Frei Adolfo Temme 15 de maio de 2016

freiadolfo o livro vivente

A leitura de hoje, (Atos 13) é totalmente missionária. Vemos Paulo e Barnabé, enviados pelos irmãos, a pregar o nome de Jesus. Eles vão de cidade em cidade com a mensagem da salvação e fazem nascer comunidades de fiéis. Encorajam os irmãos a não perder o ânimo e os admoestam para se manterem firmes na fé. “Por meio de muitas tribulações iremos entrar no Reino de Deus!” Depois voltam à comunidade de origem, relatam as maravilhas que o Senhor operou por meio deles e como Deus abriu  a porta da fé para os pagãos.

Eu mesmo parti em missão, recomendado por esta comunidade. E de tempos em tempos relatei por carta ou pessoalmente, o que pude fazer na força de Deus. Não foi preciso anunciar Jesus. Seu nome era conhecido como consolador das almas. Mas como Libertador, ele não era conhecido. O povo sobrevivia sem dignidade e sem liberdade. Por séculos funcionava a separação entre Casa Grande e Senzala. E esta visão ainda não saiu das mentes. Ouvem-se ainda hoje frases como esta dos “Senhores”: Esta gente pensa realmente que tem algum direito a reclamar! – É isto: Um povo sem direito, como se fosse destino da natureza, ou pior, como se fosse vontade de Deus. Esta era a realidade, na qual até Deus sobrevivia apenas no nicho devocional.

Na comunidade de São Constâncio a capela estava apertada entre a casa do patrão e o curral da fazenda. O Santo Padroeiro estava maltratado, e o povo queria restaurá-lo. O senhor Antônio, já de idade, falou: São Francisco está tão acabado como nós!  – Quando estava no tempo de iniciar o trabalho das roças, o pretenso dono mandou dizer: Ninguém vai plantar este ano, porque a terra só dá para meu gado! – O povo queria sair mundo a fora: afinal o que lhe restava? No Culto Dominical, que poderia ter sido o último, dominava o desanimo, mas Antônio foi para frente para entender-se com o sofrido Santo no altar, dizendo bem alto: Eu creio! – E a coisa mudou, já que Deus ainda achou fé na terra. Fez-se um silêncio, e a palavra caiu bem fundo nos corações de todos. No outro dia, quando o ancião ia sair para iniciar os trabalhos no sua roça já marcada, ele não ficou sozinho. Eu creio! Esta palavra encorajou a muitos. As ameaças do capataz não puderam nada contra a fé que tinha se libertado. Deus abençoou os trabalhos com rica colheita. Hoje a localidade é grande. Não existe mais nem curral nem fazenda. Deus foi libertado do seu nicho, e o Santo está no seu altar com cores novas.

Na onda da libertação que se espalhou pelo Brasil a fora, foi possível emergir um governante com origem da senzala, Lula, o metalúrgico que perdeu um dedo no torno. Na Presidência, conduziu muitos milhões para fora da miséria, abriu as portas da Universidade para os filhos do pobre, pagou a dívida externa que já era considerada eterna, e fez a indústria florescer. Aquele que não pôde estudar recebeu vários chapéus de Doutor Honoris Causa. Não fez tudo, mas alcançou muita coisa. Conseguiu o segundo mandato e ajudou Dilma a suceder-lhe. A Presidente, agora no segundo mandato, não teve o mesmo carisma e lutou com recesso e desemprego, arma boa para ser usada pela oposição. O grito contra a corrupção, chaga antiga que é levantado ou abafado conforme as conveniências, sim, este grito saiu de repente, mesmo da boca dos corruptos provados. É que a velha elite estava tremendo:  Como é possível que estamos fora do governo no quarto mandato? – Como ela não tem candidato que convença, não quer enfrentar o caminho da eleição: tem que ser agora! O Lula pode voltar e (o que seria o pior) e ele poderá até fazer um bom governo!

O impeachment que os jornais comentam nestes dias no mundo inteiro com pesar é a volta do pensamento antigo, retorno dos que nasceram para mandar. Só dava certo assim: com pregação de ódio e apelo para sentimentos baixos. Um dos deputados declarou o seu voto a favor do impeachment evocando a “memória saudosa dos generais da ditadura: Estes eram bons tempos”. E ainda cometeu a indecência de honrar o chefe da tortura, Ulstra, que ainda vive, sabendo que Dilma sofreu nos porões deste passado.

Agora perdoem, caros irmãos. Será que deixei a bíblia e entrei na política? Não, tudo é história de salvação que reveza com história de opressão. Mas agora, onde está o Deus Libertador? Será que ele vai permitir isto? Queiramos ou não. Ele está acostumado no sofrimento. Já suportou coisa pior: golpes e cordas e espinho e vaias em face da morte. Há pouco estive na cidade de Anapú, na região do Xingú, onde celebrei de noite naquele domingo, dia 3 de abril. Atrás do altar vi num painel grande a cena do Golgota. Quem faz o papel de São João é o padre Josimo que foi morto em 1986. Do outro lado está a Ir. Doroty, assassinada ali mesmo em Anapú em 2005. Não como Mater Dolorosa e, sim, cheia de vida. O Crucificado está de olhos abertos, um dos muitos que caem e se levantam. Tem cenas de casas incendiadas e de gente expulsa, mas nada de desânimo. A Irmã Jane, colega sobrevivente de Doroty, me explica o painel: Só por muitas tribulações podemos entrar no Reino dos céus, e nós estamos entrando: Já plantamos mais de um milhão de mudas para refazer a mata. Trabalhamos em nossos lotes conquistados, colhemos o que Ele nos dá e poupamos as Suas reservas. –  Este é o espírito daquele que vence quando perde. Os outros ainda não sabem que na verdade estão perdendo quando ganham.

Ir. Jane é missionaria que não prega. Ela vive de um modo que Deus se torna visível. Cada um de nós pode cumprir esta tarefa sem uma palavra. Sejas tu um livro vivente para teu irmão. Talvez serás o único evangelho que ele lê.

(Homilia do frei Adolfo na terra natal Glane, dia 24. 4. 2016.)

Obs: O autor é  Frade Franciscano, nasceu na Alemanha em 1940.
Chegou ao Brasil como missionário em 1964. Depois de completar os estudos em Petrólis atuou no Piaui e no Maranhão. Exerceu trabalhos pastorais nos anos 80 em meio a conflitos de terra. Desde 1995 vive em Teresina no RETIRO SÃO FRANCISCO onde orienta pessoas na busca da vida espiritual.

Imagem enviada pelo autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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