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Missão em Caracol

Há quatro dias estamos comendo uma abóbora que não se acaba, fruto da Semana Missionária, presente do Sr. Isaias de Guaribas. Toda hora a minha memória anda nas caminhadas da madrugada, com frio na alma, descendo a ladeira de N. S. de Aparecida e subindo para o lado de Santo Antonio. Do lado de cá, a equipe era Cristiane, Erândia, frei Clécio e eu, frei Adolfo, junto com os missionários do lugar. Do outro lado estavam frei Francialdo com Luciana e Jocilda, irmã de frei Jonecildo, pároco de Caracol. Este havia celebrado no domingo à noite, dia 17 de julho, solene envio dos 50 missionários, vindos de todas as paróquias franciscanas, mostrando a imagem de São Francisco no abraço com o Crucificado, que em Caracol recebe o nome de Bom Jesus dos Aflitos. O Santo, na pessoa dos frades enviados para a nova paróquia, chegou para socorrer os aflitos, e o Bom Jesus, tão consolado, esquecendo por um momento que está pregado, desprende a mão direita para responder ao abraço do Pai Seráfico.

Depois da missa somos enviados para os mais diversos setores. Sentado no Micro-onibus entre malas e mochilas, fico a imaginar como será este lugar de Guaribas que recebeu a sinistra fama de ser campeão de pobreza. Quando chegamos depois de duas horas de viagem, o cansaço é maior do que a curiosidade. Os dirigentes da igreja de N. S. de Aparecida organizam a nossa hospedagem, e eu vou para a casa do Sr. Euripides. Com o aperto desta mão forte eu já sei que a casa dele deve ser acolhedora.

Na caminhada das 5 h da madrugada de segunda feira, os missionários se animam do jeito que podem. O tema do dia é PAZ E BEM. O frio faz as pessoas se achegaram. Por isto o abraço é tão demorado. Tem gente enrolada em cobertor. Ir. Augusta que mora em Guaribas dá um palpite sobre a temperatura: deve ser uns 16 graus. Sim, o tema é a PAZ. Grande é minha surpresa na hora do café: Dona Eva, esposa do hospedeiro, me apresenta a netinha Isabel. A primeira palavra que a menina aprendeu a dizer é PAZ. Quando ela estende a mão para mim, acho a benção mais forte do que a de um bispo.

Depois começo a fazer as visitas nas casas, onde sinto um vento a meu favor: todo mundo diz que sou muito parecido com Padre João de saudosa memória no lugar, também da Alemanha, que nos anos de 80 trouxe escola de férias para Guaribas, com professoras vindas da Bahia. “Aqui não havia cultura. Nosso estudo era só trabalhar”.  De casa em casa vou juntando a história do lugar que em 60, quando Dona Maria Correia chegou do Pilão Arcado da Bahia, contava 25 casas. O Sr. Filogônio me acompanha e abre as portas para a conversa. Por cima dos telhados vejo os montes impressionantes na sua cor de cinza e me pergunto: Quem foi que fez aquele talho tão certinho, partindo a serra como quem corta um cuscuz? Quem foi que roeu a pedra saliente e a deixou como um dente solitário no meio da paisagem? E que casas são estas no pé do monte? São obras do governo que tentou atrair turistas. É que em 1998 foi criado o Parque Nacional da Serra das Confusões que abarca 900 mil há. O hotel do turista está lá e o Centro de Convenções. Só que o governo esqueceu-se de fazer a estrada para Guaribas.

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Dona Eliza me conta que antigamente, a água vinha daquelas alturas, de uma fonte que chorava com pena do povo e enchia uma lata em tempo de rezar uma dezena do terço. Escuto histórias de amor pela roça e encontro mulher forte que confessa: “A luta de casa, eu faço à força, mas pra roça eu vou com gosto”. Este afeto ao trabalho não combina com a fama que o lugar tem, pois deste povo ninguém precisa ter pena. “O sofrimento daqui era só a dificuldade por água”. Mas o amor pela roça me causa melancolia, porque os pais não querem ver os filhos no mesmo caminho. Nos dias de trazer a safra para casa, não vejo alegria no dono: “Não consigo tirar o suor que investi. Os plantadores mecanizados que plantavam somente soja, agora estão plantando tudo que era do produtor manual. E nós não podemos concorrer”.  A filha diz: “Eu passei no Enem e vou para São Paulo para crescer o lugar”. É com a saída dos filhos que o Guaribas cresce?

O que se fala da Prefeitura? O município criado nos anos de 90 não deixa de ser motivo de orgulho. Trouxe ruas calçadas e energia e com isto a televisão. Só que a torre de transmissão se impõe de um modo estúpido, invadindo a praça principal e ocupando um pedaço da rua para dizer: Quem manda aqui sou eu!  Sr. Eurípedes está horrorizado com isto. De noite, esta torre causa um barulho como de um vapor em alto mar com uivos estrondosos. A cidade tem correio, tem Escolão do Sesc e tem hospital. Mas é bonitinho demais; não vejo sinal de uso. O município fez a limpeza da cidade: tirou a criação de porco e de gado e proibiu os jumentos. Este avanço civilizatório custou caro: Hoje, o lavrador precisa pagar um carro para trazer a safra para casa.

O que se diz do Governo do PT? Muita gente fala bem do Bolsa-Familia. Isaias se acha rico com a sua aposentadoria. A grande obra foi o poço jorrante que foi furado no interior e que abastece cidade e campo com água encanada. As mulheres levantam as mãos ao céu, sempre lembradas das caminhadas sofridas com lata na cabeça.

Nestas visitas se passa o dia. Pelas 5 h da tarde, me encontro com os outros missionários para um passeio. Passando ao lado do hotel que nunca viu um turista, vamos subindo para ver a cidade de um lado e do outro, dividida por um baixão, onde um açude alegra a vista, com duas mangueiras enormes. Dá para ver a igreja de Santo Antonio. Nossa subida vai até uma pedra, onde antigamente se colocava a mandioca ao sol. Quem levava a carga? Naturalmente o jumento. Eurípedes mostra outro alto: “Está vendo aquele monte? Chama-se Casa de Pedra. Ela forma uma gruta para o outro lado. Era a casa de farinha dos velhos”.  Quem levava a mandioca? Naturalmente o jumento, por caminhos que eu tenho maior dificuldade de subir.

O pôr do sol faz uma moldura dourada para toda esta labuta.

Na missa da noite se anuncia: Amanhã continua o tema PAZ E BEM, com acento em Fazer o Bem. Amanhã vamos trazer alimentos imperecíveis para distribuir aos que menos têm. Ir. Augusta se admira com o tanto de homens que chegam á missa. O tema do sermão é o Semeador. Jesus semeia o seu exemplo para ver se a ganância se converte em doação. O povo é espontâneo nas reações, e o pregador não fala em vão.

Na terça-feira visito a casa de Dona Antonia, que na véspera cantou o Bendito do Bom Jesus. Enquanto estou copiando a letra, chega a noticia da morte de Dom Henrique que estava se preparando para festejar os seus 50 anos de sacerdócio, lá em Bacabal. A cantora ajuda para eu me refazer. Vamos continuar: Como é o resto do Bendito? NAS AGONIAS DA MORTE – MEU PAI VAI ME DEFENDER – PARA QUE MINHALMA GOZE – DO VOSSO SANTO PODER.

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Na quarta-feira, a caminhada da madrugada é junto com Santo Antonio e vai para o cemitério que fica ao pé da serra.  Depois das orações individuais, começo a chamar os fieis com o canto:
POIS DE UMA VIDA COM DEUS EU ESPERO PARTIR PARA OS CÉUS. A história do SENHOR QUALQUERUM achou um cenário adequado ente túmulos e cruzeiros. ERA UMA VEZ UM HOMEM que vivia à toa…mas um dia foi chamado para a realidade pela morte em pessoa que cruzou sua caminhada e o convidou para a viagem que não tem volta. Com todas as barganhas e estratégias, o triste herói da história não escapa da portinha que se abre e se fecha, e ninguém sabe o que ele encontrou do outro lado.  Assim aconteceu que o velho drama medieval foi reeditado para vivos e mortos AO PÉ DA MONTANHA de Guaribas e só faltou sair fogo e fumaça.

Durante as visitas daquele dia encontrei uma alma relutante que se encorajou: Hoje eu vou derrubar o diabo de cassete! – Como assim? – É porque ele me empata de participar das Missões e sempre inventa uma coisa para eu não ir! – De noite, ela não faltou na missa.

Existem muitos evangélicos, mas estes não deixam de apreciar as visitas. Alguém fala, desiludido: “A gente não acha Deus na igreja católica e se põe a procurar”. Constatação séria que faz pensar: Temos o direito de encontrar na Casa de Deus a Sua presença. Deste aguilhão não devemos quebrar a ponta.

Frei Jonecildo mostrou o lugar onde o cruzeiro das Missões deve ser implantado: no alto da torre, atrás da igreja de Santo Antonio. Eu vejo o local e penso: Como vamos chegar lá? Na sexta-feira de manhã, os fieis dos dois lados de Guaribas já estão na frente da igreja. Frei Francialdo organiza ma ciranda para espantar o frio. Depois ouvimos na igreja o sermão da CRUZ CORTADA que não salva ninguém. Devemos carregar nossa cruz no tamanho que ela nos foi dada, pois só assim poderá ser a ponte que nos leva por cima do abismo. Já que todo mundo está disposto a levar sua cruz, vamos nós com BENDITO E LOUVADO SEJA, morro acima. Ninguém pode ficar para trás, porque os outros empurram. Olhando a subida íngrime, tomo emprestada a coragem de uma anciã que sobe com entusiasmo. E assim implantamos naquelas alturas o Reino da Santa Cruz e a lembrança das Missões. Este Reino não é de quem domina, mas de quem está carregando o peso dos outros. A visão sobre a cidade serviu para abençoar o lugar com olhos benévolos que enxergam a beleza sem desconhecer as dificuldades. DEUS TE ABENÇOE, GUARIBAS, QUE ACOLHESTE OS MISSIONÁRIOS. ERGUE SEMPRE O TEU OLHAR PARA AQUELE QUE POR TI DEU A VIDA.

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No sábado de manhã renovamos as promessas do batismo na beira do açude e terminamos com o café comunitário. Na despedida, Dona Antonia falou: Você mora no meu coração e não paga aluguel.

Frei Jonecildo já está nos esperando para nos levar ao passeio. Não poderíamos vir de tão longe para não ver o Parque Nacional da Serra das Confusões. Todos os missionários se reúnem ali para ver este espetáculo e para calar a alma depois de falar tanto. A paisagem é de um planeta que eu não conheço. O nome CONFUSÕES vem da variação das cores pela qual passam as pedras durante o dia. Por grandes escadas descemos ao fundo de uma gruta que se forma por lajedos deslocados que no alto formam como que uma cumieira. Em baixo encontramos a areia de um rio seco que convida para a turma se deitar. O guia informa que este passeio é da categoria de aventura ecológica. Tem 2 km de gruta, e o caminho é de acrobacia. Mas ninguém quer mostrar moleza. Todo mundo fala de um jardim que será o fim da viagem. Quando falta pouco para chegar, me parece que devo desistir. Como vou superar a altura de 3 m, formada por duas pedras sobrepostas. Frei  Jonecildo está posicionado num cantinho da primeira lajem, dando a mão. Depois empresta o corpo para ser escada, onde o joelho direito é o primeiro degrau e o ombro esquerdo, o segundo. De cima se estende o braço de outro anjo que puxa o corpo pesado junto com a alma aflita. Quem não tem coragem para esta aventura tem outra alternativa: por entre outras pedras existe um caminho de cobra onde a pessoa se arrasta pela chão.   A partir daqui ouço o som de uma flauta, e os passos se apressam. Valeu a pena conhecer este jardim, formado por plantas exóticas que vicejam graças a uma clarabóia que fornece chuva e luz. Frei Ronaldo toca sua flauta, sentado numa pedra. Só me convenço que não é estátua porque pedra não faz música.

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De noite tem a missa em Caracol, no mesmo lugar do envio. Frei Evaldo interpreta no sermão a parábola do REINO QUE É SEMELHANTE A UMA REDE LANÇADA AO MAR, QUE APANHA DE TUDO. “Sim, ontem nos sentamos para contar os peixes que apanhamos. Foram 22. O número daqueles moradores no Cajueiro que se comprometeram com assinatura para começar o CULTO DOMINICAL e para aguar a semente que nesta semana foi lançada”.   (Teresina, dia 30 de julho de 2011)

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Obs: O autor é  Frade Franciscano, nasceu na Alemanha em 1940.
Chegou ao Brasil como missionário em 1964. Depois de completar os estudos em Petrólis atuou no Piaui e no Maranhão. Exerceu trabalhos pastorais nos anos 80 em meio a conflitos de terra. Desde 1995 vive em Teresina no RETIRO SÃO FRANCISCO onde orienta pessoas na busca da vida espiritual.

Imagens enviadas pelo autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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