[email protected]
domsebastiaoarmandogameleira.com
(Economia, ecologia, ecumenismo, política, cultura, sexualidade, matrimônio)
1. Introdução
Não é segredo para ninguém que a Igreja cristã enfrenta hoje em dia enormes e inéditos desafios. A sociedade humana tem mudado com grande rapidez e os valores que orientam a vida têm sofrido abalo tão intenso, profundo e generalizado que, às vezes, temos a impressão de viver “um fim de mundo”.
Sem dúvida, esta civilização se acha em grave crise, muita coisa se encaminha para o fim e percebemos que novos paradigmas vêm forçar nossa porta com o intuito de estabelecer-se em lugar de antigos padrões. Há sinais claros da profundidade e amplidão da crise civilizatória: a emergência de países e até continentes há bem pouco periféricos e mesmo marginalizados; é grande e até mesmo dramático o movimento migratório mundial; agrava-se o terrível e execrável tráfico de drogas; o nível de violência social se torna absurdo, desde o recinto doméstico até as guerras, passando pela delinquência juvenil, o tráfico de pessoas e a bandidagem organizada e ricamente financiada e estruturada internacionalmente; os governos mostram incapacidade de atender as necessidades básicas dos povos e garantir segurança; a exclusão social se torna fenômeno crescente e mundial, potencialmente explosivo, particularmente pelo escandaloso contraste com a ostentação de riqueza da parte de algumas poucos pessoas, famílias e países, e o crescimento da consciência de direitos da parte da população pobre; sem falar do gravíssimo problema ecológico que ameaça o equilíbrio dos sistemas de vida e põe em risco até a sobrevivência humana sobre a terra. Quanto ao sistema de valores, sentimo-nos jogados(as) em verdadeiro “laboratório” de desconstrução e de recriação dos sistemas socioculturais.
Queiramos ou não, o mundo se acha abalado por profundas mudanças e aresponsabilidade das pessoas atinge um grau de intensidade impensável tempos atrás. Baste refletir mais detidamente sobre a exclusão social em plena era de desperdício de recursos e sobre a ameaça de destruição que avança sobre o planeta. Antes dependíamos da Natureza, agora é esta que está a depender de nós, pois a própria vida se acha ameaçada de extinção por causa de nossos desregrados interesses e da maneira como temos explorado os recursos da terra. Hoje, cada ato que praticamos tem nova densidade ética porque está em jogo a vida, nossa e das outras pessoas e dos seres vivos em geral. Fala-se até de esgotamento de recursos minerais e da água, além do estrago do ar. Até pequenos gestos do quotidiano, assumem inédita dimensão ética. Abrir a torneira de casa para lavar as mãos torna-se ato de responsabilidade ética, por saber que falta água para tanta gente: temos de continuamente nos perguntar e “decidir” se abrimos mesmo a torneira, quando nos é permitido fazê-lo, e quanta água nos é lícito gastar cada vez… assim, tem de se dar com o uso de todos os recursos do planeta e todos os meios que usamos por necessidade ou para conforto. O uso do automóvel, por exemplo, é, particularmente, ato de responsabilidade ética: temos obrigação de, cada vez, perguntar-nos se, por que e para que usá-lo, transporte individual ou coletivo, haveria ou não alternativa para aplicar o dinheiro, como se relaciona com a poluição do ar, com o risco de acidentes, preferência ou não por ferrovias, que tem a ver meu veículo particular com os problemas humanos de mobilidade urbana ou rodoviária, poluição do ar, grandes despesas com novos equipamentos rodoviários, consideração pelos mais pobres que não os possuem… Ainda mais: na propaganda oferece-se o automóvel como signo de “cidadania” e índice de “status” social; o que é enganoso por não ser atingível por todos(as), e se o fosse, aí, sim, que seria o desastre. Nesse impasse revela-se claro o absurdo de nossa civilização, fundada nos “meios” e não mais em “fins”. Só pensar nestas perguntas, até há pouco impensáveis, já está a indicar como é profunda a mudança e como fica exposto escancaradamente o nível de imaturidade em que ainda se debate aconsciência humana para encarar adequadamente esses tremendos desafios, desde ecológico-econômicos até sociais, políticos, culturais, morais e espirituais.
Se pensamos em nosso país, vemos que aqui a crise da civilização adquire contornos particulares e se agrava. Em apenas mais ou menos sessenta anos, temos passado do rural ao urbano, mudança que um continente como a Europa levou séculos para atravessar. Entre nós, esse processo não obedece a natural “evolução”, mas a “aceleração”, como falava o mestre antropólogo Darcy Ribeiro. Problemas antigos não resolvidos, decorrentes da colonização, tendem a agravar-se. Pensemos na situação, tantas vezes desesperada, de nossos povos aborígenes, de quilombolas, e mesmo de camponeses sem terra, ainda tratados, sob o paradigma do desprezo, por “escravos(as)”, da negação de terra para viver e trabalhar, sem falar do forte sentimento de racismo com que são olhados(as). Problemas novos, decorrentes das rápidas mudanças, vêm-se acrescentar e velozmente sobrepor-se. O acelerado processo de urbanização e o avançado nível da tecnologia, inclusive das comunicações, parecem mover os alicerces da convivência social e nova cultura vai-se impondo a dirigir a vida coletiva. Valores tradicionais de família, de identidade pessoal e coletiva, de religião, de moral sexual e profissional, de moral da economia e das relações sociais, de comportamento da juventude, de homem e mulher; valores que eram normativos da vida econômica, social e política, tudo isso se sente em ritmo de intensa e rápida mutação. Baste pensar, por exemplo, no que significa hoje “vida privada” e exposição pública das pessoas, com todos os mais variados bancos de dados existentes e as invasões de privacidade…
Neste contexto, a religião se acha em novo panorama. De país tido até há pouco como católico (“o maior país católico do mundo”), somos hoje sociedade pluralista, com diversos tipos de Igreja e novas propostas religiosas, desde as ancestrais até as importadas, além de crescer a consciência do Estado laico. O Cristianismo, que tinha traços bastante nítidos, apresenta-se agora como amplo e confuso movimento de diferentes propostas de espiritualidade, semelhantes, umas, antagônicas, outras, e até radicalmente contraditórias. Algumas delas, quem sabe, já bem distantes da mensagem bíblica, sobretudo do Evangelho, com a eliminação da cruz e o irresponsável anúncio da “prosperidade”, sem falar da exploração da credulidade pública. Doutro lado, apesar da escandalosa desigualdade econômica e social, e da tremenda diferença de oportunidades culturais, apesar da opressão, da marginalização e até da exclusão de tanta gente entre nós, sem dúvida cresce paulatinamente o senso de democracia, de participação, de direito de estar no mundo, qualquer que seja a própria condição e os próprios limites.
Estamos, sem dúvida, no limiar de profunda mudança da forma de ser, de sentir, de pensar e de agir. Não é de estranhar que já se fale e se escreva sobre “um outro Cristianismo é possível”. Grande é o desejo de inventar novas relações econômicas e sociais. As relações políticas têm sido alvo de acirrado debate. A democracia “representativa” já parece não satisfazer; fortalece-se a luta por novas relações de poder, com novo ordenamento político, de modo que possam crescer a iniciativa, a participação e o controle da sociedade civil sobre a economia (controle do orçamento público e de sua execução; controle dos serviços “públicos”, quer executados pelo Estado, quer pela iniciativa privada, como saúde, educação, segurança e outros setores estratégicos, como as comunicações, por exemplo); controle das instituições políticas, particularmente as do Estado, mantendo-se a capacidade da sociedade civil em vista da iniciativa de propor novas leis e de garantir a autonomia de suas próprias organizações, associações e movimentos, independentemente do Estado, para que cheguemos afinal à nova forma da “democracia participativa”. Trata-se de imensos desafios à consciência humana ainda tão imatura. Entre todos esses, avança também a pressante necessidade de lidar, de maneira saudável e democrática, com as diferenças, a saber, como conviver humanamente com a diversidade humana, daí o desafio a mais doecumenismo (direito de todas as pessoas de habitar “a casa comum”) e do diálogo no sentido mais amplo possível.
2. Novo contexto sociocultural
Sabemos como as condições materiais da vida e de sua reprodução são decisivas para marcar a percepção da realidade em torno a nós e, em certa medida, até chegam a determiná-la.
Na sociedade agrária tradicional, é claro que contam razão e mão de obra humanas, mas tudo, em última análise, dependia dos ritmos da Natureza. Religião e moral são sempre maneiras culturais de manejar essa relação de profunda dependência em face das “leis naturais”. Não é por acaso que na sociedade tradicional seja íntima a relação e estejam entrelaçados, cultivo, cultura e culto.
Na sociedade industrial, o meio básico de produção já é artificial, é a máquina, produto da razão e da mão humana. É certo que a máquina ainda impõe seu ritmo objetivo, segundo sua natureza própria, mas é invento humano e depende, em certo medida, do ser humano para funcionar, passo decisivo para atenuar a dependência do sujeito humano aos objetos materiais. A cultura passa a prevalecer sobre a Natureza, a produção adquire mais a característica de criação humana, o artificial vai-se afirmando sobre o “natural”.
No capitalismo financeiro, centrado no dinheiro, elemento mais virtual que real, por seu essencial caráter de “símbolo” e não de “coisa”, cresce ainda mais o sentimento de poder humano. Quase já não se depende das coisas, pois faz-se das coisas o que se deseja e se decide fazer. Quem tem dinheiro, pode. A cada dia são transferidos trilhões de dólares só mediante teclas de computador, sem tocar em “coisas”, nem sequer em moedas.
Agora, na era da informática, a imagem do universo e dos seres, inclusive de nosso próprio ser, já não se desenha culturalmente em nossas mentes a partir do paradigma “objetivo” da máquina, e muito menos da Natureza, ou seja, a partir de algo já dado e pronto, com contornos “naturalmente” e previamente estabelecidos. Agora, a imagem de referência que está formando as novas gerações é a da “programação”, com contornos continuamente mutáveis em ato contínuo de produção. Passamos a ser cada vez mais produtos “culturais” de nós mesmos(as) e não mais seres “naturais”. Vamos sendo recriados permanentemente, nós e nosso mundo, a partir de “projetos” por nós mesmos(as) formulados.
Grandes temas se impõem à reflexão e à ação humanas, como a austeridade e a parcimônia no uso dos recursos naturais; a justiça nas relações econômicas; a democracia nas relações de poder a exigir novo ordenamento político. Na área dos valores culturais, reivindica-se o estrito respeito aos direitos humanos, com a superação de preconceitos e comportamentos inadequados no trato com pessoas fragilizadas e minorias discriminadas; exige-se o acesso das pessoas e dos povos à educação como pressuposto para sentir-se na posse do mundo; intensifica-se a pergunta: Que lugar terão neste mundo as pessoas e os grupos excluídos, como miseráveis, moradores(as) de rua, pessoas loucas, ou com deficiência, idosas…? Cada vez mais pessoas são sensíveis ao estabelecimento da paz internacional, na busca por mecanismos de resolução de conflitos sem apelo à violência das armas e, consequentemente, o desmonte dos aparatos militares, com o fortalecimento de autoridade política mundial…
Entre muitos outros temas, há mais ou menos trinta anos, vem-se progressivamente acentuando, na sociedade e nas Igrejas cristãs, o debate em torno da diversidade, também de gênero e sexual, e dos desafios éticos que surgem da nova realidade de nosso mundo. Pergunta-se, por exemplo, até que ponto se deve reconhecer e até promover a inclusão de pessoas homoafetivas e homossexuais em nossas relações quotidianas e, na esfera pública, das relações institucionais e estruturais. A questão se tem levantado como problema por força de novos fatos, pesquisas e comportamentos que se manifestam na sociedade e, por conseguinte, fazem surgir novas perguntas. Por exemplo, a informação de que cada ser humano é simultaneamente masculino e feminino e que apenas os diferencia um fator: XX-XY; assim como a informação de que “gênero” é em boa medida criação “cultural”, não algo simplesmente “natural”. Daí, somos levados(as) a aprender que as fronteiras não são tão rígidas como se pensava antes e, por isso, a identidade sexual pode construir-se de maneira diversificada, levando a falar hoje em dia de “diversidades sexuais”, no plural, isto é, para além do tradicional padrão ainda vigente de “homem-e-mulher”…
É evidente a crescente tomada de consciência da justiça nas relações humanas e por isso dos direitos humanos e da dignidade essencial de cada pessoa. Com isso aguça-se a sensibilidade a todo tipo de opressão, discriminação e exclusão, quando se trata, por exemplo, de mulheres, de crianças e adolescentes, de povos negros e aborígenes, de pessoas com deficiência, de vítimas de injustiça e de pobreza, de pessoas idosas e de pessoas discriminadas por razão de sua identidade sexual, etc.
No campo da Ética, vê-se que se debate sobre nova compreensão da chamada “lei natural”, a partir da pesquisa e da reflexão na área da Antropologia e na Filosofia. Se é certo que o ser humano é eminentemente cultural, recriador de si mesmo for força da liberdade, pergunta-se que significa, então, submeter-se a “leis naturais”, predeterminadas e fixas? A autonomia da liberdade não implica em dar a si mesmo(a) seus próprios fins e escolher os meios para alcançá-los? Qual o limite da liberdade, que se deve manifestar nas relações sociais e na cultura? Até onde é possível e lícito ultrapassar as leis naturais e mesmo transgredi-las? Alega-se, então, que o princípio ético não seria simplesmente submeter-se às leis naturais, mas como lidar com elas com liberdade e responsabilidade para que adequadamente correspondam a interesses e fins humanos e humanizantes.
Ressalta-se que o processo de democratização tende a criar nas pessoas uma consciência democrática, isto é, faz crescer a percepção de que é normal ser diferente e confere coragem de assumir e manifestar a própria identidade e exigir o direito a ver respeitadas as próprias condições particulares e opções mesmo que sejam minoritárias, apenas com a ressalva de que não venham a causar prejuízo às demais pessoas.
Lembra-se que o movimento feminista, que visava, antes de tudo, a afirmar a autonomia das mulheres, na verdade, contribuiu também, do ponto de vista cultural e ético, para distinguir prazer erótico e prazer sexual, e prazer sexual e procriação. Com isso, facilitou o caminho para a afirmação da diversidade das identidades sexuais, enquanto veio possibilitar nova compreensão da dimensão erótica do ser humano e sua relação com a sexualidade e a genitalidade, ou seja, a distinção entre prazer (erotismo), sexo (genitalidade), procriação (reprodução da espécie), casamento (hoje se fala de “produção independente” e de “companheirismo íntimo”) e família. Os condicionamentos da vida urbana, a profissionalização crescente das mulheres fora do lar e os meios contraceptivos artificiais oferecem base material importante para perceber e vivenciar essa distinção emocional e cultural entre sexo para o prazer (erotismo) e sexo para a procriação (função de reproduzir a espécie). De novo, levantam-se perguntas: qual é o limite, se há, e como estabelecê-lo? Nesse contexto, por exemplo, acirra-se a discussão sobre o aborto e o direito da mulher a abortar, assim como o direito de assistência à saúde da mulher que eventualmente venha a abortar por própria decisão, assim como a reivindicação de descriminalizar o aborto, mesmo que este possa até ser considerado algo social, moral e eticamente indesejável. Lutar pela descriminalização não significaria automaticamente ser favorável ao aborto. Decidir abortar reduz-se a expressão do direito da mulher sobre o próprio corpo? Não há estreita relação entre o direito ao próprio corpo e a responsabilidade social e moral pela nova vida em gestação? A vida do feto é apenas “parte” da mulher ou já tem autonomia por si mesma? É ou não o nascituro sujeito de direitos?
A partir de tudo isso, observa-se, em setores da sociedade atual, nova mentalidade em encarar a união íntima entre pessoas. O acento já não é mais, como até há pouco, no objetivo da procriação, mas no prazer recíproco da convivência afetiva, amorosa, e de complementaridade e mútua assistência. A procriação tende a tornar-se “eventualidade” desejada e planejada, a chamada “paternidade/maternidade responsável”. Sabemos como, já em nossa sociedade colonial, vivia-se a clara distinção entre a mulher “mãe dos(as) filhos(as)”, a honrada esposa, tantas vezes frustrada no prazer, e a amante ou a prostituta, com quem se tinha de fato real prazer. A nova consciência tem alterado radicalmente a concepção tradicional de casamento, sua sacralidade e estabilidade, e suscitado outros tipos de relação de parceria afetiva e íntima, assim como outros modelos de família, de regime de vida e convivência, bem como de institutos jurídicos. Com efeito, o casamento é hoje verdadeiro “laboratório” de experiências e de criação autônoma, por parte da sociedade, de diferentes formas e modelos, cada vez mais admitidos pela legislação civil de vários países.
O campo científico, com pesquisas e debates, nos tem oferecido novos elementos de informação e de reflexão, ou pelo menos de interrogação e suspeita no que diz respeito a questões relacionadas à identidade sexual humana, tanto no que se refere à área da Psicologia e da Psicanálise, quanto à área da Neurofisiologia e da Biologia. Diversas vozes vêm lembrar-nos de que a Antropologia Filosófica, a Antropologia Cultural e a História têm chamado a atenção para a grande diversidade que se acha entre diferentes povos quanto a modos de viver a sexualidade, as relações homem-mulher, as formas de família e a homossexualidade. Com isso, têm-se levantado novas perguntas e elaborado novos conceitos em torno do que seja “tradição”, particularmente no que toca a compreensão de que se trata de processos de transmissão “histórica”, a saber, de constituição e interpretação da vida coletiva, sujeitos a condicionamentos e a evolução, e o momento presente tem de ser considerado, ele mesmo, não só como etapa de pura recepção de herança já constituída no passado, mas como momento de reinterpretação dessa herança e, ao mesmo tempo, como manancial constitutivo que se agrega ao fluxo total do processo ininterrupto da tradição.
Deve-se acrescentar que novos dados e novos conceitos têm-se feito presentes também no campo da Exegese e da Hermenêutica bíblicas, da Antropologia Teológica, da Espiritualidade e da Moral Cristã. Para isso muito tem contribuído o diálogo entre Ciência Bíblica, Teologia e Ciências, além da Filosofia. Hoje se distingue com mais clareza entre Moral (comportamentos e preceitos desejáveis em determinada sociedade e época, por isso intimamente ligados à cultura de cada povo), Ética (horizonte que julga comportamentos e preceitos à luz de valores superiores, tais como amor, liberdade justiça, respeito, responsabilidade, perdão, misericórdia…), Espiritualidade (o nível mais profundo no qual se experimentam os valores no interior de uma relação com o mistério da Vida, no caso do Cristianismo a relação de filiação com o Mistério divino – cf. a Carta aos Gálatas).
3. Desafio à Igreja
Em alguns países ou setores de países, reivindica-se nova atitude em relação a pessoas homoafetivas e homossexuais, como exigência de justiça, com base na dignidade e igualdade de todos os seres humanos e o respeito que se deve a cada pessoa como imagem e semelhança de Deus, qualquer que seja sua condição, suas características, capacidades e também limites. Lembra-se com ênfase que, diante do Evangelho de Jesus, não pode haver exclusões de qualquer ordem, pois a salvação, exclusivamente por graça, implica em sermos aceitos(as) por Deus e amados (as) em nosso ser concreto, enquanto filhos e filhas, com nossas particularidades e até “enfermidades”, isto é, naquilo em que não somos “firmes”, e até em nossos pecados, alvo de Seu olhar de misericórdia. Alega-se ainda que as estatísticas revelam haver na população mundial uma faixa de pessoas homoafetivas/homossexuais em torno de 10% e o mesmo aproximadamente se dá nas Igrejas e religiões. Diz-se que, no campo das ciências psicossociais (Psicologia, Psicanálise, Sociologia, Antropologia) e biológicas, vem sendo posto seriamente em dúvida o conceito vigente de “normalidade”. Aponta-se também para a gravidade de a Igreja, com suas posições discriminatórias e até de exclusão, acrescentar inenarráveis sofrimentos e até justificativa para a perseguição que se promove contra pessoas que fogem ao padrão” tradicional dominante de “normalidade”. Alega-se ainda que, da parte das ciências e da experiência de pessoas homossexuais, se deveria reconhecer que na origem da condição homossexual não se deve enxergar “opção” pessoal voluntária, mas “condição” em que as pessoas se acham ao perceber a própria identidade, muitas até depois de tremendas e sofridas tentativas para negá-la ou mudá-la.
Pessoas das áreas da Psicologia e da Pedagogia alertam para a distinção entre a “condição” homossexual insuperável, traço permanente da pessoa, e “sinais” de homoafetividade ou homossexualidade que podem manifestar-se na infância e, particularmente, na adolescência, idades nas quais a pessoa ainda está em busca de perceber sua identidade. Há fatores que podem influir para pôr a criança em “situação” de homossexualidade “transitória” e, por isso, reversível. Tais fatores são, por exemplo, processos infantis de identificação com o pai ou a mãe; o próprio ambiente familiar ou de vizinhança; experiências sexuais precoces, ou até abusos, em ambientes onde se convive, de modo exclusivo ou quase, com pessoas do mesmo sexo, como internatos, abrigos ou instituições de reeducação, quer seja convivência com pessoas da mesma idade, quer com pessoas adultas; certas experiências psíquicas que deixam fortes marcas na pessoa ou a fecham em si mesma, com dificuldade, e mesmo medo, de se confrontar com a alteridade sexual. Para tais casos, não parece impossível proporcionar a vivência de processos de amadurecimento psíquico e de personalidade, através, por exemplo, de competente terapia psicológica ou psicanalítica, que favoreça tomar consciência profunda da própria identidade sexual de acordo com a própria estrutura biológica de homem ou mulher.
Outra coisa é sentir a própria homossexualidade como “condição” insuperável, inevitável e “natural”. Temos sido testemunhas de experiências dramáticas de pessoas que, desde alguma fase da infância se descobrem irresistivelmente atraídas por outras do mesmo sexo, por seus comportamentos e costumes, de vestir, por exemplo. Homens que se sentem mulheres, mulheres que se comprazem em sentir-se homens, ou ambas as coisas. Gente que se sente, digamos, na fronteira de gênero. Várias delas chegam até a empreender dramática batalha para reverter a situação e superar isso que é sentido como ambiguidade; sofrem intensamente por se descobrirem assim, chegam ao extremo de odiar-se, de rejeitar-se por sentir-se rejeitadas por Deus e tentam inclusive matar-se. Aí estamos, sem dúvida, diante daquilo que se classifica como homossexualidade enquanto “condição” concreta e permanente do ser da pessoa, único caminho de sua realização prazerosa e feliz.
A palavra tradicional da Igreja tem sido propor a tais pessoas o caminho da continência sexual como única via de praticar a castidade e, consequentemente, único caminho possível de buscar a santidade. Assim se expressam a Conferência de Lambeth, no Anglicanismo, em 1998, e o Catecismo da Igreja Católica. A propósito, é preciso distinguir “castidade” e “continência”. Castidade é a virtude da integralidade do coração, da inteireza dos afetos, que deve ser exercida por todas as pessoas, quer solteiras, quer casadas. Continência, por sua vez, é a prática da castidade mediante a abstinência sexual, quer no caso de pessoas consagradas ao monaquismo, quer simplesmente solteiras. Será realista pedir às pessoas homossexuais que guardem a continência, se não se sentem vocacionadas para tal? Impor a continência como único caminho possível para a vivência ética, quando o próprio Catecismo da Igreja Católica reconhece que não se trata de opção ou escolha, mas de “condição inata” de certas pessoas? Será razoável? Será justo privar essas pessoas da experiência da felicidade na área da afetividade, da erótica e da sexualidade? Sim, pode ser o que não se julgue ideal, mas não seria o possível na condição real de seu ser concreto? Devemos ter presente que “espiritualidade” não se identifica necessariamente com cumprimento de prática moral, de regras de comportamento propostas por determinada sociedade, já que em si mesma espiritualidade não equivale a cumprir a lei, como nos ensina enfaticamente o Apóstolo São Paulo. Na verdade, trata-se de viver a condição de filho ou filha de Deus nos limites que cada pessoa experimenta em sua vida. São significativas a este respeito as reflexões do papa Francisco na parte final de sua Exortação Apostólica “Amoris Laetitia”, quando trata do “discernimento das situações chamadas irregulares”, dos atenuantes no discernimento pastoral e da “lógica do discernimento pastoral”; é verdade que tem em mente sobretudo a situação de casais divorciados e recasados, mas as orientações, como são princípios de fundo, são aplicáveis também em outras realidades sobre as quais incide julgamento ético e espiritual (cf. nº 296-263). Suas recomendações pastorais são muito semelhantes às que qualquer bispo anglicano poderia perfeitamente assumir.
4. O consenso na Igreja
Antes de tudo, afirma-se que até hoje não sabemos exatamente quais as causas que determinam a condição homossexual. O que há, na verdade, são interrogações e hipóteses para essa perturbadora pergunta.
O Anglicanismo mundial, representado pela Conferência de Lambeth no encontro decenal do episcopado em 1998, por grande e expressiva maioria, votou algumas diretrizes que constam da Resolução I. 10:
- Tendo em vista o ensino das Escrituras, defende-se a fidelidade no matrimônio entre um homem e uma mulher ao longo da vida. Acrescenta-se que a abstinência é a via adequada para quem não é chamado ao matrimônio;
- Reconhece-se que há em nosso meio pessoas que se percebem a si mesmas como tendo orientação homossexual. Muitas dessas são membros da Igreja e têm buscado cuidado pastoral, direção moral da Igreja e o poder transformador de Deus para o encaminhamento de suas vidas e o direcionamento de suas relações. Declara-se o compromisso de prestar atenta escuta à experiência dessas pessoas e de assegurar-lhes que são amadas por Deus e que todas as pessoas batizadas, crentes e fiéis, qualquer que seja a orientação sexual, são plenamente membros do Corpo de Cristo;
- Rejeita-se a prática homossexual, enquanto incompatível com o ensinamento das Escrituras, mas convoca-se todo o povo da Igreja a servir pastoralmente e com sensibilidade todas as pessoas, independentemente de orientação sexual, e condena a homofobia como sentimento irracional, assim como a violência no casamento e a degradação e comercialização do sexo, excluindo-se, por conseguinte, a promiscuidade;
- Sentem não poder aconselhar a legitimação de bênção de uniões de pessoas do mesmo sexo, nem de ordenação ao ministério de quem se ache envolvido em união do mesmo gênero;
- Solicitam aos Primazes e ao Conselho Consultivo Anglicano que estabeleçam um instrumento com o objetivo de monitorar o trabalho feito no que se refere ao tema da sexualidade humana no conjunto da Comunhão Anglicana e de partilhar com a Igreja todas as declarações e subsídios.
Entre nós, no Brasil, os bispos da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, em cartas pastorais coletivas e outras declarações, têm enfatizado os seguintes aspectos:
- O propósito de Deus para os seres humanos é que as pessoas sejam cada vez mais transformadas pelo processo de humanização;
- Esse processo, na verdade, se dá mediante o amor, que é a expressão autêntica da liberdade, e se concretiza no serviço recíproco. É assim que a pessoa vivencia sua transcendência e ultrapassa a experiência do “eu” para projetar-se no “nós”;
- Esse caminho supõe fidelidade, dedicação e entrega de si. Por isso, qualquer forma de promiscuidade é degradação e alienação do ser humano;
- A sexualidade é querida por Deus, por isso é dom e uma das formas de realização do amor, nela se combinam, entrega de si e prazer;
- As pessoas de orientação homossexual devem ser acolhidas com sensibilidade e amor fraterno, e como “plenamente membros do Corpo de Cristo”, devem ter oportunidade de desenvolver e oferecer seus dons. Todo preconceito de homofobia ou exclusão deve ser rejeitado e combatido por força da solidariedade com pessoas discriminadas e excluídas, em nome da caridade, núcleo do Evangelho;
- O que deve dirigir nossas relações com pessoas homossexuais, não são estereótipos ou tabus culturais, mas, de um lado, a percepção da realidade, por isso faz falta “atenta escuta da experiência de pessoas homossexuais”, e, doutro lado, a norma suprema que é a Escritura, cuja expressão concreta e normativa é o “sensus fidelium”;
- A Conferência de Lambeth sente que “não pode aconselhar” a bênção de uniões de pessoas do mesmo sexo, nem a ordenação de quem está envolvido em união homossexual. Quanto a esses dois pontos, o debate prossegue atualmente na Comunhão Anglicana e já há diferenças na prática de Igrejas particulares, dando origem a tensões e conflitos. Em recente carta dos Bispos do Brasil, a uma de nossas comunidades, a ênfase clara era que qualquer novo passo quanto ao tratamento da questão não pode ser promovido, nem por bispos nem por qualquer outro grupo na Igreja, mas depende da manifestação do “sensus fidelium”. Entrementes, o que temos de fazer é escutar-nos mutuamente, orar e refletir com honestidade e paciência, e discernir com fidelidade, a partir das fontes da fé e dos “sinais dos tempos” por qual direção nos leva o Vento do Espírito, para, assim, nos mantermos fiéis à Boa Nova de Jesus.
Em outras palavras, temos de continuar a caminhar nos trilhos que, particularmente, Hooker nos apontou e que nos habituamos a designar como “autoridade dispersa e compartilhada”. O que temos de reler sempre de novo é o texto que representa para nós a norma suprema, a referência de nossa identidade e do caminhar da Igreja, a Bíblia. Mas, como nos diz, a 2Cor 3, “o documento antigo está coberto por um véu e esse só é retirado em Cristo”. E dizer “em Cristo”, para o Apóstolo São Paulo, é falar da experiência do Espírito que se faz na vida da comunidade cristã, “carta viva de Deus, escrita em nossos corações e conhecida e lida por todos os seres humanos”. Ou seja, é na vida da Igreja, no contexto vivo da fé, da esperança e sobretudo do amor (cf. 1Cor 13), e das circunstâncias históricas (“sinais dos tempos”), que se dá a “recepção” do documento antigo e esse se faz , aqui e agora, testemunho da Revelação. É justamente isto o que significa Tradição. A comunidade cristã aporta ao fluxo da Tradição a Experiência sucessiva das pessoas e dos grupos de cada geração. Sempre de novo e de maneira renovada, cada geração acolhe a Bíblia, recebe a herança que lhe é entregue pelas testemunhas e os testemunhos da fé das gerações que a precederam e, assim, reinterpreta a herança apostólica e se integra à vida da Igreja também como elo constitutivo do processo da Tradição. Finalmente também faz parte da experiência lidar com a Razão, com as perguntas e desafios que vão surgindo de cada nova conjuntura histórica: as condições reais de vida, desde a economia, o contexto das relações sociais, das relações políticas e da cultura; das questões levantadas pela Ciência e pelo bom senso. Essas quatro dimensões da elaboração teológica são clássicas no Catolicismo, baste consultar a Constituição sobre a Divina Revelação, “Dei Verbum”, do Concílio Vaticano II.
Assim, temos de prosseguir, com sabedoria, humildade e lucidez, ajudando-nos mutuamente, na comunhão da Igreja, a enxergar o brilho que irradia da faísca que brota de repente do entrechoque das quatro pedras de toque que vão forjando o “consenso dos fiéis” ao longo da história: Escritura, Tradição, Experiência e Razão. Em outras palavras, texto originário, processo histórico, vivência atual e reflexão racional. Escritura, ou texto originário, por isso normativo da caminhada, é a memória privilegiada e clássica de nossos pais e mães na fé (cf. Hb 11); Tradição é a marca de identidade comunitária que a vida da Igreja vai forjando ao longo dos séculos; Experiência é vivência testada na própria carne, de cada pessoa ou grupo e se entrelaça no presente como teia que constitui o “com-texto” vivo de “recepção” das fontes da fé, e assim se entrelaça mais amplamente com a herança e o processo dinâmico que chamamos de Tradição; Razão são os desafios da sociedade, as questões que brotam do mundo em cada época e nos atingem diretamente como filhos e filhas de nosso tempo, invadem a Igreja e a despertam a ficar atenta aos sinais de Deus em cada tempo. Afinal, o que importa acima de tudo, é que sejamos ministros e ministras da reconciliação, pois “é Deus que em Cristo reconcilia o mundo consigo, não imputando aos seres humanos suas faltas e pondo em nós a palavra da reconciliação” (2Cor 5, 19), como nos lembravam os Bispos da IEAB em uma de suas cartas pastorais.
5. Questões a enfrentar
Para além dos pontos de consenso mencionados, restam, porém, sérias questões a enfrentar.
Há na tradição cristã ênfase inequívoca em definir o matrimônio, e nele as relações sexuais, como relações entre homem e mulher, que se estabelecem como padrão humano de “normalidade” natural, legitimado pela imagem bíblica da criação (cf. Gn 1-2). Tanto na doutrina católica sempre vigente, como também reafirmada na Conferência de Lambeth 1998, a abstinência de relações sexuais é o caminho “normal” para quem não se sente chamado ao matrimônio assim entendido.
É também enfática a afirmação da tradição de que a “lei natural” é fonte normativa do comportamento moral e, no caso em tela, “natural” seriam as relações heterossexuais. O Catecismo da Igreja Católica assim fala a respeito da homossexualidade: “A homossexualidade designa as relações entre homens e mulheres que sentem atração sexual, exclusiva ou predominante, por pessoas do mesmo sexo. A homossexualidade se reveste de formas muito variadas ao longo dos séculos e das culturas. A sua gênese psíquica continua amplamente inexplicada. Apoiando-se na Sagrada Escritura, que os apresenta como depravações graves, a tradição sempre declarou que os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados. São contrários à lei natural. Fecham o ato sexual ao dom da vida. Não procedem de uma complementaridade afetiva e sexual verdadeira. Em caso algum podem ser aprovados”. Mas acrescenta: “Um número não negligenciável de homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais inatas. Não são eles que escolhem sua condição homossexual; para a maioria, pois, esta constitui uma provação. Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á para com eles todo sinal de discriminação injusta. Estas pessoas são chamadas a realizar a vontade de Deus na sua vida e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar por causa de sua condição” (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, Castidade e homossexualidade, 1998, pg 531).
Acham-se na Bíblia, tanto no Primeiro quanto no Novo Testamento, alguns poucos textos, é verdade, nos quais, porém, com clareza, parece, à primeira vista, e de acordo com a interpretação usual, condenar-se a prática homossexual. Como vimos, foi com base nesses textos que a Conferência de Lambeth declarou que “a prática homossexual é incompatível com as Escrituras”.
Qualquer reflexão que se venha a fazer na Igreja sobre a sexualidade humana tem de enfrentar, como tarefa primordial, a releitura isenta e honesta desses textos e verificar qual é a profundidade e a extensão de sua normatividade. O que exige delicado e competente trabalho exegético e hermenêutico; a escuta atenta e cuidadosa de qual tem sido a “recepção” dessas normas milenares na prática do povo cristão ao longo da história; e, finalmente, como levar em conta na interpretação da Bíblia e da Tradição, além dos condicionamentos culturais que possam afetar a mensagem bíblica e a doutrina contida na Tradição, os dados da realidade evolutiva humana e a contribuição das ciências hoje.
Ao lado das afirmações em que a Igreja tem consentido, além daquelas respaldadas por milenar tradição, surgem, entretanto, daqui e dali questões que devem ser ponderadas com seriedade e atenção.
Hoje muita gente se pergunta: será que a nova situação cultural em que se acham significativos setores da sociedade e da Igreja, e as perguntas que levantam podem ser respondidas, simplesmente, com a repetição do pensamento cristão tradicional, ou exigem nova reflexão da Igreja para chegar a discernir qual a posição que hoje em dia é mais coerente com a mensagem do Evangelho? Tradição é só o “depositum” da verdade formulada no passado, ou não faz parte também do fluxo da Tradição e elaboração do “sensus fidelium” no momento histórico presente em confronto com os “sinais dos tempos”? Lembra-se que Tradição, pelo menos entre as Igrejas de matriz católica, como a Ortodoxa, a Romana e a Anglicana, além de ser “depósito da fé”, conteúdo doutrinal, portanto, é sobretudo processo dinâmico e se refere à “vida e missão da Igreja ao longo da história sob a iluminação do Espírito Santo”, como se vê na Constituição Dei Verbum do Concílio Vaticano II. Se não fosse assim, dizem hoje muitas pessoas, seriam inaceitáveis certas mudanças na Igreja. Mesmo com tradição de quase dois milênios de exclusão das mulheres do ministério ordenado, na atualidade muitas Igrejas anglicanas e outras do arco da Reforma ordenam mulheres inclusive ao episcopado. Na Igreja Católica Romana cresce e se fortalece a reflexão e a reivindicação de acesso de mulheres ao ministério ordenado, embora ainda seja forte a recusa oficial, o que é desaprovado por exegetas e teólogos de altíssimo nível.
O mesmo se diga em relação ao divórcio enquanto impedimento para nova relação matrimonial aprovada pela Igreja. E, neste caso, é preciso observar que há palavras explícitas das Escrituras que corroborariam a tradição bimilenar. Entre Igrejas do Oriente já havia interpretação própria das palavras de Jesus nos evangelhos, com a compreensão de que o adultério é motivo suficiente para a dissolução do vínculo. Hoje em várias Igrejas já não se excluem pessoas divorciadas, mesmo se recasadas. E novas núpcias, com rito religioso, são admitidas. Na própria Igreja Romana, o Sínodo sobre a Família já sinalizou atitude de maior flexibilidade, misericórdia e acolhida (cf. “Amoris Laetitia”). Não poderíamos ter aqui a mesma regra estabelecida pelo Concílio Vaticano II, ao falar das Igrejas surgidas da Reforma? Mesmo que a Igreja Romana ainda não as considere plenamente Igrejas, na verdade já chega a reconhecer que “têm autênticos elementos que constituem a Igreja”. Ou seja, estabelece-se uma “graduação” quanto à expressividade dos sacramentos. No caso do matrimônio, mesmo quem não foi capaz de manter a indissolubilidade do vínculo, é capaz de viver autenticamente outras importantes dimensões do sacramento, como supõe explicitamente a Exortação do Papa Francisco, mesmo ao falar em outros termos.
Pergunta-se como se deve compreender a “lei natural”, quando se tem presente que o ser humano é, eminentemente, um “ser cultural”, a saber, recriador de si mesmo mediante a liberdade. Essa dimensão cultural não tem de ser compreendida como essencial, estrutural e, por isso algo “natural” no ser humano?
Questiona-se se a consciência atual de que as relações sexuais humanas, diferentemente dos animais, não atende só nem sobretudo à finalidade de procriar, mas também à finalidade emocional, afetiva e erótica de proporcionar prazer e comunhão, não mudaria radicalmente a maneira tradicional de pensar sobre sexo e relações íntimas entre seres humanos. Não é possível discernir na Bíblia o que está condicionado pela cultura da época de redação dos textos e o que é realmente a mensagem divina com vigência permanente? Muitas pessoas se perguntam se não se faz necessário averiguar em que medida os textos não estão marcados por pressupostos típicos da sociedade antiga, rural, patriarcal, inteiramente dependente da Natureza e precientífica? Chega-se mesmo a interrogar se aqueles poucos textos que têm sido lidos como referentes à homossexualidade, realmente se referem ao mesmo fenômeno e à mesma experiência que hoje denominamos homoafetividade e homossexualidade.
Alega-se que, para compreender devidamente tais textos, é preciso dar atenção aos seguintes aspectos: a) no contexto antigo da sociedade agrária, era bem alta a taxa de mortalidade infantil, por isso mesmo o sexo se destinava prevalentemente a gerar mão de obra. Tal situação levava a excluir e mesmo detestar a relação sexual estéril, não procriativa, como se pode ver no intenso sentimento de angústia que rodeava a esterilidade feminina. A não compreensão científica da realidade, e da sexualidade em particular, fazia sentir o sexo como obscuro mistério que envolvia intenso temor para lidar com as fontes da vida, tabus, rituais, proibições, com o intuito de defesa e proteção; b) dever-se-ia ter em conta o patriarcalismo que se configurava pela afirmação do poder em base à supremacia econômica e à potência fálica do macho, como se vê no instituto da poligamia e, particularmente, do harém do rei, com a consequente inferiorização da mulher e dos eunucos ou efeminados. Paradoxalmente, porém, se tinha como necessário o especializado serviço dos eunucos, como se vê nas cortes antigas; c) não se deveria esquecer a íntima relação entre homossexualidade e prostituição e orgia sagrada, no contexto de santuários e cultos aos ídolos, o que chocava profundamente o povo bíblico, em particular, a corrente profética; d) assim como se deveria ter em mente a estreita relação entre homossexualidade e sujeição de pessoas, homens e mulheres, à condição de escravas sempre prontas a submeter-se à vontade e aos caprichos de seus senhores, ora a liberdade é o valor central da fé bíblica, como se vê em toda a Bíblia, particularmente na Epístola aos Gálatas; e) finalmente, em meio ao imenso volume de textos que constituem a Bíblia, pouquíssimos são hipoteticamente os que parecem referir-se ao tema, tendo ainda presente que Jesus jamais disse palavra alguma a respeito, ao contrário, exortou seus discípulos e discípulas a buscar a companhia de pessoas desprezadas e excluídas e acolhê-las à mesa do Reino; f) ainda surge a pergunta sobre em que medida a tradição moral cristã não se deixou levar pelo dualismo helênico, influenciada por correntes como o platonismo e o estoicismo, e ainda pelo maniqueísmo, todas correntes que tinham a materialidade como inferior e superexaltavam a dimensão espiritual e intelectual do ser humano. É bastante pensar o quanto teve influência o pensamento de Santo Agostinho com sua visão pessimista quanto ao corpo e ao sexo.
No que concerne à moralidade dos atos humanos, há quem pergunte como considerar pecaminosa uma prática que seria resultado de uma tendência em si mesma não pecaminosa, por ser a condição real de certas pessoas, independentemente de sua escolha ou vontade. Que significaria, no caso em tela, falar de “ações intrinsecamente más”, ou “intrinsecamente desordenadas”, em outras palavras, ações intrinsecamente prejudiciais e ruinosas às pessoas, quando se afirma que a tendência para exercê-las vem de uma condição inata? Prossegue-se: como se pode aplicar o conceito de “pecado” a ações que, longe de contrariar a ordem do próprio ser da pessoa, ao contrário, parecem realizá-lo de acordo com a maneira como concretamente se o experimenta? Seria moralmente defensável reprimir alguém exigindo-lhe negar-se a satisfazer suas inclinações “naturais”, porque inatas? Como exigir a abstinência se a partir de indicações científicas e da experiência das pessoas que vivem a homossexualidade, não se trata de “opção” voluntária (decisão), mas de “condição de ser” de cerca de 10% (dez por cento) da humanidade?
Pergunta-se ainda como interpretar o significado da tradicional tolerância da Igreja para com membros homossexuais no corpo de fiéis e nos quadros clericais. Pessoas leigas e clérigos, ao longo da história, têm chegado a altos postos e a serem grandemente respeitados. Sem falar dos recentes escândalos com as denúncias de pedofilia na Igreja Católica Romana. Tudo isso apesar da explícita e enfática condenação da prática homossexual como pecaminosa. Há quem sugira a seguinte analogia: o ideal bíblico do matrimônio é o casamento monogâmico e indissolúvel. No entanto, várias Igrejas admitem o divórcio e nova bênção como algo tolerável, mal menor, “por causa da dureza de coração” (cf. Mc 10, 5). Ora, pergunta-se, não seria possível, no mínimo, aplicar o mesmo princípio, ainda que recusando-se a aceitar como padrão ideal a condição homossexual? Não seria possível nos dois casos levar em conta a condição concreta e sempre imperfeita da realidade humana, embora se possa continuar a proclamar o que se julgaria ideal?
Finalmente, questiona-se como julgar a exclusão de pessoas homossexuais em confronto com o núcleo central do Evangelho que é a justiça e o “princípio misericórdia”, em outras palavras, o amor que acolhe sem reservas, como Jesus fazia ao incluir as pessoas excluídas na sociedade de Seu tempo.
6. O debate na Igreja
O fato é que a Igreja cristã, em suas diversas denominações, está em pleno debate de questões que se levantam hoje na sociedade humana, desde problemas de justiça econômica e ecológica até os que dizem respeito à sexualidade, passando pelos complexos problemas políticos. Sobre essa base aflora profunda crise emocional, cultural e espiritual. No Anglicanismo, quem sabe, o debate aflora com mais evidência pela tradição que temos de não camuflar perguntas e diferenças, o que parece saudável e honesto a partir da convicção de que é “a verdade que nos liberta”, embora sua busca possa provocar conflitos e intensos sofrimentos.
O debate, porém, que deveria manter-se no nível dos argumentos, como deve ser no campo da racionalidade, em muitas ocasiões tem sido tão acirrado que resvala para agressividade e até rupturas. De fato, a condição sexual de cada pessoa, por si mesma, não é questão que toque o núcleo da mensagem do Evangelho, já que o coração da Boa Nova é a prática do amor e da justiça. Digo, “a condição sexual por si mesma”, pois é claro que qualquer comportamento humano, em concreto, implica em responsabilidade para com as outras pessoas e, por isso, tem a ver com o amor e a justiça, ou seja, com a qualidade ética das relações inter-humanas. Não é de estranhar, portanto, que os ânimos se excitem. É que dinheiro (economia), poder (política), sexo (prazer) e religião (mística) são dimensões “espirituais” tão profundas do ser humano, têm a ver tão radicalmente com pulsões básicas, estruturantes da identidade pessoal e coletiva, e até inconscientes, que não é de admirar se levam a acender a chama de violentos conflitos e possam até conduzir tantas vezes, como tem acontecido na história, a sangrentas guerras.
Na experiência da Igreja e em nossa Eclesiologia, porém, são para nós fundamentais categorias como “comunhão eclesial” e, portanto,interdependência, “sensus fidelium” e relações ecumênicas em vista de construir e testemunhar a unidade visível da Igreja. Por isso, um ponto deve ser claramente estabelecido desde o início: não são opiniões ou convicções pessoais ou de grupos que se acham “iluminados”, ou até de Igrejas particulares (dioceses ou províncias) que se podem arrogar o direito de definir qual a posição a tomar enquanto expressão da Revelação divina. A posição da Igreja se elabora e se vai consolidando através de lento, paciente e sofrido caminho, até que, finalmente, se manifeste o “sensus fidelium” e se estabeleça a comunhão em matéria de fé e prática, quando se chega a perceber o que é essencial em vista de manter a unidade e reconhecer o que seja legítima diversidade. É dessa maneira que se realiza o antigo axioma que define o consenso da Igreja: “Quod semper, quod ubique, quod ab omnibus” (o que sempre, por toda parte e por todos/as) tem sido aceito.
O nível do debate deve manter-se elevado e basear-se em argumentos, para que prevaleça a racionalidade (“fides quaerens intellectum” – a fé em busca da razão) e não a agressividade primária e emocional que manifesta falta de equilíbrio e facilmente fere a caridade e o mútuo respeito que nos devemos “em laços de afeição e lealdade”. Exigem-se intensa oração, profunda reflexão e paciente e atenta pesquisa e escuta recíproca, para que não se venha a escandalizar e semear confusão no seio do povo cristão, conforme dizia o Apóstolo São Paulo. Pensar por si mesmo(a), manifestar a própria opinião e discordar é direito humano fundamental, reconhecido também na Igreja. Contudo, não se deve confundir defesa desse direito com desacato e vilipêndio a quem eventualmente discorde, particularmente quando se trata de discordar em questões que tocam o discernimento da Palavra de Deus.
Há dois grandes perigos a evitar. De um lado, a superficialidade e a arrogância, confundidas às vezes com protagonismo ou atitude profética, de proferir opinião e “nova doutrina”, em ruptura com a tradição, sem aguardar que a Igreja como um todo percorra, pacientemente, o processo de discernimento que a leve em novas circunstâncias a sentir com clareza qual é a direção na qual a conduz o vento do Espírito, manifestado pelo “sentir comum dos fiéis” nas diversas comunidades. Doutro lado, a igual arrogância de sentir-se com a tarefa de “messiânica” de defender agressivamente o que se julga ser a verdade imutável do Evangelho, e de jogar na vala comum todas as pessoas que pensam de maneira diferente, acusando-as com facilidade de heresia e traição à fé, esquecendo com frequência que há uma “hierarquia de verdades”, reconhecida até pela Igreja Católica Romana, de tal modo que há convicções e práticas que não afetam o núcleo central da Revelação e da fé. Em sua ânsia de ortodoxia moral, mais agridem que argumentam, e em vez de ajudar a refletir, fecham as portas para o diálogo, o qual, de outra forma, poderia ser fecundo e ajudar toda a Igreja a progredir no discernimento da verdade da salvação.
Tem-se de evitar ainda, escrupulosa e exemplarmente, atitude de superficialidade e qualquer opinião pouco fundamentada, sobretudo da parte de pastores(as) da Igreja, pois sua tarefa precípua não é proclamar e defender intuições e opiniões meramente pessoais, mas comportar-se como guardiães da fé e da prática conforme o Evangelho, garantir a comunhão eclesial e fomentar, com isenção e sábia prudência, o desenvolvimento da reflexão, da progressiva elaboração e do aprofundamento, para que, finalmente, se manifeste o “sensus fidelium”. Na verdade, de um lado, estão em jogo elementos tradicionais da milenar identidade cristã, que têm de ser prezados e cuidados com seriedade e zelo, e, particularmente, com extremo respeito à consciência vigente entre o povo cristão. Doutra parte, novas questões e interpelações nos chegam no atual estágio em que se acham a vida das pessoas e significativos setores da sociedade humana. Pode acontecer que já não seja suficiente repetir o que nos diz a tradição. Há perguntas tão novas que estão a exigir da Igreja o esforço honesto de pesquisa e reflexão, de releitura das fontes da fé, de atenta escuta da experiência e, assim, afinal chegar a discernir, entre a confusão de tantas “fábulas”, a verdade (cf. 1Tm 4, 1-6; 2Tm 4. 4), de acordo com a direção em que o Espírito, outra vez, “fala às Igrejas” e se manifesta no consenso do povo fiel. No Anglicanismo, o ministério episcopal carrega a responsabilidade de guardar e defender a fé, mas não se sente portador de carisma de infalibilidade. Embora carregue o “suave fardo” de ajudar a Igreja a preservar a integridade do Evangelho, tem, ele também, de buscar, com humildade, junto com todo o povo crente, enxergar os rumos que o Espírito de Cristo, em cada tempo, nos quer indicar. É verdade o que diz o antigo princípio: “Onde está o Bispo, aí está a Igreja”, a recíproca também é igualmente verdadeira: “Onde está a Igreja, aí tem de estar o Bispo”, pois é, nada mais nada menos, que servo obediente à fé da Igreja, para que se fomente e se sedimente o sentir comum do povo fiel e, deste modo, possamos testemunhar que, no mundo e na Igreja, há sempre um povo em meio ao qual o Evangelho se preserva de modo indefectível.
Se algum novo passo porventura deve ser promovido na maneira de considerar a sexualidade humana, isto não deveria ser resultado de ceder à “mentalidade do mundo”, pois seria trair o testemunho do Evangelho (cf. Rm 12). Só poderia brotar de maduro discernimento no que diz respeito a valores centrais da mensagem de Jesus a ser evidenciados, para que a redenção das pessoas seja real experiência nas circunstâncias da realidade sociocultural de hoje. Isto só pode acontecer em humilde obediência ao Espírito de Jesus que nos interpela mediante os “sinais dos tempos” e nos conduz na busca da verdade, ao inspirar-nos na compreensão da “unidade no essencial, da liberdade no que é secundário, do amor em tudo” (Santo Agostinho). Reinterpretar a Bíblia e a Tradição só é legítimo se o fazemos no mesmo Espírito em que essas foram constituídas. Se é verdade que “a letra mata e é o Espírito que dá vida”, e “onde está o Espírito do Senhor, aí a liberdade” (cf. 2Cor 3), é igualmente verdade que novos aspectos da verdade só o serão da verdade de Cristo se inspirados pelo Espírito de Cristo. (cf. Gl 5, 22-24). Novas possíveis formulações (cf. Jo 16, 12-13) só serão legítimas na medida em que se mostrem novas maneiras de proclamar o mesmo Evangelho de Jesus, fielmente transmitido pelos Apóstolos, carregado daquela mesma santa energia capaz de redimir e levantar quem está à margem dos caminhos (cf. Lc 10, 29-37; 15, 11-32; Sl 146) e capaz de inflamar irresistivelmente confessores(as) e mártires em defesa da Palavra recriadora que “faz novas todas as coisas” (Ap 21, 5) – Lutero diria “o puro Evangelho”.
Ora, o Evangelho do Reino de Deus estará sempre na contramão dos valores opressores e degradantes do sistema deste mundo (cf. Rm 12, 1-2), ferido e caído sob o poder de morte da força satânica das trevas. Não cessará, porém, de ser proclamado como incessante chamado a converter-nos e, assim, a reconhecer e exercer os valores que nos salvam e nos fazem reinar com Cristo: a dignidade de todo ser humano; a solidariedade encarnada em sempre renovados serviços de amor; a luta para transformar os valores e as estruturas injustas da sociedade; o zelo pelos recursos da criação, como expressão de amoroso cuidado e de compaixão por todos os seres do universo, para que se estabeleça, por enquanto parcialmente, é certo, e finalmente em plenitude, o “xalôm”, a felicidade, o “bem-viver”, a paz e a harmonia no mundo inteiro (Ef 2), sendo “Deus tudo em todas as coisas” (1Cor 15, 28) e em nós (cf. Rm 8).
Deus nos conceda Sua lucidez e “a paz que excede todo entendimento” e nos faça sempre mais, como Ele, amigos(as) da vida” (Sb 11, 26).
7. Casamento: distinção entre fé, sacramentalidade e rito
No que concerne ao casamento, deparamo-nos com vários problemas. Há pessoas, inclusive da área da Pastoral e da Teologia, que chegam a perguntar se, “nestes tempos de dureza de coração”, tem sentido manter a prática de celebrar matrimônios como o fazemos atualmente. Não está em jogo a sacramentalidade do matrimônio, pois essa equivale à sacramentalidade do amor (cf. Ef 5 21-33).
Muitíssimas pessoas, quando pensam em “sacramento”,, logo se referem ais ritos religiosos da Igreja. Ora, este aspecto não é desprezível, pois a linguagem religiosa e poética faz parte do universo simbólico, natural à cultura humana. Mas não é nem o mais importante nem o mais fundamental. Na economia sacramental, nós, seres humanos, junto com o mundo e mediante as coisas que produzimos e usamos, é que somos a “imagem, e semelhança” de Deus, sinais maiores de Sua presença oculta, mas real em nós. Se somos crentes em Cristo, temos convicção de que, na vida diária, somos membros de Seu Corpo e Templo de Seu Espírito. Por isso, na vida, nada é “profano”, pois tudo ou é afirmação da presença de Deus (graça) ou sua negação (pecado). Sacramento é “sinal visível da Graça invisível”. Ora, a graça invisível é o próprio Deus que se manifesta por inumeráveis sinais em nossa vida e através dela. Por diferentes maneiras e até diferentes graus, relações entre as pessoas e com o mundo (sociedade e meioambiente) manifestam o amor e a fidelidade do Mistério da Vida, cujo nome pessoal é Deus.
A própria realidade do mundo criado já é o primeiro e originário sacramento. Conforme vemos em Gênesis, capítulo primeiro, todas as coisas são sinais de Deus que se comunica mediante Sua Palavra. Segundo a reflexão sapiencial na Bíblia, a Palavra e o segredo de Deus se escondem em cada coisa (cf. Jó 28). A criação, a realidade do mundo e da vida, com particular lugar para o ser humano homem e mulher, “imagem e semelhança” (Gn 1, 26-31), são o sacramento originário. No topo da comunicação divina mediante a criação, está o Cristo, Verbo de Deus manifestado em Jesus de Nazaré, como lemos nas epístolas de Colossenses e Efésios, é Ele o sacramento primordial, exemplar. Finalmente, a Igreja, a saber, a comunidade cristã, por sua vida e testemunho, continuadora da obra e do testemunho de Jesus, é o sinal da presença de Deus no mundo, qual templo e casa de Sua habitação, e Corpo de Cristo, é o sacramento fundamental. Ao longo do tempo, a partir de algumas palavras de Jesus, de práticas da Igreja apostólica e sob a influência de “ritos de passagem” praticados nas várias culturas, chegou-se a elencar sete ritos particularmente expressivos, simbólicos da realidade da Igreja, são os “sete sacramentos”. Por meio dos ritos sacramentais, a Igreja manifesta aquilo que é aquilo que são as pessoas enquanto membros da comunidade: sinais vivos do Deus vivo na Igreja e no mundo. O número sete já é por si mesmo significativo, pois, na linguagem bíblica, sugere totalidade, plenitude. É como se a Igreja quisesse dizer que a totalidade de nossa vida, de nossas coisas e de nossas palavras (sacramentos são nossos gestos, com coisas e palavras) deve ser compreendida como “sinais visíveis da Graça invisível”. “Sacramentos”, propriamente, não são os ritos, estes são apenas sinais da linguagem religiosa, sinais de que nós, pessoas humanas e comunidade, somos o verdadeiro sacramento da presença de Deus no mundo. Somos, em nosso próprio ser e na prática de cada dia, sinais de Deus, que é como pai e mãe, fonte de vida e de cuidado por toda a Sua criação; somos sinais do Filho, pois somos n’Ele filhos e filhas, participantes de Sua filiação e de sua irmandade; somos sinais da presença do Espírito Santo que é fonte de lucidez, energia e coragem para testemunhar, no dia a dia, que o céu é, na verdade, o manancial oculto de nossa felicidade na terra. No caso do matrimônio, o rito só tem a função de indicar que o casal decide assumir em seus próprios corpos e vida compartilhada, pelo mútuo consentimento e pela união íntima, decidem assumir ser sinal do Deus que é para a humanidade como amante incondicional (cf. profeta Oseias): o casal cristão assume a condição de sinal do amor de Deus no interior da comunidade fraterna e dos valores e estruturas do Reino de Deus na sociedade. “Matrimônio” não é o rito, este é só o sinal de que o casal humano se compromete a amar-se à semelhança de Deus que nos ama. Esta consciência é o que se chama, em linguagem teológica, de “sacramentalidade”, Como diziam os antigos teólogos, o rito é “sacramentum tantum”, isto é, só o “sinal” exterior; a realidade (“res”) profunda é Deus operando em nós; nós, as pessoas, em nosso corpo e vida, somos “res et sacramentum”, isto é, somos “sinais” nos quais a realidade (“res”) de Deus está oculta, mas realmente presente.
O que observamos hoje é uma crise de transformação das formas de casamento. Estamos em verdadeiro laboratório de experimentação e pesquisa. Mudou radicalmente a realidade do casamento e da família. Já não se insiste na estabilidade e muito menos ainda na sacralidade do casamento. Com frequência, escutamos pessoas que encaram o casamento como experiência provisória: “vamos ver se dá certo, se não der, hoje tudo é mais fácil de se resolver”, já não se tem intenção firme de dar um passo para a vida toda. Dizem que há estatísticas a indicar que a duração média de um casamento no Brasil é de pouco mais de sete anos e meio. As pessoas pedem a celebração de casamento na Igreja o mais das vezes por motivos socioculturais e até só estéticos, “porque é mais bonito”. Nem participam de comunidade cristã nenhuma e nem, ao menos, têm nenhuma preocupação com os valores do Reino de Deus. O ministro ou a ministra da Igreja funciona como simples enfeite, ou “azeitona da empada da festa”. É costume convidar padre ou pastor porque fala bonito e emociona a “plateia”. A Igreja faz o papel ridículo de ornamento da festa e, se festa de rico, o ridículo ainda é pior. Chegamos ao cúmulo de presidir um evento muito mais comercial do que celebrativo da fé. Pois já se alastra o costume de, em vez de procurar a paróquia, ir direto a uma “empresa cerimonial” especializada em casamento e “competente” para preparar a “celebração” em casas de festa. De evento comunitário de celebração da fé e do amor degrada-se a mero “contrato” com pastor ou padre que nem se conhece, mas “que fale bonito e agrade os ouvidos” (cf. 2Tm 4, 3). Já há até igrejas associadas às tais empresas, ou elas mesmas já se transformaram em empresas de casamento. Quem sabe, se a cerimônia fosse de graça, será que haveria muitos(as) clérigos(as) dispostos a enfrentar tamanho constrangimento? Mas são pagas, os clérigos, quem sabe, acham aí ocasião de complementar seu salário, os recintos de igreja cobram taxa de ocupação e os enfeites e as empresas cerimoniais e casas de festa faturam a contento. Mesmo o esforço pastoral de encontrar-se e conversar com os noivos previamente, de promover cursos preparatórios, ou pensar que se trate de especial oportunidade missionária ou de dar visibilidade à Igreja, nada disso tem resolvido e vai se tornando cada vez mais só pretexto para continuar… Se, em grande parte, já não se trata de celebração da fé, nem dos valores do Reino de Deus, qual a função da Igreja em tal situação? Repete-se simplesmente o clássico e lamentado fenômeno do “sacramentalismo” impregnado na formação religiosa de nosso povo.
Na crise atual da civilização, multiplicam-se mais e mais os casos de divórcio. Divorciar-se, pode-se fazê-lo hoje com muita facilidade, diretamente em cartórios ou só até por internet. Depois de algum tempo, ao encontrar-se com um dos cônjuges, o(a) reverendo(a) já se acanha de perguntar pelo parceiro ou parceira, pois corre o risco de ouvir como resposta “deve ir bem”, é que não se sabe mais um do outro, já estão separados. Não é descabida a hipótese: se padres e pastores(as) não fossem gratificados financeiramente, se não houvesse taxas a pagar pelo uso de templos e salões de festa para a cerimônia, será que ministros(as) da Igreja se disporiam a celebrar tanto casamento como ainda fazem? Só o fato de levantar essa hipótese já denuncia a gravidade da situação. Daí, por que, nesta época de crise ou de repaganização da sociedade, Jesus diria “de dureza de coração”, há quem se pergunte se não deveríamos voltar ao antiquíssimo costume da Igreja quando ainda não havia ritos fixados para celebração de casamento. As pessoas simplesmente se casavam no civil e eram acolhidas na comunidade como novo casal. A ritualização e normatização do casamento religioso se formalizou sobretudo com a desorganização do império romano e a formação do império de Carlos Magno, quando a Igreja praticamente assumiu a função de cartório para registrar nascimentos, casamentos e óbitos, além de instância de controle social da instituição familiar.
O famoso teólogo flamengo (holandês), falecido há alguns anos, Eduardo Schillebeeckx fez extensa pesquisa e escreveu dois volumes sobre a história e a teologia do matrimônio. Será útil sintetizar o que diz da evolução dessa instituição:
- Até o século IV, no mundo grecorromano, o contrato matrimonial tem aspecto de “contrato familiar” e se baseia, primeiro, em negociação entre as famílias; progressivamente se vai dando importância ao consentimento dos noivos, à coabitação e à consequente geração da prole. A celebração do rito civil vai aos poucos se tornando sempre mais comum, assim como a festa de casamento. Nas sociedades tribais anglossaxônicas e germânicas, a mulher era entregue ao noivo mediante um dote ou compensação econômica. Progressivamente, foi-se acentuando a importância do consentimento da própria noiva. O casamento era regido por costumes populares e legais de cada povo;
- Na comunidade cristã, segue-se o mesmo padrão, e o que se acrescenta é a acolhida do novo casal na comunidade, a participação na celebração da Eucaristia e uma oração para invocar a bênção de Deus. Quando o bispo estava presente à festa era desejável que apusesse sua assinatura ao termo do contrato;
- Nos três primeiros séculos, porém, houve uma crescente compreensão de que o matrimônio entre duas pessoas batizadas, embora fosse um assunto terreno, tinha um sentido cristão e eclesial muito especial. Por isso, evitava-se ao máximo que houvesse casamentos entre pessoa cristã e outra pagã, assim com não se viam com bons olhos segundas núpcias.
- A partir dos séculos IV e V, vai-se estabelecendo o costume de uma celebração presidida por um clérigo, sobretudo no caso de casamento de clérigos e de algumas pessoas leigas consideradas de conduta exemplar. Mas, já no século IX, o Papa Nicolau I se referiu à validade do matrimônio só por consentimento, sem todas as outras cerimônias, mesmo familiares, civis ou eclesiásticas. Não havia, portanto, legislação, nem litúrgica nem canônica. O casamento também entre cristãos era o contrato civil. Em redor do contrato, vão-se criando progressivamente cerimônias para ressaltar seu caráter religioso, tais como imposição do véu sobre a noiva, entrega de anel, bênção dos noivos, missa nupcial, bênção do leito nupcial. Quanto a esses costumes, era grande a variedade entre regiões e povos;
- É só no século IX que se dá um passo inicial importante no sentido de estabelecer-se um “contrato matrimonial eclesiástico”, no âmbito do império de Carlos Magno, acentuando a tendência de a Igreja tornar-se instância reguladora do matrimônio para evitar uniões de consanguíneos (incesto), raptos e assegurar a indissolubilidade. Para fundamentar tão importante mudança, foram produzidos documentos falsos atribuídos a papas antigos (“Decretos Pseudo-Isidorianos”), tidos como autênticos até o século XV. De qualquer forma, “o que particularmente interessava à Igreja neste período não era tanto que o matrimônio se celebrasse segundo os ritos da Igreja, mas antes que se celebrasse publicamente”, isto para evitar os matrimônios clandestinos, sem testemunhas. Mesmo assim, para a Igreja, o elemento que constituía essencialmente o matrimônio era o consentimento dos nubentes.
No Oriente, porém, já havia arraigado costume de presença do sacerdote desde o século IV. Aí, já no século VIII estava estabelecido rito próprio para o matrimônio religioso, inclusive reconhecido pelas autoridades imperiais como tendo validade civil, em paralelo com o rito civil do contrato matrimonial;
- A partir daí, o Estado se enfraqueceu e a Igreja passa a assumir sempre mais o controle sobre o contrato matrimonial, o que foi acontecendo em intensidade diferente, dependendo da região. Esse processo era decorrência da importância e posição pública crescente da Igreja na sociedade medieval. Além disso, foi crescendo sempre mais a compreensão da sacramentalidade do matrimônio como símbolo da relação profunda entre Cristo e a Igreja, com referência à ideia paulina expressa na 1Cor 11, 2-16 e na Carta aos Efésios (cf. 5, 21-33). Estabeleceu-se na reflexão da Igreja já entre os séculos V e X, e foi expressa nos séculos XI e XII, a relação entre a consagração virginal, enquanto “matrimônio” com Cristo, e o matrimônio enquanto “consagração” a Cristo. Fortaleceu-se, assim a sacralidade do casamento, a exigência da indissolubilidade e acentuou-se a forma litúrgica de sua celebração. Deve-se ter presente também a reação da Igreja a tendências heréticas, como o Montanismo (sec. IV), por exemplo, e sobretudo depois na luta contra os albigenses e os cátaros (sec. XII), fortemente marcados pelo Maniqueísmo, que desprezavam e mesmo condenavam o casamento;
- No Concílio de Trento, no século XVI, o matrimônio foi claramente contado entre os sete sacramentos. Deve-se observar, porém, que é significativo o fato de ter sido sempre considerado como sacramento de índole especial, pois, diferentemente dos outros ritos sacramentais, a “matéria” do sacramento não são coisas e gestos, mas os próprios nubentes que trazem seus próprios corpos; a “forma” não é alguma oração ou bênção pronunciada pelo sacerdote, mas é o próprio consentimento declarado pelo noivo e a noiva; e o “ministro” não é o clérigo, mas são os próprios nubentes, sendo aquele apenas uma testemunha qualificada que assiste ao matrimônio oficialmente em nome da Igreja. Além disso, a Igreja sempre defendeu que o matrimônio é instituição “natural”, decorrente das estruturas da criação, da ordem natural das coisas segundo o propósito de Deus no tocante à relação homem-mulher, em vista do amor e da mútua assistência e da propagação do gênero humano na terra. Em outras palavras, a realização do matrimônio e sua índole sacramental, sob inspiração de 1Cor 11 e de Ef 5, não dependem de rito religioso ou de presença de ministro da Igreja, uma vez que seu elemento nuclear é o próprio consentimento livremente expresso pelos noivos. Como diz Schillebeeckx, o rito foi tomando vulto na medida em que o Estado se enfraquecia e a Igreja se tornava cada vez mais a instância de controle do contrato matrimonial e da instituição familiar.
Com o avanço do divórcio e a perda de estabilidade e sacralidade do casamento, estamos em crise, aquela situação que Jesus qualificava como “de dureza de coração”. Em nosso caso, situação de repaganização da sociedade poscristã. O contrato matrimonial volta a ser quase totalmente regulado pelo Estado laico. Sem dúvida, entre cristãos, continua a ser tido como sacramento, a saber, sinal do amor entre Cristo e a humanidade que tem na Igreja suas primícias.
8. Conclusão
Na Comunhão Anglicana, algumas poucas províncias insistem em estender o rito do “Santo Matrimônio” a casais do mesmo sexo. E o tema da acolhida a pessoas homoafetivas e homossexuais praticantes tem sido um divisor de águas que vem quebrar a unidade e a comunhão da Igreja. Há anos amargamos essa dramática situação que se agravou depois da celebração da Conferência de Lambeth 1998. Temos vivido acirrados conflitos e terríveis rupturas entre Igrejas provinciais ou diocesanas. Sem dúvida, afirma-se que as pessoas homossexuais são amadas por Deus e, se batizadas, são membros plenos no Corpo de Cristo, mediante sua inserção na Igreja. Mas até que nível institucional podem ser acolhidas, se vivem a prática de sua homossexualidade? Podem ser ministros e ministras da Igreja? Não há clareza sobre isto, mas o que há é tolerância de fato, inclusive apelando para a tradição de tolerância da Igreja em toda a história, com clérigos homossexuais. E o casamento? Não estaríamos em contradição com a Bíblia, uma vez que aí o padrão de casamento é de homem e mulher? Enquanto temos navegado turbulentamente nessas novas perguntas que nos traz a sociedade neopagã e secularizada, corremos o risco de perder a direção da “rosa dos ventos”.
Não sei se há corrente na Igreja cristã mais inclusiva do que o Anglicanismo, mesmo considerando que a Igreja luterana tem também forte senso da inclusividade. Mas é lamentável que, para responder ao apelo de pessoas e grupos homossexuais, estejamos a quebrar nossa Comunhão Anglicana e a dificultar sempre mais nossa relação e o diálogo com parceiros ecumênicos. Em última análise, de que se trata na discussão de estender ou não o matrimônio a homossexuais? Na verdade, pelo que foi dito acima, não se trata de “estender o matrimônio”, pois o matrimônio se realiza entre as pessoas por sua união íntima alicerçada no mútuo livre consentimento. Essa foi a realidade na Igreja nos primeiros séculos de sua história, quando bastava o consentimento de fato ou o simples contrato civil, quer consideremos o matrimônio um dos sete sacramentos, quer o designemos de “sacramento menor”, quer o incluamos entre os “demais ritos sacramentais que a Igreja tem praticado”. Finalmente, toda a tensão se acirra em torno de conceder ou não o rito também a casais homossexuais. Será que em são juízo vale a pena a Igreja se digladiar, se dividir e até arriscar se autodestruir por causa de um rito puramente religioso? Veja-se bem, não se trata de questão de fé, não se trata propriamente da “sacramentalidade” do matrimônio, trata-se apenas de “administrar o rito religioso” também a pessoas homossexuais. Hoje sabemos com muito mais clareza que religião é só linguagem, rito é só linguagem, às vezes até idolátrica e ideológica. O conteúdo é a fé, o amor e a esperança. Cristianismo não é uma religião a mais, mas a proposta de vida de Jesus como via de salvação. Para a Igreja, o matrimônio surge da própria ordem da criação. No caso de cônjuges cristãos, o matrimônio é tido como “sacramento”. Isto não significa que é porque se administra um rito religioso Por que, então, brigar feito feras a disputar o rito e o “status” sociocultural que parece assegurar? Parece-me um não-senso. Não seriamuito mais profético a Comunhão Anglicana prosseguir em sua acolhida a pessoas excluídas e oprimidas de qualquer espécie, acolhida no âmbito das relações e das instituições, e, em meio a esta crise no seio da nova sociedade neopagã, voltar à Igreja antiga e já não dar tanta importância à prática do rito matrimonial, mesmo para casais de sexo diferente? Não será mais lúcido guardar nossas energias e nossa comunhão para dedicá-las a quem precisa de nós, em vez de nos engalfinharmos para “conquistar um rito” que se torna cada vez mais obsoleto e até, permita-se dizê-lo, ridículo e vazio de conteúdo de fé, quem sabe, nulo por deficiência de intenção e até sacrílego? Como dizia o Arcebispo Rowan Williams: “Os pobres precisam de nossa unidade”. Li de dois jornalistas duas frases jocosas, mas que devem fazer-nos pensar: “Na crise em que estamos, só os padres e os gays querem casar-se”. “Agora os gays também querem casar-se, que ideia mais conservadora!” Pior se os dois jornalistas soubessem que nosso conflito não vem de um problema de realidade, mas que, na verdade, estamos brigando para saber quem se apossa do “rito”, pois, lamentavelmente é isto de que se trata… até que ponto reduzimos a fé cristã a uma religião entre tantas! Ou seja, estamos quase a destruir a Igreja por algo que lhe é completamente secundário e até marginal. Desejamos dar ao mundo o triste espetáculo de que esgotamos nossas energias por mitos e rituais? E ainda temos pretensão de rir quando se diz que Dom Quixote lutava contra moinhos de vento…
Uma observação final. Há grupos na Igreja cristã, como no Anglicanismo, que militam intensamente por “conquistar o rito”, de modo que também as pessoas homossexuais se sintam com igual direito quanto ao casamento. Toda decisão nesse sentido, como já foi dito, só pode ser fruto de apurada análise das Escrituras, da milenar Tradição da Igreja, da Experiência do povo cristão e de apurada reflexão (Razão), ou seja, das quatro dimensões do que chamamos de “autoridade dispersa e compartilhada”. É assim que se forma o “sensus fidelium” na Igreja. O raciocínio não pode ser: “A Igreja tem de avançar de acordo com os “sinais dos tempos”. Não se pode impedir esse avanço sob o pretexto de que o povo ainda não está preparado”. Ora, esta nada mais é que uma visão autoritária. Se há a hipótese de que o povo não esteja preparado, de que se fala quando se pronuncia a palavra “Igreja”? Um grupo de iluminados(as) que se sentem afinados com “os sinais dos tempos”? Ou “sensus fidelium” não é perceber o que povo sente e pensa? “Estar preparado” é estar de acordo com o que desejamos impor como verdade? Temos de ir em outra direção: não se trata de “preparar” o povo para concordar com o que pretendem “elites iluminadas”, mas pacientemente caminhar com ele para perceber o que sente e pensa a partir de seu instinto da fé… Do contrário, a pretexto de “conquistar um rito”, podemos romper com preciosas tradições, criar tremendas dificuldades ao diálogo ecumênico em vista da unidade visível da Igreja, quebrar irremediavelmente nossa Comunhão. Deus nos ilumine e fortaleça no Caminho!
Obs: Imagem enviada pelo autor.
Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB
Imagem enviada pelo autor.