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Uma Ópera em quatro atos e uma Peça Teatral.

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I Ato – Louis-René des Forêts

Encontro-me no Theatro (São Pedro?) Estadual. Aguardo para assistir ao espetáculo Uma voz vinda de outro lugar,[1] conduzida pelo maestro-escritor-ensaísta- romancista-crítico de literatura francês nascido em Quain, Saône-et-Loire, Maurice Blanchot (1907-2003). As cortinas da primeira página estão cerradas e não sei ao certo que tipo de espetáculo irei encontrar nesse teórico-poeta de O livro por vir,[2] livro que me falava de Joubert, o escritor do Não tratado em “O Bartleby que nos habita ou Uma voz vinda de outro lugar”.[3]

Começo pelo silêncio. Escolho algumas cenas desse palco-livro-espetáculo. Blanchot tem o dom de se amalgamar ao texto poético ao mesmo tempo que o analisa. Ele emite um primeiro acorde com Louis-René des Forêts em Ostinato.

Um sonho, mas existe algo mais real do que um sonho?”.[4]

O poema de Forêts remete ao sonho, ao silêncio, ao nada. “O próprio silêncio diz mais do que as palavras”.[5] Descubro agora que me encontro em uma ópera, com todos esses sons e silêncios, todos esses nadas e vazios. Uma ópera duodecafônica. E minha mente sai em busca de (quase) infinitas conexões.

Louis-René des Forêts (1916-2000) foi um escritor francês que nasceu e morreu em Paris, França. Escreveu, entre outros, Les Mendiants (1941-1943), Bavard(1946), La Chambre des Enfants (1960) que é agraciado com o Prix des Critiques. Blanchot escolhe um outro texto de Forêts, Ostinato, da mesma maneira que vimos com Paul Valéry em “Poesia e pensamento abstracto” – para viver uma experiência poético(-musical) muito mais do que compreender a arte.

Escrevi este comentário (o que parece fazer as vezes de um comentário) e, enquanto o escrevia, conduzido pelo movimento que é o dom do poema, fechava os olhos a essa falta que é transformar o poema (os poemas) numa prosa aproximada. Não há alterações mais graves. Esses poemas de Samuel Wood têm sua voz, que é preciso ouvir antes de acreditar compreendê-los. “Tocamos o verso.”[6]

Ostinato é a última obra de Forêts. Publicada em 1997 pela Mercure de France, Blanchot deseja “falar dessa obra, mas sem palavras, numa linguagem que me obceca ao me escapar”.[7] E nesse silêncio-som-obstinado, descobrimos que o título do livro de poemas de Forêts é um termo musical. É um “motivo obstinado que volta e não volta” em Alban Berg escutando Schumann; no “rigor obstinado” de Leonardo da Vinci que encantou “o jovem Paul Valéry”. Mas é exatamente no próprio Louis-René des Forêts que essa “obstinação” transforma-se numa “catástrofe imensa”: quando um “abismo”, um “desastre absoluto” que parece ter acontecido em sua vida o transformou em um escritor do Não (feito sai à caça Enrique Vila-Mattas em Bartleby e companhia[8]), e feito diz Blanchot, “foi privado do dom da escrita”.[9]

Maurice Blanchot fala de dentro do primeiro ato de nossa ópera “Louis-René des Forêts”. Foram amigos de juventude e o afeto também se amalgama junto à poesia de um e análise poética do outro. Blanchot narra o “naufrágio” do amigo, quando ele pára de escrever. E o momento em que reconhece que “para não escrever mais, seria preciso continuar a escrever, uma escrita sem fim até o fim ou a partir do fim”.[10] Ou uma escrita de um livro que nunca será escrito por Joubert, que Blanchot (também) analisou em O livro por vir.

“Só existem os espaços em branco se houver o negro, só há silêncio se houver a palavra e o barulho produzindo-se para cessar”.[11]

Os sons da música de Forêts/Blanchot me transportam a uma conexão com Agostinho de Hipona (354-430) em suas Confissões quando trata da permissividade de Deus quanto à existência do Mal.

Que são as trevas senão a ausência da luz? Se houvesse luz, onde é que ela poderia existir se não iluminasse nem aclarasse a superfície da terra? E quando a luz ainda não existia, o que era a presença das trevas, senão a ausência da luz?

As trevas reinavam sobre o abismo, porque a luz não brilhava sobre ele, do mesmo modo que reina o silêncio onde não há som. E que significa haver silêncio senão o não haver som?[12]

Ao não haver luz, a escuridão predomina. Ao não haver som, o silêncio perpassa todo o ser. Ostinato é uma obra de “organização fragmentária”. Por isso essa impressão de estar desconectada em relação ao todo, numa “falta de continuidade”. Seria uma autobiografia de Forêts? Está escrito no presente, ancorado no presente, feito não possuísse duração. E lembramos novamente de Agostinho quando nas suas mesmas Confissões interroga sobre “O que é, pois, o tempo?” e nos remete para o instante anterior à Criação, os tempos ainda não existiam, apenas habitava o Eterno, e o único, inexorável, absoluto Presente.

II Ato – Anacruse
(Maurice) Blanchot traz ao centro do palco um texto do filósofo francês nascido em Versalhes (Jean-François) Lyotard (1924-1998) sob o título de “O sobrevivente”. O texto filosófico lança luz sobre os poemas de (Louis-René) des Forêts.

Blanchot faz uma pergunta agostiniana: “Onde é o começo? É alguém ou alguma coisa que começa?”.[13] Ele nos ensaia uma resposta com Hegel, quando o “eu” já não pode falar por si mesmo, mas em forma de “nós”, como se fossem outros. O “eu” de então e o “eu” de agora. O “eu” do Eterno e não havia o Tempo, o “eu” na Criação de todos os Tempos.

Nos “Poèmes de Samuel Wood”, Forêts trata dessas “duas extremidades” do nosso percurso terrestre. A “dor de nascer”. A morte que, somente “os mortos, eles, sim, terminaram de morrer”.

O maestro Blanchot, o amigo Maurice nos apresenta em Les mégéres de la mer (1967) “Essa pátria inexistente” de Forêts, esse “País anterior” de um outro amigo de Louis-René, que em 1967 fundou juntamente com ele, Paul Celan, Jacques Dupin, entre outros, a revista L’Éphémere : o poeta-crítico-tradutor francês nascido em Tours, Indre-et-Loire, Yves Bonnefoy (1923).

O país que sonhei sob esse nome [o País Anterior], seria uma parte de nosso mundo, ou seja, qualquer coisa tão real quanto o lugar onde eu viveria com as mesmas árvores, as mesmas pedras. Ele, por exemplo, poderia ter uma de suas regiões num vale no meio daquela Itália central que, outrora, eu percorria. […] O país-anterior, no meu livro, no meu pensamento, é essencialmente, um devaneio sobre a linguagem.[14]

Esse “País Anterior” à linguagem, esse “filho arrancado de sua mãe”, “mátria”, “não pode portanto parar de nascer”: é condenado a uma “sentença de nascimento”.[15] Blanchot continua a perguntar-se – e na pergunta que encontra sua resposta se perfaz o Mito, já dizia André Jolles em Formas simples[16] –: “Por que não terminamos de nascer?”. E mais adiante nos apresenta a Anacruse.

Do termo grego anakrousis, nota ou sequência de notas que precedem o primeiro tempo forte do primeiro compasso de uma música. Blanchot faz soar em des Forêts que, “através da anacruse, se sustenta o silêncio daquilo que ainda se ouve ou vai ouvir-se naquilo que não se ouve”.[17] A “pergunta-resposta” mitológica de Jolles, o “País Anterior” de Bonnefoy complementam a melodia de Louis-René des Forêts no “lugar onde a criança que fui deixou suas marcas”, marcas “não daquilo que aconteceu”, alerta o maestro Blanchot, “mas do que jamais se passou”.[18] Da ficção.

A criança atormenta Louis-René des Forêts naquilo que “está prestes a nascer”, nesse “porvir”, “por vir” da escrita, que é tempo suspenso, sem Lei, e sem Pai, “escrevendo apenas para apagar o que já foi escrito”. Ou “a letra órfã do Pai ausente ou escondido do discurso” do filósofo francês nascido em Argel Jacques Rancière (1940) em seu Políticas da escrita.

Entre o sopro imaterial do oráculo e o sentido gravado na materialidade das coisas fica, é claro, o grande paradigma da Escritura confirmada pela encarnação. O que vem, duravelmente, realizar o resgate da letra e sustentar todos os sonhos de uma escrita mais que escrita é a encarnação cristã do Verbo, dando à letra seu espírito. Só um corpo vivo, um corpo que sofre, é capaz, em última instância, de garantir a escrita. Mas o grande  paradigma do resgate da letra também é o lugar do paradoxo reconhecido como verdadeiro. Somente o livro dá garantia que a verdade do livro foi apresentada pela carne. Somente as palavras vêm atestar que é mesmo escrita o que se realiza nas chagas de uma carne como no sopro do vento, nas estrias da pedra ou na estrada de ferro. Somente um excesso de escrita “morta” pode incluir a “voz viva” na escrita morta.[19]

“Há sempre algo por nascer”, conduz Blanchot. E desse “nascimento endividado consigo mesmo” alcançamos o timbre certo, o contratempo justo, contratempo que é “a espera do olhar para trás por meio de uma retrospeção em que se cria a ilusão de um presente que esteve desde sempre perdido, pois jamais existiu”.[20] Uma ficção. “Uma voz vinda de outro lugar”.

III Ato – A Besta Inominável, de René Char
Acelera-se o ritmo. Mas ainda é uma ópera. No terceiro ato da ópera Uma voz vinda de outro lugar, Blanchot nos transporta para Fedro, de Platão, que por sua vez é a transposição em palavra escrita da palavra falada por Sócrates no seu diálogo com o jovem protagonista título do livro.

Sócrates, o maior ágrafo de todos os tempos, tenta convencer Fedro – a partir das próprias conclusões do jovem – que a verdadeira linguagem é “a linguagem falada, em que a palavra está segura de encontrar viva na presença daquele que a pronuncia uma garantia”.[21]

Dizem que realmente nos tribunais ninguém se importa com a verdade de tais matérias, mas com o que é convincente, o que é chamado de probabilidade, de modo que aquele que pretende ser um artista do discurso precisa ter seu olhar fixo na probabilidade. De fato, às vezes, esteja tu acusando ou defendendo, não deves sequer relatar o que realmente sucedeu, se era improvável que sucedesse, mas o que era provável. Em resumo, um orador deve sempre ter em mira a probabilidade, não se importando com a verdade. A totalidade da arte consiste em acatar esse método ao longo de todo o discurso.[22]

A palavra escrita para Sócrates/Platão/Blanchot é “palavra morta, palavra do esquecimento”. Da mesma forma que a Palavra Sagrada, “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós”, não sabemos de onde ela vem, seu autor, e, justamente por isso, “remete a algo mais original”, a Palavra dando “voz à ausência”.[23]

O poeta francês nascido em L’Isle-sur-Sorgue, Vaucluse, René Char (1907-1988) nos fornece um contratempo a essa ideia da Palavra Sagrada respeitada por Sócrates/Platão, enunciada por Maurice Blanchot na análise de “A Besta Inominável”. Char “renuncia a toda linguagem voltada para a origem”. Ele renuncia ao Deus encarnado na Palavra. Mas canta o “pressentimento”, a “promessa”, o “despertar”. Como se unisse no presente – e somente no presente –, no “espaço que o pressentimento retém, a palavra ao impulso”.[24]

A poesia unida ao futuro através do próprio impulso de René Char, “sua essência sempre por vir”, “ voz que ainda nada disse”, uma “palavra iniciante”, “força aquele que a escuta a se arrancar de seu presente” e “nos retira de nós mesmos”.[25]

Encontramos uma nova variação sobre o mesmo tema. A palavra que “não é vidente” (Rimbaud), mas “previdente” (Char), “palavra em que a origem se faz começo”,[26] nos remete a História e mito do filósofo, filólogo e professor universitário luso-brasileiro nascido em Lisboa e radicado em Brasília Eudoro de Souza (1911-1987), quando trata da diferença entre “lonjura” e “outrora”.

Lonjura e outrora negam espaço e tempo determinados, mas quanto mais nos afastamos desse âmbito do indeterminado, mais eles se afirmam em sua determinação; ou, pelo menos, assim parece. Se digo “lonjura”, não nego só a proximidade, mas a proximidade e a distância, porque o distante sempre se poderá volver em próximo; basta caminhar de próximo em próximo, para que próximo nos venha a ser qualquer distante. […] O mesmo se diria do outrora. Ou quase. Se digo “outrora”, nego o “agora”, nego esta hora, por força da afirmação de outra. Situo-o fora ou para além de todos os “agoras” que se alinham, para trás e para frente, direito ao passado ou ao futuro da hora presente.[27]

Palavra que, em René Char e as águas irretornáveis de Heráclito, realiza “esse duro combate com o que é anterior” (a “lonjura” e o “outrora” de Souza), “sofrendo uma dupla violência, parece iluminar-se através do silêncio nu do pensamento”.[28]

E pára.

IV Ato – O último a falar: Paul Celan
O último ato de nossa ópera Uma voz vinda de outro lugar nos apresenta, nu, cego e mudo, o poeta, tradutor, ensaísta romeno nascido em Cernăuţi Paul Celan (1920-1970), pseudônimo de Paul Pessakh Anstschel.

Estamos “cercados de branco”, em um “vazio saturado de vazio”, esses “olhos cegos para o mundo, olhos que a palavra submerge até a cegueira”, “a eternidade nasce cheia de olhos”, esse “fora / no não país, no não tempo (o contratempo)”,[29]  e o maestro Maurice Blanchot reúne todos os “músicos-poetas” (Agostinho, Bonnefoy, Jolles, Rancière, Sócrates, Souza), todos os “cantos-previdentes” no palco de nossa ópera duodecafônica que iniciamos com o barulho ao redor, com vários pensadores, e poetas e teorias por nós conectados, até chegarmos ao silêncio de Blanchot que não nos permite dizer mais nada.

A morte, a palavra. Nos fragmentos de prosa que Celan afirma seu projeto poético, ele jamais chega exatamente a renunciar a um projeto. Em seu discurso em Bremen: Os poemas estão sempre em movimento, estão em relação a alguma coisa, inclinam-se na direção de alguma coisa. Na direção de quê? De algo que se mantém aberto e que poderia ser habitado, de um Tu a quem seria possível talvez falar, de uma realidade próxima de uma palavra. É nesse mesmo pequeno discurso que, com extrema simplicidade e sobriedade, Celan faz alusão ao que poderia significar para ele – e, através dele, para nós – a possibilidade que não lhe foi retirada de escrever poemas naquela língua através da qual a morte se abateu sobre ele, sobre os seus próximos, sobre os milhões de judeus e não judeus, um evento sem resposta.[30]

Uma peça teatral – Michel Foucault

          Maio de 1968. Numa mudança (nem tão) radical de tom, da Poesia para a Prosa, para o “pensamento abstracto” (de Paul Valéry), nos descobrimos agora em forma de peça teatral em Uma voz vinda de outro lugar. Blanchot narra um encontro imaginário com o filósofo, historiador de ideias, teórico social, filólogo, crítico literário francês nascido em Poitiers Michel Foucault (1926-1984). No pátio da Sorbonne eles se encontrariam, “quando cada um podia falar ao outro, anônimo, impessoal, um homem entre homens, acolhido sem outra justificativa além de ser outro homem”.[31]  Descobrimos no final do livro de Blanchot a “forma” do nosso ensaio poético-musical-teatral: uma ficção do possível.

Foucault foi apresentado a Blanchot por Roger Callois que talvez considerasse o jovem pensador francês feito um “espelho em que discerne não seu duplo, mas aquele que gostaria de ter sido”.[32] Blanchot considera que desde o primeiro livro Foucault aborda questões referentes à filosofia (razão/desrazão), mas sob o “prisma” da história e da sociologia. Este tenta descobrir os perigos a que estamos expostos “para tentar ganhar tempo”, para tentar, através de estratégias, enveredar por caminhos mais desiludidos.

O “historiador de ideias” evita o estruturalismo porque “pressente um aroma do transcendentalismo”. Ele ancora-se na “superfície”, nega as “armadilhas da subjetividade”, “não rejeita a história, mas distingue nela descontinuidades”.[33] Notamos que Blanchot, agora em uma peça teatral, repete o mesmo “cânone” do Ostinato de Louis-René des Forêts, a mesma “organização fragmentária”, a mesma “falta de continuidade” da ópera em quatro atos, primeira parte do nosso ensaio, como que unindo as duas pontas da Prosa e da Poesia, do Teórico e do Ficcional, da Vida e da Arte.

Em A ordem do discurso, sua aula inaugural no Collège de France (onde, em princípio, dizem o que será feito nas aulas seguintes, mas que vão dispensar-se de fazer porque acabou de ser dito e porque o que foi dito não suporta ser desenvolvido), Foucault enumera, de forma mais clara e talvez menos estrita (seria preciso investigar se essa perda de rigor se deve apenas às exigências de um discurso magistral ou então a um princípio de dessinteresse diante da própria arqueologia), as noções que devem servir a uma nova análise. Assim, propondo o acontecimento, a série, a regularidade e a condição de possibilidade, ele usará esses termos para opô-los, um a um, aos princípios que, de acordo com ele, dominaram a história tradicional das ideias, opondo assim o acontecimento à criação, a série à unidade, a regularidade à originalidade e a condição de possibilidade aos significados – ao tesouro escondido dos significados ocultos.[34]

Foucault trata da noção de sujeito na produção literária. Essa “não-obra”, esse “não-autor”, essa “não-unidade-criadora”, não significa o desaparecimento do sujeito. Significa antes o questionamento da unidade, a fragmentação do todo, “essa nova maneira de ser que é o desaparecimento”,[35] “desaparecimento” que já vimos com o maestro-Blanchot quando regia o primeiro ato de sua ópera, quando conduzia-nos através dos acordes da poesia de Louis-René des Forêts e esse “escrevendo apenas para apagar o que já foi escrito”[36] que tratamos na página 5 de nosso ensaio.

Chegamos a Vigiar e punir, e não chegamos inocentes. Blanchot narrou A arqueologia do saberA ordem do discurso, nessa peça teatral de linha condutória única, apesar de fragmentária. Descobrimos em Vigiar que “o confinamento é o princípio arqueológico da ciência médica”, que “a soberania tem origens obscuras”, e pressentimos que “Foulcault quase preferiria as épocas assumidamente bárbaras, quando os suplícios não dissimulam em nada sua atrocidade”.[37]

Foucault em Blanchot atualiza os conceitos de punição e poder e que não estão tão distintos daquela época “bárbara” quanto imaginamos. Ele nos recorda Heidegger quando nos remete à “analítica da consciência moral”, nossa “herança aristotélica” e que “no nosso interior, há uma palavra que se faz sentença, veredicto, afirmação absoluta. Isso é dito, e essa afirmativa primeira, removida de qualquer diálogo, é a palavra da lei, que ninguém tem o direito de contestar”.[38] E nos lembramos da “letra órfã de Pai ausente ou escondido do discurso” de Jacques Rancière (também) citado na página 5 do presente estudo.

No “contratempo” à Sociedade do Sangue, a Sociedade do Saber. Sangue hereditário. Saber sexual. A História da sexualidade de Foucault nos desafia “a recusar as pretensões da Lei”, porque o “sangue reabsorveu o sexo”. Mas tomemos cuidado. A peça teatral chega ao fim e o nazismo aparece fantasmagoricamente em História para nos lembrar das “fantasias do sangue com o paroxismo disciplinar”. Só resta a Foucault fazer as pazes com a psicanálise de Freud e a restauração da antiga Lei da aliança, quando este “devolveu à Lei seus direitos anteriores”.[39]

Só nos resta entender a última obra de Michel Foucault que foi ele mesmo. Na sua busca por uma genealogia da sexualidade na Antiguidade Grega, busca “passar dos tormentos da sexualidade à simplicidade dos prazeres”. Por quê? Porque a doença anuncia os seus últimos dias, anuncia as nossas últimas linhas desse ensaio, dessa ópera em quatro atos e uma peça teatral que chama-seUma voz vinda de algum lugar. Blanchot se despede do encontro imaginário com o homem que admira, e nós nos despedimos deste ensaio com a fase final da vida de Foucault e seu cuidado com si, que foi cuidado com os outros.

Os livros que vai escrever sobre temas que lhe são muito próximos são, à primeira vista, livros de historiador estudioso mais do que obras de investigação pessoal. Até o estilo é diferente: calmo, apaziguado, sem a paixão que queima em tantos de seus outros textos. Entrevistado por Hubert Dreyfus e Paul Rabinow e interrogado sobre seus projetos, ele exclama, de repente: “Oh, eu vou primeiro cuidar de mim!” Declaração que não é fácil de esclarecer, mesmo se pensarmos um pouco apressadamente que, seguindo a Nietzsche, ele estivesse inclinado a fazer de sua existência – daquela que lhe restava viver – uma obra de arte.[40]

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* Para baixar o arquivo em PDF: Uma voz vinda de outro lugar – Uma ópera em quatro atos e uma peça teatral – Patricia (Gonçalves) Tenório – 05 e 060416

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* Patricia (Gonçalves) Tenório escreve prosa e poesia desde 2004. Tem nove livros publicados, O major – eterno é o espírito (2005), As joaninhas não mentem (2006), Grãos (2007),  A mulher pela metade (2009), Diálogos e D´Agostinho (2010), Como se Ícaro falasse (2012),  Fără nume/Sans nom(2013)), Vinte e um / Veintiuno (lançado em 11 (Lisboa) e 13 (Madri) de abril de 2016),  e, no prelo, A menina do olho verde (a ser lançado na Livraria Cultura RioMar Recife em 28 de maio de 2016 e possivelmente na Livraria Cultura Bourbon Porto Alegre em 11 de junho de 2016).  Defendeu em 17 de setembro de 2015 a dissertação de mestrado em Teoria da Literatura, linha de pesquisa Intersemiose, na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, “O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde: um romance indicial, agostiniano e prefigural”, com o anexo, o ensaio romanceado O desaprendiz de estórias(Notas para uma Teoria da Ficção), sob a orientação da Prof. Dra. Maria do Carmo de Siqueira Nino. Contatos: [email protected] ewww.patriciatenorio.com.br

(1) BLANCHOT, Maurice. Uma voz vinda de outro lugar. Tradução: Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Rocco, (2002 in) 2011.

(2) BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Tradução: Leila Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, (1959 in) 2005.

(3) Vide http://www.patriciatenorio.com.br/?p=6502. Escrito em 12/03/2016. Última atualização: 27 de março de 2015.

(4) FORÊTS, Louis-René des apud BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 16, itálico da edição.

(5) FORÊTS, Louis-René des apud BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 18, itálico da edição.

(6) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 21, itálico da edição.

(7) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 25.

(8) VILA-MATAS, Enrique. Bartleby e companhia. Tradução: Maria Carolina de Araújo e Josely Vianna Baptista. São Paulo: Cosac & Naify, (2000 in) 2004.

(9) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 25.

(10) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 26.

(11) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 26.

(12) AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: L. Oliveira e A. Ambrósio de Pina. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, (397 in) 2013 – (Vozes de Bolso), livro XII, p. 293.

(13) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 31.

(14) BONNEFOY, Yves. Entrevista: Yves Bonnefoy: A Poesia Pode Criar um Novo Céu e uma Nova Terra. In Calibán: uma revista de cultura. Entrevista e tradução: Isabelle Macor-Filarska e Patricia (Gonçalves) Tenório. N. 10. Rio de Janeiro: Calibán, 2007, p. 9-10, itálico e colchetes nossos.

(15) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 35.

(16) JOLLES, André. Formas simples: Legenda, Saga, Mito, Advinha, Ditado, Caso, Memorável, Conto, Chiste. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, (1930 in) 1976, p. 83-108.

(17) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 36-37.

(18) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 38.

(19) RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Tradução: Raquel Ramalhete… [et al]. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995, p. 12.

(20) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 43.

(21) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 53.

(22) SÓCRATES in PLATÃO. Fedro. Tradução, apresentação e notas: Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2012, p. 112.

(23) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 55.

(24) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 60.

(25) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, respectivamente, p. 62, 63 e 64.

(26) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 66.

(27) SOUZA, Eudoro de. História e mito. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1981, p. 3.

(28) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 69.

(29) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, respectivamente, p. 75, 77, 79, 83, 86.

(30) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 103, itálico da edição.

(31) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 113.

(32) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 115.

(33) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, respectivamente, p. 118, 121, 123.

(34) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 103, itálico da edição.

(35) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 127.

(36) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 41.

(37) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, respectivamente, p. 133 e 136.

(38) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 139.

(39) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, respectivamente, p. 145-147, 148, 149, 150-151.

(40) BLANCHOT, Maurice. Op. cit., (2002 in) 2011, p. 158.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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