(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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Interrompo a série de reflexões que pretendia fazer sobre a Amoris Laetitia, exortação do Papa Francisco após o sínodo da Família. Retomarei na semana que vem, se Deus quiser. Mas, francamente, nesta semana não é possível pensar, discutir ou falar sobre nada mais além do tristíssimo espetáculo da votação na Câmara sobre o impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Durante todo o processo que desembocou naquela patética sessão, procurei eximir-me de entrar em discussões e debates acalorados, seja pessoalmente, por telefone, nas redes sociais, enfim, em todas as instâncias. Ajudou-me o fato de estar fora do país a trabalho. Porém, após assistir a sessão de tantas horas, julgando algo tão sério como o impedimento da presidente da República, e constatando o nível baixo do comportamento, das atitudes e das palavras daqueles que são representantes do povo, por ele eleitos, não posso deixar de fazê-lo.
Meu sentimento é de vergonha dos deputados do meu país, com raras exceções. Seus depoimentos ao microfone, em lugar de serem discretos e objetivos, invocavam a mãe, o pai, os filhos, netos, bisnetos e o que mais houvesse de parentes e familiares. Outros invocavam categorias mais abstratas: o futuro, o país, o amanhã etc. Deus também teve seu Santo Nome várias vezes pronunciado em vão. Como é possível tamanha falta de foco, tamanha negligência e falta de respeito pela seriedade da decisão que ali se tomava? Como é possível, isso sim, tamanha falta de compostura e decoro?
Minha sensação era a de estar assistindo a um programa de auditório, como os da televisão brasileira da minha juventude – o do Chacrinha, por exemplo – que hoje se reeditam em vídeo cacetadas etc. Com a diferença que não tinha a menor graça. Era lastimável de assistir. Um coletivo que deve agir com dignidade e nobreza gritando ensandecido, chegando inclusive a agressões verbais e físicas.
Tudo isso seria tolerável, porém, se não houvesse um clímax de absurdo e falta de sentido que reduziu tudo o mais a menor importância. Refiro-me ao voto do deputado Jair Bolsonaro. Além de fazer abertamente a analogia do impeachment de Dilma Rousseff ao golpe de 1964: “Perderam em 64, perderam em 2016”, pronunciou-se em favor da ditadura militar. Foi um insulto a todas as pessoas que viveram aqueles anos de chumbo – entre as quais me incluo – e que viram o país ser reprimido e censurado, um período de medo e terror.
Na universidade havia espiões que não era possível identificar. Misturados aos alunos, eles ficavam atentos ao que era dito para depois delatar implacavelmente os “subversivos”, como classificavam os que se opunham ao governo militar e passavam a ser perseguidos e deviam esconder-se para não cair sob as garras do terrível DOI-CODI e passar pela tortura ou serem mortos. Os jovens se escondiam sem que as famílias soubessem seu paradeiro. As prisões eram arbitrárias e o medo reinava e fazia o ar pesado e opaco. Tudo isso vivemos, deputado. E o senhor tem a coragem de, em um momento tão grave como o atual, fazer uma homenagem àqueles tempos terríveis de nossa história recente?
Mas não parou por aí a atitude inexplicável do deputado Bolsonaro. Resolveu personificar sua homenagem à ditadura militar na sinistra figura do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ligando-o explicitamente a Dilma Rousseff, que por ele foi torturada. Não foi apenas a presidente que passou pelas mãos nefastas de Ustra. Muitas outras a seguiram, Sonia, Dora, Iara, Inês…tantas…tantas…Algumas morreram na tortura. Outras escaparam e foram trocadas por diplomatas sequestrados pelos movimentos de esquerda. Todas levarão até o tumulo as marcas de Ustra e sua sanha sádica e perversa. Entre elas figura uma grande amiga minha, de infância, querida e amada. Penso nela e no coronel Ustra e o nojo se mistura à indignação.
E o deputado Bolsonaro homenageia este torturador. Onde estamos? Onde está o respeito pelas vítimas de Ustra, essas mulheres, agredidas e humilhadas pelo torturador? Onde está a dignidade cívica do deputado? Não sabe que defender a tortura é crime? Fazê-lo em plena sessão do Congresso Nacional, além de crime é de um mau gosto macabro e a toda prova.
O dia seguinte a esse triste espetáculo foi de tristeza e profundo desânimo. E percebi não serem apenas sentimentos meus. Gente que se engajou de corpo e alma na batalha da democracia, de um lado ou de outro, estava muda, calada. Não houve comemorações. A vitória de alguns não teve o sabor inebriante que esperavam. A derrota de outros não chegou a produzir raiva e sim cansaço.
Na verdade, é de se perguntar: terá havido vencedores? Parece-me que o triste espetáculo que resultou na abertura ao processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff ostenta apenas vencidos. Vencidos estamos todos, brasileiros que olhamos para a frente e não vemos futuro. Vencidos todos obrigados a presenciar a mediocridade e a falta de qualidade ética e humana da maioria dos que nos representam na Câmara dos Deputados. Vencidos todos os que sofremos e lutamos com uma sangrenta ditadura militar e vemos um deputado eleito democraticamente homenagear um de seus mais cruéis protagonistas.
Que Deus volte seu rosto misericordioso para nosso país. Antes de qualquer reforma – política, fiscal, econômica – será preciso reformar nossos mais profundos sentimentos. Não podemos legar às novas gerações a depressão que agora ameaça tomar-nos o coração e roubar-nos a esperança.
Obs: A teóloga é autora de Teologia e literatura – Afinidades e segredos compartilhados (Ed. Vozes)
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