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1. Por que lemos tantos textos bíblicos? É que, a cada domingo, a liturgia tece uma teia com os textos da Bíblia, constrói novo tecido para que possamos perceber que a Palavra nos chega a partir de variados fios e, assim, possamos ter a experiência atual de ver iluminada nossa vida hoje ao enxergar diversos pontos de luz que nos descobrem o centro: “O Senhor é o meu Pastor, nada me faltará”, é o centro da celebração de hoje.
Estamos no tempo de Páscoa, sob o impacto de sentir o renovado anúncio de que Jesus está vivo e hoje o contemplamos como nosso Pastor e Guia – “reconhecer quem nos chama pelo nome e segui-Lo para onde nos conduz”, como oramos na Coleta do Dia.
2. Atos dos Apóstolos (9, 36-43) nos traz típica situação vivida em comunidade – uma mulher às portas da morte, e enfatiza com cores muito vivas a solidariedade de todos e todas frente a esse evento indesejado: morreu Tabita, a Gazela, artesã da lã e grande benfeitora de gente pobre. Todo o mundo a correr e a fazer tudo o que pode para salvar-lhe a vida. Chega Pedro e pela oração consegue restituí-la à vida. Quantas vezes não experimentamos também nós situações como essa? Quantas vezes também nós não temos experimentado livramento e proteção inesperada? Quantas vezes não temos exclamado “só um milagre teria podido resolver o impasse”? Quantas vezes, porém, não nos parece que Deus silencia e temos de carregar o pesado fardo de não obter o que desejamos ou pedimos da Vida? O texto sugere a consternação geral, todo o mundo a lamentar a morte de Tabita. O clamor é ouvido e ela é salva da morte na comunidade que a rodeia de amor e gratidão.
3. Apocalipse (7, 9-17) nos faz contemplar o outro lado: multidão de santos e santas que também oraram para ser salvos da morte, mas estão diante do trono de Deus, depois de ter enfrentado o desfecho final. Sofreram o martírio por causa do caminho que seguiam sob a guia invisível de Jesus. Deus não os salvara da morte, mas até o fim guardaram a promessa de que “toda lágrima será enxugada dos olhos”. Do mesmo modo nos fala a Carta aos Hebreus, capítulo 11.
4. O Salmo 23 nos dirige ao foco central: “O Senhor é o meu Pastor, nada me faltará”. Duas imagens constroem o poema: primeiramente, Deus aparece como pastor, guia a paisagens tranquilas e restauradoras; sustenta e protege na travessia de vales tenebrosos, como faz todo pastor na guia de ovelhas; em seguida, Deus assume a figura do hospedeiro, anfitrião que acolhe em sua tenda alguém que vem a correr, perseguido por algum adversário; assim, garante-lhe o direito, naquela cultura, inviolável, de hospitalidade e integridade, oferece-lhe banquete inesperado; a impressão que temos é que o inimigo se mantém à espreita bem defronte da tenda; o hóspede precisa continuar sua caminhada, o anfitrião providencia-lhe escolta para a viagem, “bondade e misericórdia” serão guardacostas a acompanhá-lo e eventualmente defendê-lo de qualquer cilada.
5. Finalmente o Evangelho (Jo 10, 22-30). Jesus aparece mais uma vez em ambiente de conflito com adversários e aí fala da relação de intimidade com suas ovelhas: “conheço-as e me conhecem, escutam minha voz e Me seguem”. E acrescenta a promessa: “Ninguém as arrebatará de minhas mãos, dou-lhes a vida eterna”. E avança a falar da intimidade com o Pai: “O Pai me deu tudo… Eu e o Pai somos um”, e isto aparece pelas obras que faz “em nome do Pai”, obras que o próprio Pai opera por meio d’Ele.
6. A intimidade com Deus é o que torna possível fazer as obras de Deus, assimilar o Seu jeito de fazer e, assim, experimentar já agora a vida de Deus, a vida eterna. E qual é a principal obra de Deus neste mundo? É a vida em comunidade, pois só vive realmente em comunidade, quem tem amor e o amor é Deus: “Deus é amor”, diz-nos São João em sua primeira carta. Sim, porque nossa tendência natural e espontânea é o egoísmo. Só o amor nos arranca de nós e nos faz ser para além de nós, isto é transcender-se, ultrapassar-se, e o além de nós é Deus. Ora, a vida em comunidade nos treina para viver o amor de Deus em nós, que nos abre sempre mais e nos leva além de nós, de nossos interesses, de nossa família, do grupo de amigos e amigas, de nossa Igreja, de nossa roda política, enfim, de nossos mais próximos que sempre estão a nosso redor ou em torno a nossa casa… O amor de Deus em nós nos leva mais longe, a amar o mundo todo que se torna próximo, nos leva até a nossos inimigos(as), como Deus ama o mundo e se entrega em Jesus e em nós, discípulos e discípulas. “Passamos da morte para a vida porque nos amamos como irmãos”.
No começo da caminhada espiritual, quem sabe, prevalece a oração de petição por nós e por outrem. Buscamos influenciar as decisões de Deus em nosso favor e de pessoas que prezamos. Pedimos proteção, saúde, sucesso, bens materiais, mudança de situação, tanta coisa que venha suprir nossas carências. Na medida em que amadurece a intimidade com o Pai e nos assimilamos ao jeito de ser de Deus, crescemos na oração de adoração, de louvor, de ação de graças e de contemplação, e nos entregamos sempre mais a Deus para ser instrumentos de Sua obra. Já não pretendemos pôr Deus a nosso serviço, antes, nós é que nos entregamos a Seu serviço e de nós Ele cuidará, como cuidou de Seu Filho, mesmo sem poupá-Lo da cruz…
Pode não acontecer conosco o que se deu com Tabita, salva da morte. Pode ser que não possamos fugir do destino de mártires ou de todas as pessoas que um dia morrem. Mas a intimidade com Deus, o tornar-nos uma só coisa com Ele, faz-nos passar da morte para a vida, a ponto de não mais temer nem mesmo a morte, pois “o perfeito amor lança fora o temor”. Irrealismo ingênuo, pura utopia? Na verdade, a marcha da história está cheia de pessoas que chegaram a viver essa experiência: por amor nada temeram, nem mesmo a morte. Chegaram à certeza íntima e inabalável de que o amor vence a morte, experimentaram já nesta ida a vida eterna. Em verdade, quem morre por amor só se entrega porque no íntimo está certo(a) de que não morre, o amor vence a morte, a vida é eterna.
Deus nos ajude, em nossos medos e fraquezas, a seguir nosso Pastor! “Só o Senhor é meu Pastor, nada me faltará”.
Obs: Imagem enviada pelo autor.
Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB
Imagens enviadas pelo autor.