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Era um sábado desértico. Pouco mais de meio dia. O suor me presenteava com rios e afluentes. A fome desafiava meus últimos reais, suficientes para ludibriá-la na lanchonete do outro lado da rua. Mas era preciso esperar o semáforo autorizar a travessia pela faixa de pedestres. Uns e outros não têm paciência: arriscam-se, desafiam a morte. Eu, não. Por imprudência no trânsito, não morrerei. Por minha imprudência, não. Pela dos outros, não sei. Tomara que não.
Assim que o semáforo interrompeu o fluxo, não atravessei. Meus olhos foram capturados pela beleza da mulher com decote sutil, que retocava o batom ao lado de uma adolescente no automóvel luxuoso.
– Devo usar Dior ou Coco Chanel, filha?
A menina lambia os dedos lambuzados de x-bacon.
– Sei lá. Use qualquer coisa.
– Como assim, qualquer coisa?
– Não sei, mãe. Não curto festa de bacana. Que saco!
– Não é festa de bacana. É um jantar para investidores que poderão tirar nossa empresa do vermelho e garantir o seu futuro.
– Meu futuro ou garantir que você compre mais milhares de vestidos?
– Agora, chega! Deixe de ser malcriada, menina!
A filha fez cara de desdém e irritou ainda mais a mãe.
– Você sabe que eu odeio quando você faz essa carinha. Odeio quando come dentro do carro. Odeio quando você usa palavras chulas. Odeio…
– Quanto estresse, mãe. Isso é fome, sabia? Dá uma mordidinha no meu lanche que passa.
Enquanto discutiam, um menino de rua, sujo, esfarrapado, toca na cabeça, descalço, se aproximou do automóvel, pelo lado da menina. Quando o viram, se assustaram. A mãe deve ter pressuposto um assalto, pois retirou, rapidamente, o rolex, as pulseiras, os colares de ouro e os guardou no porta-luvas. A filha pensou em fechar o vidro, mas o menino havia pousado as mãos na janela.
Não encontrei vestígio de ameaça naquele toquinho de gente. Mas vai saber. O mundo está tão no avesso que até crianças e idosos ocultam periculosidade nos olhos insuspeitos. Por isso, fiquei atento a cada movimento do moleque, caso precisasse agir.
O menino olhava para o semáforo e para a menina, sucessivas vezes. Quando o semáforo liberou o tráfego, ele, num arrebatamento, subtraiu o sanduíche das mãos da menina e fugiu.
O menino estava com fome.

Obs: Publicado no Jornal Tribuna do Norte – Pindamonhangaba – SPaulo

O autor é membro da Academia Pindamonhagabense de Letras é autor de: Lágrimas de Amor – poesia; O sapinho jogador de futebol – infantil; O estuprador de velhinhas & outros casos – contos; Histórias de uma índia puri – infanto-juvenil; O casamento do Conde Fá com a Princesa do Norte, e Um caso de amor na Parada Vovó Laurinda – cordéis.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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