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… Para Resolver A Questão Da Maioria De Seus Fiéis, Que São Pobres”

O jesuíta Mario de França Miranda, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, fala sobre os desafios da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe (Celam), em Aparecida. Ele vê a necessidade de “apresentar a pessoa e a mensagem de Jesus Cristo a uma sociedade onde falta o sentido da vida e que já começa a dar sinais de cansaço, desânimo e ansiedade”.

França Miranda é professor no Departamento de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Graduado em Filosofia, também é mestre em Teologia pela Faculdade de Teologia da Universidade de Innsbruck, da Áustria, e doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana, da Itália, com a tese intitulada A autocomunicação de Deus em Karl Rahner. É autor de vários livros, entre os quais citamos Existência cristã hoje (São Paulo: Loyola, 2005). Ele concedeu uma entrevista na 186ª edição da IHU On-Line, de 26 de junho de 2006, sobre Inácio de Loyola, os jesuítas e a modernidade.

IHU On-Line – As amplas e rápidas transformações na realidade política, econômica, cultural e religiosa da América Latina apresentam novas exigências para a Igreja latino-americana. O que o senhor destaca como as principais questões que os delegados da V Conferência precisam enfrentar, em vista da presença e ação da Igreja na América Latina?
Mario França Miranda –
Os desafios principais são vários. Elencá-los significa sempre deixar algum deles de fora. Deste modo, apontarei os que me ocorrem no momento. Primeiramente, a questão do avanço de uma sociedade pluralista e de uma cultura neoliberal numa população predominantemente católica, mas carente de uma evangelização adequada. A história da Igreja na América Latina explica bem este fato: vastos territórios, carência de clero e religiosidade medieval ibérica, o que originou um catolicismo de rezas e santos patronos. Esta religiosidade, embora sincera e profunda entre os mais simples, não resiste em muitos ao impacto da secularização, agravada pela falta de uma experiência de comunidade cristã, devido à falta de padres e à dimensão das atuais paróquias. Em seguida, o problema da violência na América Latina, provocado em grande parte pelas gritantes desigualdades sociais que perduram, numa cultura onde o valor supremo significa eficácia, produtividade e lucro. Outro desafio consiste na imagem da própria Igreja em seu aspecto institucional: autoritária, moralista, pesada, acentuando mais o pecado do que a mensagem positiva e alegre do Evangelho. Deve-se voltar ao kerigma, não de um modo simplista e ingênuo, mas apresentando a pessoa e a mensagem de Jesus Cristo a uma sociedade onde falta o sentido da vida e que já começa a dar sinais de cansaço, desânimo e ansiedade. Outro problema diz respeito ao devido espaço que deve ser dado aos leigos e leigas na Igreja, para que, como cristãos adultos, possam se formar e se enfrentar com as questões postas pela atual sociedade. Durante séculos, tiveram uma presença passiva, já corrigida no Concílio Vaticano II, mas não devidamente implementada na vida eclesial concreta. Também há a impossibilidade de muitas comunidades católicas celebrarem a eucaristia, centro da vida cristã, por falta de sacerdotes, o que recoloca a questão da ordenação presbiteral dos “viri probati” na Igreja.

IHU On-Line – Como os desafios e exigências do mundo dos empobrecidos se apresentam hoje diante da Igreja da América Latina?
Mario França Miranda –
A Igreja não dispõe nem de poder nem de solução mágica para resolver a questão da maioria de seus fiéis, que são pobres. Numa sociedade pluralista, ela procura se fazer ouvir para influir no poder decisório civil e ainda estar junto aos pobres na fidelidade ao Evangelho de Jesus Cristo. A Igreja do Brasil não deixou de ter tal postura, que pode e deve ser melhorada. Daí sua credibilidade na opinião pública. Neste sentido, a Síntese  de Aparecida reafirma a opção pelos pobres, como forte desejo do episcopado latino-americano.

IHU On-Line – Considerando que quase a metade dos católicos do mundo estão na América Latina, qual é a importância da V Conferência do CELAM para toda Igreja?
Mario França Miranda –
A Igreja Católica na América Latina constitui, de fato, quase a metade dos católicos do planeta, mas este fato ainda não redunda num reconhecimento de sua importância na Igreja Universal. Em parte devido à falta de uma consciência de sua importância por parte da própria Igreja Latino-americana. Naturalmente, uma maior efetivação da doutrina da colegialidade episcopal, afirmada no Vaticano II, poderá facilitar uma maior consciência deste fato. Sabemos que a América Latina já vem enviando missionários para outros países, e não só da África: sacerdotes, religiosas, leigos e leigas. Além disso, temos uma Igreja viva e atuante, na opinião dos que chegam de fora. Temos características de viver a fé que são nossas e que poderiam ser aproveitadas em outras partes do mundo. O que vai surgir sobre este ponto em Aparecida não sabemos ainda.

IHU On-Line – A redução de fiéis da Igreja católica e sua evasão de católicos para outras igrejas ou outras religiões tem sido objeto de freqüentes análises sobre o cenário religioso latino-americano. Qual é o significado do fato quando se trata de pensar o lugar e o compromisso da Igreja católica em nosso Continente?
Mario França Miranda –
Os católicos, que são presas fáceis do ramo pentecostal do protestantismo, indicam, a meu ver, duas lacunas na pastoral da Igreja. A primeira, já mencionada acima, é a falta de uma verdadeira evangelização. A segunda é uma evangelização demasiado doutrinal e moral, com preceitos e normas, deixando o emocional, o festivo e o simbólico em segundo plano. Aqui entra em cheio o tema da inculturação da fé, a saber, como os latino-americanos vivem a sua fé, a partir das características irrenunciáveis de sua cultura.

IHU On-Line – Quais são as principais linhas ou referências teológicas que perpassam o Documento de Síntese? Que conseqüências tem isto para a prática eclesial?
Mario França Miranda –
Creio que podem ser resumidas pela relação entre discípulo- missionário (entenda-se leigo/a) e vida. A palavra vida implica uma concepção do Reino de Deus que não pode ser redutiva, nem em seu aspecto espiritual (em sentido denso) nem em seu aspecto social (vida humana digna).

IHU On-Line – Como o senhor avalia o engajamento da CNBB na preparação da V Conferência do CELAM? Quais são os principais elos entre a Assembléia de Itaici e a Assembléia de Aparecida?
Mario França Miranda –
A relação da CNBB com os demais países do CELAM é aquela possível, dada a variedade dos contextos socioculturais e eclesiais. Creio que os problemas são muito semelhantes, mas vistos diversamente pela diversidade acima mencionada. Temos que aceitar que um texto do CELAM não pode reproduzir o que os bispos brasileiros gostariam de ter. Aqui todos devem ceder um pouco, fazer emergir o que há de comum e enfatizar os pontos-chave que tocam a todos.

HU On-Line – A caminhada rumo à Aparecida está evidenciando um expressivo pluralismo interno à Igreja e, portanto, o desafio do diálogo no interior da própria Igreja. Em que medida a Igreja latino-americana é capaz deste diálogo interno?
Mario França Miranda –
A Igreja da América Latina, mesmo com sua rica diversidade, representa quase a metade dos católicos e aparece como uma Igreja viva, apesar de suas deficiências e carências. Julgo que esta visita de Bento XVI vá ajudar para um maior diálogo e cooperação com a Igreja Universal. Muita coisa só se aprende pela experiência direta, pois os relatórios de terceiros podem ser tendenciosos. Este contato liberto de preconceitos poderá ajudar a uma mais verdadeira configuração da Igreja da América Latina, com benefício para todo o Povo de Deus desta região.

HU On-Line – Enquanto pesquisador em teologia do diálogo inter-religioso, qual é a sua apreciação sobre esta questão no contexto da V Conferência?
Mario França Miranda –
Não creio que o tema do diálogo inter-religioso será importante neste encontro. Já não afirmo o mesmo do ecumenismo, dado o fato de que sofremos com as seitas proselitistas, que deixam atrás de si, muitas vezes, um rastro de indiferença religiosa e de ceticismo, rastro este constituído pelos fiéis frustrados em seus sonhos de realização. Como manter o diálogo com os protestantes e, ao mesmo tempo, defender a Igreja destas seitas? A queda no número de católicos é vista aqui com mais reserva do que é noticiado pela mídia. Apontar este fato como razão da vinda do Papa é muito simplismo.

HU On-Line – Como o senhor avalia a presença do Papa no Brasil até o momento?
Mario França Miranda –
Certamente, o Papa está experimentando algo novo em sua vida e me parece que está gostando. As liturgias têm conseguido unir a dimensão cúltica com um espaço para manifestações mais afetivas e brasileiras, que não destoam por provirem do coração do povo. E o Papa está captando isso muito bem. Não só não as restringe, como ainda as provoca, fazendo-nos relembrar João Paulo II.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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