depende dos desafios enfrentados por cada um de nós. Poderíamos aqui indicar algumas pistas, sem pretendermos, com elas, resolver a questão de fundo. Primeiramente poderia ser uma avaliação contínua de nossa vida na perspectiva desta meditação, tomando consciência de que muita inquietação e mal estar, por nós experimentados, tiveram sua origem exatamente na falta deste espírito do Reino nestas ocasiões. Em seguida observemos que o “agir contra” inaciano pressupõe que tenhamos conhecimento do que devemos combater. Santo Inácio chama de “sensualidade e amor carnal e mundano”. Hoje poderíamos caracterizar como a inclinação interna ao egocentrismo, que todos experimentamos, ou ainda como as pressões externas provindas da atual cultura através do individualismo, do hedonismo, do consumismo, para citar algumas. Deveríamos também valorizar mais as experiências autênticas do Reino vividas por nós em algumas ocasiões de nossa vida e que nos proporcionaram sentir existencialmente a paz e a alegria da identidade com Cristo, seguindo o conselho de Santo Inácio de voltarmos aos pontos onde sentimos maior consolação espiritual.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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