Os comentários a seguir resultaram de observações sedimentadas na memória e só agora recolhidas. As limitações impostas pelo tempo fogem da nossa vontade e podem introduzir ou excluir alguns fragmentos.
Oliveirinha nasceu e cresceu em Itabaiana. Filho de farmacêutico com diploma de curso superior, sua família era privilegiada em relação aos padrões socioeconômicos da cidade e próspera o suficiente para morar na Praça da Matriz, numa casa grande e confortável. Seu pai, sempre muito rígido, comandava a família com severidade e rédeas curtas. Não falava de si mesmo nem gostava de ouvir relatos sobre outras pessoas. Não permitia opiniões divergentes dentro de casa, sendo todos submetidos às suas imposições inflexíveis. Exercia profunda dominação impedindo que os membros da família adquirissem identidade própria. No clã, pais e filhos passavam muito tempo juntos e a influência de uma geração sobre a seguinte era marcante.
Além da inevitável genética, Oliveirinha engoliu, sem engasgos, expressões e comportamentos do pai. Tornou-se um discípulo fiel, e ainda adolescente começou ajudar seu genitor nos serviços da farmácia. Aprendiz, ouvia com muita atenção as queixas dos enfermos e, sem piscar os olhos, as intervenções do mestre. Desejoso de aperfeiçoar seus conhecimentos, fazia leituras minuciosas e repetidas de compêndios médicos, farmacêuticos e das bulas que acompanhavam os remédios. Adquiria informações sobre todos os medicamentos que prescrevia e sabia associar vários sintomas a diferentes doenças tornando-se um conceituado profissional de saúde básica. Mesmo sem diploma livrou da morte muita gente.
Oliveirinha era baixo, branco, corpo pouco robusto, com rosto moderadamente triangular. Testa grande, larga e alta, com consideráveis entradas. Cabelos de cacheados longos entremeados de muitos fios brancos, encanecidos antes do tempo. A pele da face era avermelhada pela afluência de sangue e pelo pudor que sempre carregava. Pesquisei em reis, santos, figuras medievais, poetas, monges, políticos, bandidos, soldados e jamais achei na rua ou em qualquer lugar um rosto parecido com o seu e continuo sem saber explicar a mim mesmo porque lembrava de Rui Barbosa quando dava de cara com o farmacêutico.
Na Rua das Flores, me deparei várias vezes com Oliveirinha em direção à sua farmácia. Durante todo o percurso comportava-se sempre da mesma maneira: em posição de convexidade anterior como os lordes, caminhava olhando para o céu. Era seu modo de desviar-se das pessoas conhecidas. Mesmo quando estava acompanhado da esposa nada se ouvia além das pisadas no chão. É possível que ‘‘Santa’’ Izabel não tivesse permissão para falar. Sua imagem impenetrável inspirava respeito e medo, e nunca deixava transparecer emoções que revelassem manifestações de dor ou prazer, agrado ou desagrado, alegria ou tristeza mesmo dentro da família. Dos seus sentimentos não afloravam maneiras afetuosas e jamais houve registro de que tenha abraçado um de seus filhos adolescentes, que na sua ausência tratavam-no simplesmente por Oliveirinha.
Durante um fim de semana, Jorge Moreira deu uma festa para comemorar seu aniversário e entre os amigos convidados estava Cibalena, filho de Oliveirinha. O final da festa foi programado para uma casa noturna de alegria. Já passava das 22 horas quando Oliveirinha percebeu a ausência do filho na cama. Naquele momento sentiu necessidade de mostrar que tinha poder absoluto sobre sua família. Retirou sua Rural da garagem e, na companhia do segurança Euclides Barraca, saiu à procura de Cibalena. As ruas, praças e bares da cidade foram vistoriados em vão. Por sugestão de Euclides Barraca deslocaram-se até a Vila de Carminha no Bairro Cacete Armado. Ao adentrar na casa de espetáculos eróticos bate face a face com Cibalena, que de pronto e em voz alta satirizou: “Oliveirinha! Até você por aqui?” A resposta veio com palavras trêmulas de ódio: “Insubordinado! Este ambiente podre com aroma venéreo nunca fez parte de minha vida!. Respeite seu pai para ter vida longa e feliz, e siga meus ensinamentos para atingir a perfeição’’. Naquele instante era impossível aplacar sua cólera. Sem muita leveza, puxou o filho pela orelha empurrando-lhe para dentro do carro. No dia seguinte os amigos de Cibalena comentavam que o julgamento da infração ocorreu sem atenuantes e os princípios e a honra do farmacêutico ditaram a admoestação. Liberado depois de alguns dias sem sequelas perceptíveis, Cibalena escondia disfarçadamente as dores da lição e somente passou a fazer aquilo que julgava interessante e não o que Oliveirinha achava que devia ser feito, quando foi estudar em Aracaju.
Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.