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Sessão de cinema

Para Heráclito o fogo era “o” elemento. Ele preconiza que tudo o mais deriva dele, em transformação contínua. E é, talvez, esse, o melhor entendimento para o título do maravilhoso filme canadense/francês  – Incêndios – que ainda deve estar em cartaz e que recomendo que vocês não percam.

Herança é o tema. Mas de que herança se trata?

Morre a mãe e o casal de filhos gêmeos é chamado para a abertura de seu testamento. Os poucos bens materiais estão assegurados a eles, mas eles devem cumprir um desejo especial da mãe: encontrar seu pai e um irmão (desconhecidos para eles) e entregar-lhes, a cada um, uma carta.

Antes dessa cena, as imagens de abertura do filme, quase indefinidas, nos entregam a  um sentimento que é misto de abandono, de desproteção, de violência, com o qual vamos iniciar a sessão propriamente dita.

E, nessa impressão que é feita em nós, que nos deixa entre inquietos e curiosos, mas certamente já apreensivos, vamos ter que acompanhar  aqueles dois filhos, atônitos pelo que ouviram do tabelião,  no cumprimento de sua tarefa. Ouvir, de cara, o filho declarar que aquilo é mais uma das loucuras  de sua mãe, nos revela o nível do estranhamento que devia haver entre eles.  Mas por quê? E o que explica a aparente apatia da moça e, ao mesmo tempo, o fato da  comoção maior  ser  a do testamenteiro, patrão da mulher falecida, que parece quase estar apresentando àqueles filhos uma mãe desconhecida?

É o percurso da moça,  quem primeiro aceita a missão que lhe é imposta, que iremos seguir, nos momentos subsequentes . Pelo caminho do feminino reencontraremos  o amor, a violência, o sofrimento, a perda, a humilhação, a resistência, a mágoa e uma enorme capacidade de sobrevivência, da mulher morta,  que, em seu pior momento de vida,  ficou conhecida como “a mulher que canta”.

(Nesse ponto, a trama do filme se confunde com o mito de “La Loba”, o ser do deserto mexicano, que Clarissa Pínkola Estés nos apresenta em “Mulheres que Correm com os Lobos”. La Loba é o espírito feminino eterno, que renasce dos ossos da loba, remontados no esqueleto do animal morto,  num ritual em que o canto funciona como  o sopro da Vida. Este conteúdo, vida/morte/vida, capaz de se presentificar reencarnando infinitamente  o sopro “divino” através do canto, está presente em  muitos outros mitos universais e, certamente, não é por acaso.)

No entanto, mais adiante, reconhecendo a necessidade de integrar  o masculino naquela busca incessante, a irmã  convoca o irmão para  fazer sua parte da jornada. A contragosto que seja, para seguir a segunda etapa dos  rastros fatídicos, ele chega. Só que não vai fazer sozinho a travessia, em cujo sucesso ele  não acredita. Acompanham-nos os homens mais velhos, que além de lhe apontar atalhos, o protegem e, de certa forma, zelam por ele. Vale lembrar que é o paradeiro de um pai e um filho que eles estão buscando. Na companhia desse grupo conheceremos o avesso da história: tudo aquilo que se forma no plano do que é invisível,  do que não pode ser expresso, do que precisa ser calado, reprimido, mas nunca poderá ser esquecido e que passará como estranho, como louco, como inadequado, como fantasmático e bloqueador, se não puder ser integrado.

Sem querer contar a culminância da história, que guarda no surpreendente final sua grande força, desejamos recomendar a atenção para a beleza de sua mensagem: a integração total de amor e ódio. A fórmula “1+ 1= 1” (teorema que ilumina assustadoramente as trevas do segredo, penosamente ocultado por aquela mãe, até seus últimos dias)  é perfeita para o que se dá dentro de nós, quando conseguimos suplantar qualquer divisão interna e continuarmos inteiros, única possibilidade de sermos nós mesmos.

É preciso ressaltar, em todo o espetáculo, os detalhes da filmagem. Cenas primorosas, prenhes de um simbolismo forte e que transporta facilmente o expectador para um lugar anônimo e totalmente conhecido de qualquer um.  A cruz,  signo do sacrifício na mitologia cristã , tem ali expostas as duas faces que pode ser usada para representar – Bem/Mal – ,  evocando,  assim, a encruzilhada, lugar sagrado do encontro das diferenças, representação da instância onde tudo pode sempre ser revivido e curado, pra além do tempo e do espaço.

“Incêndios” nos transporta a grandes fogueiras, capazes de destruição total, mas geradoras de cinzas cicatrizantes e fertilizantes. O espírito de amor da “mulher que canta”, qual fênix, ressurge, afinal, gerando Vida! Confiram.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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