Saulo Marden 1 de abril de 2016

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“A flor do campo floresce apenas por uma hora e, no entanto, ela não difere em essência do gigantesco pinheiro que vive uma centena de anos.”
Teitoku Matsunaga

Fim de tarde. Pedro e Paulo numa pequena embarcação deixavam o mar para seguirem em direção a desembocadura do Rio Sanhauá. Precisavam recolher os covos deixados no dia anterior. Era mais uma aventura do período de férias de fim de ano.

A água soprada pelo vento respingava em seus rostos obrigando-os a fecharem os olhos. A velocidade do barco dava a vegetação ribeirinha formas variadas. Sentiam-se soltos, livres.

Um pouco à frente reduziram o motor. Precisavam deixar o curso principal do rio para entrar no emaranhado de canais formados pelo mangue. As raízes aéreas lembravam estacas de cercas vivas. Qualquer manobra indevida poderia por fim a aventura e a pescaria. Paulo manobrava em zigue-zague, com cuidado, até chegar a um grande círculo formado pela vegetação. Era o lugar preferido para trocarem os covos. Para não espantar os peixes, desligaram o motor. A embarcação deslizou em silencio no comando do leme.  Dos dez covos, cinco, estavam vazios, mas, ainda assim, conseguiram alguns peixes. Entre eles um camurim com quarenta centímetros. Gritos seguidos de palavrões se fizeram ouvir quebrando o silêncio, afugentando os peixes.

– Paulo cala esta boca. Quer espantar tudo.
– Desculpa tio, esqueci.

O dia escurecera quando o último covo foi instalado. A vegetação, antes verde, perdia a cor, misturava-se ao cinza, ao preto, ao invisível. O caminho da volta, estreito, assombroso; aflorava o medo.

Pedro sentia a responsabilidade pesar. Conduzir a embarcação por entre as raízes, que lembravam formas humanas, com longas pernas e braços, seria tarefa difícil. Havia necessidade de se descontrair para não passar insegurança a Paulo:

– Nunca ficamos no escuro. Esta foi a primeira vez. No ano passado não foi assim. Quando estávamos próximos ao ancoradouro é que escurecia, lembra-se, tio?

– Não me diga que está com medo?
– Não, não estou. É que não vejo nada. Você está vendo alguma coisa?
– Não tenha medo, daqui a pouco se acostuma e vai enxergar melhor. Conheço isto aqui como a rua que moro. Vamos já sair daqui.

Ao virar a chave, o motor não pegou. Foram várias as tentativas, mas sem sucesso:

– Vamos aguardar um pouco Paulo. O motor está encharcado, tem gasolina demais no carburador. Enquanto não secar, não pega. Agora é só esperar. Vamos olhar para o céu para  ver as estrelas, como fazia nosso avô, está lembrado?
– Estou sim.
– A noite vai ser das boas. Sem lua, sem nuvens, Será divertido descobrirmos os planetas e as constelações, você vai ver.

O piscar das estrelas estava cada vez mais forte. A cada momento surgia um outro ponto luminoso. O escuro, clareava com o brilho da escuridão em plena noite:

– Pedro, por que as estrelas aqui brilham mais que na cidade?
– É porque a luz do povoado é fraca. Quem clareia onde estamos é a luz das estrelas e a lua quando recebe a luz do sol. Está vendo aquelas quatro em forma de cruz.
− Estou.
− Veja se você consegue ver a que fica entre o braço direito da cruz e a de baixo. Ela é bem menor do que as outras, não é?
– É.
– Ela é conhecida como “Intrometida”. Juntas, formam a constelação “Crucis”. Aqui no Brasil chamamos de “Cruzeiro do Sul”. Se você imaginar uma linha reta, na vertical, saindo da estrela mais baixa até o ponto de encontro com a Terra, você encontrará o Sul. É muito importante saber disso. Ela serve para nos orientar sobre os quatro Pontos Cardeais, ou seja: onde fica o Norte, o Sul, o Leste e o Oeste. É muito útil para quem gosta de navegar ou fazer explorações nas matas.
–  E como vou saber pra que lado fica o Leste ou o Oeste?
– Ah! É fácil. Se você ficar de costas para o Sul, a sua frente ficará o Norte, à direita o Leste e a esquerda o Oeste. Entendeu?
– Entendi.
– Está vendo aquele outro punhado de estrelas. Um pouco mais para o Oeste. Consegue ver?
– Sim.
– É um outra constelação. Chama-se “Escorpião” por ter a forma de um grande escorpião.
– Estou vendo, não.
– Essa é mais difícil de ver. Fica muito espalhada. O Cruzeiro do Sul é mais fácil. Deite-se no barco. Continue a olhar para o céu. Vou lhe contar uma história enquanto a gasolina seca:

“ Certa vez um menino saiu com o seu cão para um passeio no rio. Ao chegar num local como este, desligou o motor e ancorou o barco. Depois, pegou a vara de pescar e jogou o anzol com isca na água. A princípio ficou sentado, mas depois de algum tempo deitou-se. O silêncio e o calor da tarde, foram suficientes para fazê-lo adormecer. Em seguida sentiu que seu corpo deixava o barco e flutuava em direção às estrelas como se estivesse voando, subindo no espaço. Cada vez se distanciava mais da terra. De repente olhou para baixo e se espantou. Ele se viu deitado no barco com o seu cão, viu as margens do rio, viu a vegetação de mangue que se espalhava pela região e ficou nervoso. Voltou a olhar para cima para ter certeza de que ainda voava. Sim, ainda continuava voando. Tornou a olhar para baixo. Desta vez viu o barco menor do que a palma da mão. As margens do rio e todo o contorno das praias estavam bem definidos. A medida em que demorava a observar um detalhe, os outros já vistos, minutos antes, tornavam-se menores. Chegou um momento que deixou de ver o rio, de se ver, de ver o barco, de ver o seu cão. Via apenas uma bola azulada. Era a Terra que ele via. E sentiu como se estivesse numa nave espacial em pleno universo onde meteoros, cometas, constelações passavam a sua frente. Ficou deslumbrado e temeroso ao mesmo tempo. Sentiu medo, pavor. Voltou a olhar para baixo e, numa velocidade assombrosa começou a descer, a perder altura. Avistou de novo a Terra, o mapa das Américas, o do Brasil, o rio, as margens, o barco, o cão e ele mesmo. Assim como num filme ele voltou ao tamanho real. Preocupado olhou para todos os lados e para o seu corpo. Em dado momento sentiu a palma da mão ardendo e olhou para ela. Viu, então, os poros crescendo. O sangue correndo dentro das veias. E de novo teve a sensação que deslizava num barco em um rio de águas vermelhas. O barco percorria os canais que eram as veias, as artérias. As vegetações tinham cores avermelhadas, amareladas. As raízes densas, aéreas, cheias de cavernas a se abrir e fechar num movimento contínuo que o deixava atordoado. De repente a água vermelha escura do rio, cedeu lugar a vermelha escarlate. Foi quando ouviu um som forte e ritmado seguido de uma cachoeira de água de diversas cores. Parecia um arco-íres levando-o a outro lugar. Estrelas, planetas, constelações tudo pequeno, tudo reduzido, minúsculo. Tão bonito quanto o que viu minutos antes. Não suportando o que via, gritou: Tem um universo dentro da gente! Acordou com o cão lambendo-lhe o rosto.

– Paulo.
– Hein!
− Não acredito que estava dormindo!
− O que houve? Conte o fim da história.
– Ah! Um dia talvez eu conte de novo.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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