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Quando a casa de vovô Aristides, muitos anos depois de sua morte, foi, enfim, vendida – casa que abrigou tantos filhos e netos, e entre os últimos, eu, em especial, que lá morei de 1966 a 1975, e foi sempre um ponto de referência na família -, recebi, como herança, os retratos dele, de vovó Lilia, de Tia Madrinha e de minha bisavó, que não conheci, Maria Francisca do Espírito Santo. Foi o pedaço que me coube do latifúndio, retratos colorizados, que viviam pendurados nas paredes da sala principal, uns, e outros, no quarto que ele, nos últimos anos, viúvo, habitou e deu o último suspiro, na presença de vários descendentes, entre os quais, emocionado e derramando algumas lágrimas, fui testemunha do evento final.

Os retratos, despojados das molduras, estão comigo, bem guardados, num papelão grosso, e, aí surge o ponto primordial, isto é, sem reproduzir a cor dos modelos principais. Vovó Lilia, por exemplo, era branca, olhos azuis, que poucos filhos herdaram, aparece com o rosto totalmente moreno. Vovô Aristides, acentuadamente branco, parece um mexicano que tenha vivido sempre sob o impacto  permanente do sol. A minha bisavó, que também era  branca, ganhou uma tonalidade morena, que, graças ao cabelo preso e ao nariz curvo de papagaio, exibe mais o retrato de uma índia. Só Tia Madrinha escapou da cor artificial dentro da epopéia de colorizar a sua foto, tão comum naquela época.

O retrato colorizado, bem graúdo, que os mais velhos mantinham, em quadro, nas paredes, acredito, sem apostar, ter sido uma forma de transição do preto e branco  para o retrato colorido, estágio avançado, e acrescente-se, estágio rudimentar, que não refletia a realidade da foto utilizada, não respeitando a cor do modelo nem a roupa que a pessoa trajava. Na dos homens, vinha um paletó traçado na régua, de tão artificial que o resultado evidenciava a estratégia usada. O terno de vovó Aristides é um desses, como é o de papai, o de vovô Zeca, semelhante as fotos colocadas nas sepulturas. Já o de mamãe e o de vovó Lilia ganharam um vestido que o original não trajava. Entre todos, o que mais me chamava à atenção era o de Firmino do Fosco, nosso vizinho, que, de moreno, cor autêntica de descendente de índio, que era, ficou com o rosto branco, o que acentuava o contraste com o  original, na sala da frente de sua casa, transformada em sua oficina de consertar bicicletas.

Há de se ter paciência. O retrato colorizado era um passo para, adiante, uma ou duas décadas depois, se atracar na foto colorida, enxotando-se aos poucos o retrato preto e branco, que terminou sepultado por muito tempo. Sepultado sem estar morto, porque, depois, muito depois, num reviravolta, as máquinas fotográficas passaram a ter dispositivo especial para transformar o colorido em preto e branco em três modalidades, o que demonstra a ressurreição da Fênix de suas próprias cinzas.

O retrato colorizado passou, como ficou para trás o pendurar quadros dos donos da casa nas paredes, costume que os da minha geração muito conviveram – Correio de Sergipe, 18 de junho de 2016.

Obs: Publicado no Correio de Sergipe
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras. 

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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