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Helena
A mãe morreu, deixando-a tão pequena, que ela costumava dizer, exagerando, que nunca fora amamentada. E, de carinho suficiente, certamente não foi.

Cresceu entre os irmãos: duas meninas e um menino e, para educar-se, órfã, foi levada para um colégio interno, ainda menininha. Religiosas alemãs, chegadas à Baixada Fluminense dos anos 30, certamente as professoras traziam, como bagagem, toda a rigidez necessária para implantar ali uma instituição que, resistindo ao clima tórrido do lugar e a todas às intempéries da época, sobrevive até hoje e lá está, fazendo sua história.

Já adulta, Helena contava que se lembrava de  chorar muito no dormitório, sem nem saber direito porquê, tantos eram os motivos, cada vez se sentindo mais longe de todo afeto e acolhimento…

Depois, casando-se novamente seu pai, a madrasta esmerou-se em merecer o pejorativo do nome. Por decreto seu, por medida de economia, uma nova perda foi imposta à Helena: ela voltou pra casa, quando já quase se acostumava à Escola e encontrou ali, instaurado legalmente, um regime mais repressor ainda.

Quando se casou a irmã mais velha, fugindo do controle da madrasta,  as irmãs passaram a acompanhá-la, gozando dos confortos de uma casa “de rico”. Mas, ao mesmo tempo Helena mais uma vez  se sentiu a “borralheira”. Ajudava com os sobrinhos que iam nascendo seguidamente, e passou a ser “a” tia,  considerada quase como única, por ser a  mais bonita, talvez, entre todas e de temperamento mais forte, certamente.

Com esse jeito de ser, logo que teve que começar  a trabalhar fora  (como se dizia na época em que o comum das mulheres só trabalhava dentro), se rebelou e passou a reclamar  por sua independência. Impensável tal direito ali, num lar tão austero e exemplar! Helena foi embora mais uma vez e foi acolhida pela segunda irmã, mais liberal e compreensiva.

Foram seus poucos anos de alegria. Bailes, passeios, concursos de beleza, passou a ser reconhecida pela sua expressão de feminilidade e charme naturais. Tinha bom gosto e audácia para se vestir com graça e ousar tranças, chapéus, vestidos floridos de decotes ousados, tudo isso revelado agora,  pelas poses de atriz, em fotos que hoje repousam, cores esmaecidas, nas caixinhas de recordação de uma das sobrinhas.

Fazia sucesso entre os rapazes e entre os homens casados também. Isso lhe valia a inveja e o despeito das outras mulheres. Um dia, enfim, se apaixonou. Um rapaz alourado, que passava galante, cavalgando no caminho, roubou-lhe o coração e a liberdade. Grávida foi abandonada pelo amado e passou a ser a vergonha da família.

Não lhe foi dado o direito de decidir se queria de fato ser mãe. Essa era a conseqüência de sua rebeldia e devia ser vivida como castigo. Mas seria imposta como segredo essa maternidade. Ficou decidido que a filha, nascida do amor proibido, seria apresentada como filha adotiva da irmã mais velha, com quem Helena voltou a viver.

Crescia a menina e Helena a seu redor, ia  perdendo o viço e o direito de ser feliz. Era necessário que se casasse, diziam, se quisesse dar um sobrenome a sua filha, que foi mantida não registrada, para que ela se apressasse.

Assim, de “miss” dos bailes da juventude, ela se transformou em senhora, assumindo um compromisso de esposa com um homem “bom”, que aceitou  relevar sua condição de “pecadora”.

O casamento, que evidentemente, para satisfazer a sociedade,  precisava ser religioso, foi talvez a última tentativa de manter sua originalidade. Casou-se com uma mantilha de renda, ao invés do véu e um vestido curto, não de todo branco, aperolado… Linda! Superior em charme às noivas virgens de seu tempo!

Mas dali pra diante, Helena tornou-se uma mulher a serviço dos outros. Deixou de falar de si mesma e passou a contar e recontar, compulsivamente as histórias alheias Foi perdendo a alegria e deixando-se levar por trabalhos e afazeres domésticos, atendendo parentes e vizinhos, buscando incessantemente novas religiões, passando de enfermeira a sacerdotisa, de cozinheira a lavadeira, de costureira a doceira, tudo ao mesmo tempo.

Às vezes chegava a parecer puritana, repetindo as críticas que recebera a vida toda, ao julgar os jovens com severidade. Mas bastava que algum deles estivesse em apuros, para ser ela mesma quem acudia, em defesa, como loba braba, desafiando, só assim, toda a estrutura cruel e hipócrita de que fora vítima.

Foi adoecendo, mas ninguém dava por conta. Para ela, não havia olhos. Ela deixara de ocupar seu próprio lugar, quase uma sombra. Não mais protagonista, passara a ser a eterna coadjuvante, reconhecida, apenas esporadicamente, por seus préstimos. Mas por mais que fizesse, nunca parecia pagar suficientemente a “tolerância” que recebera no passado.

Houve um tempo em que tentou alegrar-se e inventou que a faxina doméstica podia parecer uma festa. Punha música e abria uma cerveja e ia assim, cantando e bebendo, brincando e sonhando, passando por cima da enfadonha missão que se impusera.

Durou pouco, também, esse prazer.  Logo passou a ter dores de cabeça e acatou a crítica geral de que seria o álcool o que lhe fazia mal. Ninguém pensou que talvez o trabalho lhe fosse excessivo, que a frustração, pela vida não vivida, pudesse lhe estar causando tal sofrimento.

Helena voltou à rigidez antiga e acelerou sua rotina. Cada vez mais, cada vez mais.

Uma noite, as correntes se partiram. Um aneurisma rompido, desligou-a da vida.

Nos dias em que esteve em coma, pranteada, os parentes lhe pediam ainda que acordasse, para fazer-lhes a feijoada preferida, para cuidar de seus filhos, para vir consolá-los de não tê-la mais.

Generosa até o último momento, passou dias assim, qual Bela Adormecida, esperando, talvez, que se acostumassem com sua falta, para se ir, sem dívidas.

E assim aconteceu.

A sobrinha que, chamada pelo hospital, chegou ali na madrugada, teve tempo de vê-la enrolada como múmia, em que verdadeiramente se tornara, tão diferente da tia linda que lhe penteava os cabelos em criança, recomendando que não deixasse a mãe cortá-los. E lembrou-se da pulseira de balangandãs que Helena lhe trouxera, um dia  e que usara, menina tão faceira, surpresa por se sentir tão feminina! Quase um amuleto!

Depois, sentindo uma enorme tristeza,  lembrou  de uma jóia, um coração de ouro, com rubis encravados,  como gotas de sangue que brotassem, um pendente de cordão, que se abria ao meio. E viu, de novo, a tia abri-lo, mostrando seu interior  e ouviu-a  outra vez sussurrar-lhe como um segredo:

-Meu coração tem dois amores…

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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