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Para começo de conversa, aponto algumas características do cidadão que, no supermercado, está a minha frente, no caixa: magro, cabelos brancos, gestos lentos de quem não tem a menor pressa. Retira do carrinho as mercadorias adquiridas uma a uma, tudo mui vagarosamente, como um cuidado tão grande que parece ter em mãos frágeis taças de cristal, ou ovos sem embalagem devida, e, depois de tudo encerrado, ainda se lembra que faltaram duas peças a adquirir, deslocando-se, então, para as prateleiras. Eu, a espera. Retorna, enfim. Paga com o cartão, cuidadosamente retirado de uma carteira, e, assim que recebe a nota de compras, sem sair do lugar, examina item por item, persistindo a rapidez dos cágados. Eu, bem, estou atrás, sem poder avançar, porque entre nós dois há um carrinho, e o meu ilustre desconhecido não dá a mínima para a fila que já se forma e cresce, nem para o fato de que todas as minhas compras já estão no balcão. Finalmente, conferidas as compras, guarda o papel na carteira, com a mesma calma com que retirou/guardou o cartão eletrônico. E, aí, paciência, desobstruiu a rodovia.
Não é da lentidão que reclamo, afinal nem todo mundo retira do carrinho, com rapidez, as compras feitas. É do fato de achar, com a sua atitude, que só existe ele ali, naquele exato momento. Podendo fazer a conferência do que adquiriu a um passo a mais, desobstruindo a estrada, permanece no mesmo local, a impedir que a fila ande.
No meu tempo de menino, em Itabaiana, a gente chamava uma pessoa dessa de espelho sem luz, mandando-a sair da frente. Acontecia com frequência no cinema. O filme iniciado e o retardatário ia pedindo licença e licença, passando um ano para se sentar, enquanto os que estavam atrás ficavam impedidos de ver as cenas então exibidas. Nunca li nada a respeito da expressão espelho sem luz. No meu entender, reflete o obstáculo, de quem está atrás do objeto, de ver o que se passa a frente. O espelho sem luz é o que não reflete a imagem de quem está a sua frente. Daí espelho sem reflexo, espelho que não presta. Sei que a ouvi muito e muito a invoquei toda vez que, para azar meu, alguém impede a minha visão. Apliquei hoje ao homem que estava no meu caminho.
No supermercado, é muito comum o carrinho, manejado por alguém, se alojar a frente do freguês, não tendo a mesma sorte da pedra que ficou no caminho de Drumond, para figurar no poema. É a que a pedra era solitária, verdadeira ilha rochosa, enquanto o carrinho, bom ressaltar, é conduzido por alguém. Se só uma vez o poeta se deparou com a pedra no caminho, foi o suficiente para escrever o poema. Eu, por minha vez, sempre encontro um carrinho no meio das vias internas do supermercado. Hoje é que o fato, enfim, me inspirou a confecção deste protesto.
Obs: Publicado no Correio de Sergipe
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras.