wagner o peso que carreguei atualizado

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Naquela época eu pensava que cada um deveria cuidar do seu, e só. Para mim, o grupo servia unicamente para que ninguém se perdesse. Os que conhecessem o caminho marchariam à frente, os demais iriam atrás, e isso era tudo. E se fosse para se perder, que fosse todo mundo junto…

Essa visão individualista me fez carregar muito mais peso, físico e psicológico, do que o necessário. Afinal, eu deveria ter em minha mochila tudo o que pudesse vir a precisar: comida, utensílios de camping, produtos de higiene, medicamentos etc.. Minhas crenças tornavam a carga ainda maior, pois sabia que, caso me faltasse algo ou necessitasse de ajuda, eu não me permitiria recorrer a ninguém no meio do mato. Ficava constrangido ao receber refeições preparadas por outras pessoas, sem que eu tivesse contribuído em algo. Para ter direito, era preciso fazer por merecer. E eu não havia feito nada. Por isso, comia sozinho as “minhas” bolachas, a “minha” granola, os “meus” amendoins, por mais apetitoso que estivesse o arroz com cenoura de Zé Cláudio. Da mesma forma, não compartilhava o que tinha comigo. Se havia me preocupado em arrumar a mochila com todo o cuidado para não faltar nada, e carregava tudo aquilo nas costas ao longo de quilômetros, por que deveria emprestar ou doar a quem não se esforçara tanto quanto eu? Não compreendia como alguém aceitava carregar sozinho o peso de uma barraca durante um dia inteiro, para depois dividir a dormida com outra pessoa, eventualmente desconhecida.

Querem um exemplo da maneira como eu encarava essa questão?

Lembro-me de ter sido um dos poucos a levar corda de varal (uns cinco metros) e prendedores. A maioria dos caminhantes, não tão precavidos quanto eu, tinha de improvisar, estendendo suas roupas sobre rochas ou arbustos, nem sempre abundantes. Enquanto a plebe disputava cada espaço disponível para secar suas peças lavadas, eu detinha o “poder sobre a corda de varal”, e isso me proporcionava a sensação fascinante e mesquinha de pertencer a uma casta superior. Então, ao final de mais um dia, lavei minhas roupas, deixei-as penduradas no “meu” varal com os “meus” prendedores, e fui curtir, com soberba e tranquilidade, um merecido banho no poço do Ancorado, nos Gerais do Vieira. Qual não foi minha surpresa ao retornar à barraca, e encontrar a corda quase arriando, escorada com um pedaço de pau, a fim de suportar o peso de um monte de roupas que não eram as minhas, que aliás nem chegaram a secar, com tantos panos molhados a sufocá-las, como pessoas que se espremem num ônibus lotado, desafiando as leis da física.

“Que povo folgado!”, pensei, e me isolei ainda mais.

Esse comportamento foi se enfraquecendo ano após ano, graças às incontáveis bênçãos oferecidas com amor, leveza e desapego pelos irmãos mais evoluídos do que eu na grande caminhada. Por outro lado, minha experiência e a constante chegada de novos participantes me fizeram perceber que também tenho, sim, algo para oferecer, em vários aspectos além do material. E que doar ou compartilhar o que possuímos (possuímos mesmo? ou emprestamos do Universo?) não nos provoca nenhuma perda. Muito pelo contrário, nos torna mais ricos da verdadeira riqueza. Mas para isso precisamos aprender a enxergar a abundância em que vivemos, e nos sentir transbordantes de tudo.

Nesses anos de caminhadas, posso garantir que nunca faltou comida para ninguém. Quem levou mantimentos, e quem não levou, todos se alimentaram com fartura, havendo inclusive a distribuição dos excedentes de granola em várias ocasiões. Se me esqueci de algo importante, sempre apareceu alguém para me suprir.

E assim minhas mochilas, a material e a espiritual, têm se tornado cada vez mais leves.

Obs: Foto do autor.
Publicação original:  
https://caminhadadatrocadesaberes.wordpress.com/2015/03/17/o-peso-que-carreguei/

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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