Patricia foto tam.bom

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Sábado, 19/03/2016

14h00

O restaurante Bistrô do Solar está fechado hoje. Talvez por causa da Feira de Produtos Ecológicos que ocorreu no sábado da semana passada enquanto eu escrevia “O Bartleby que nos habita ou Uma voz vinda de outro lugar”.[2] Não sei. A única certeza que tenho é que deixei naquele lugar um pouco da angústia sofrida por todo(a) Artista que se exila ou por vontade própria ou porque as circunstâncias assim o determinam.

Porto Alegre me acolhe em um momento de muita instabilidade. Em minha vida. Em nosso país. Mas não quero falar de política nesses tempos tenebrosos que estamos vivendo – ou quem sabe seja falando de Poesia, Teoria, Literatura que eu possa transmutar a angústia dupla que abate a minh’alma de Poeta.

Uma das grandes questões de todo(a) Poeta, de todo(a) Ficcionista, é o limite entre essas duas searas, esses dois Universos paralelos que, tentarei refletir hoje neste breve estudo, não seriam tão paralelos assim. Alguns textos se apresentam para a minha análise, e, entre eles, escolho como base, como se fosse um “novelo de lã a ser desfiado” com outros textos: A morte em Veneza,[3] do escritor alemão nascido em Lübeck e Prêmio Nobel de Literatura (1929) Thomas Mann (1875-1955), e “Poesia e pensamento abstracto”[4] do filósofo, escritor e poeta francês nascido em Sète Paul Valéry (1871-1945).
Mudemos a ordem. Comecemos com “Poesia e pensamento abstracto”, de Paul Valéry.
Nesse ensaio de quarenta páginas, Valéry analisa o risco que o Poeta corre ao refletir sobre o pensamento abstrato ou mesmo sobre o próprio fazer poético.

“Alguns chegam até a pensar que mesmo a meditação sobre a sua arte, o rigor do raciocínio aplicado à cultura das rosas, não podem senão perder um poeta, já que o principal e mais sedutor objecto do seu desejo deve ser o de comunicar a impressão de um estado nascente (e afortunadamente nascente) de emoção criadora, que, em virtude da surpresa e do prazer, possa indefinidamente subtrair o poema a toda a reflexão crítica ulterior.”[5]

Paul Valéry contrapõe a essa opinião “de origem escolar” o caminho do pensamento próprio, sustenta “que é necessário vigiar os primeiros contactos de um problema com o nosso espírito”.[6] Ou, em outras palavras: é preciso que o(a) Poeta/Artista construa com suas próprias mãos, desfie com suas próprias mãos o “novelo de lã” que de nós mesmos emana.

É a minha própria vida que se espanta, e é ela que deve, se puder, fornecer-me as minhas respostas, porque apenas nas reacções da nossa vida pode residir toda a força e como que a necessidade da nossa verdade.”[7]

O poeta e filósfo francês descobre em si – e somente em si – o melhor analista do que constrói com as próprias mãos, e a relação entre a sua obra e o mundo que o cerca. Ele é a favor da experiência “vivida na pele”, sentida na pele para dela extrair “fagulhas” de (auto)conhecimento, (auto)conhecimento que não pode ser arrancado por nada, por ninguém, por circunstância externa alguma.

O lógico não poderia ser um lógico se não pudesse ser mais do que um lógico, afirma “em outras palavras” Valéry. O(A) Poeta carrega em si várias possibilidades que irão se concretizando (ou não) ao longo da sua trajetória artística. O que interessa para nós – o que interessa para mim – é o transitar por essa linha tênue entre a Poesia e o Pensamento Abstrato (ou podemos chamar Teoria), entre a Poesia e a Prosa ficcional.

O poeta francês narra uma caminhada que fez “para se descontrair”. Ele conta de uma Epifania em forma de ritmo que, se músico fosse, a transformaria em partitura no exato instante em que a sentiu. Essa relação entre as artes, essa Intersemiose mal-sucedida, mas que seria possível uma “concretização” caso Valéry possuísse a técnica de um profissional da Música ou fosse alguém portador da “tendência”[8] musical.
É quando estamos prontos para enveredarmos por Thomas Mann e A morte em Veneza.

Descobrimos que trata-se de uma novela (publicada em 1911), novela que, diferente do romance, é reconhecida pelo tamanho (mais curto) e pelo final “estrondoso” que a nós se apresenta. Mas o que nos interessa no atual instante do presente estudo é saber (ou ao menos tentar saber) qual a relação entre a “Poesia” e pensamento abstrato  (de Valéry) e a “Prosa” ficcional (de Thomas Mann).

O consagrado escritor Gustav Aschenbach “(ou von Aschenbach)” passeia tranquilamente “para se descontrair” depois de uma árdua manhã de trabalho. Ele percorre as ruas de Munique e – como todo bom escritor que se preze – observa os personagens que circulam ao seu redor. Ele aguarda o bonde diante do Cemitério Norte e suas lápides auspiciosas. De repente, um “homem cuja aparência invulgar”, um homem do “tipo ruivo”, passa diante de si e muda completamente o seu destino. O homem ruivo aparenta ser um estrangeiro, e ao estrangeiro lança o pensamento de Aschenbach e terminamos por desembarcar em Veneza, a cidade da suA morte anunciada já no título da novela de Mann.

“Era o desejo de viajar, nada mais, mas que o acossava com a força de um acesso, intensificando-se às raias de uma paixão e mesmo de uma alucinação. E sua ânsia tornava-o vidente. A imaginação, ainda não sossegada depois de tantas horas de labuta, criava para seu uso exemplos de todos os prodígios e terrores da Terra multiforme, no afã de visualizá-los em sua totalidade.”[9]

Esse “desejo de viajar” de Aschenbach provocado por uma caminhada, desencadeado pelo encontro com o “homem ruivo”, beira o “estado poético-epifânico” da caminhada de Valéry. Desse “pôr-se em movimento” nasce a Epifania em Valéry, brota o anseio por novas paragens no personagem de Mann. Porém, Valéry alerta o pintor Degas que “pensa” escrever versos quando “lê” discursos interiores ou imagens que “poderiam ter sido expressas empalavras.”[10]

“Há portanto outra coisa, uma modificação, uma transformação, brusca ou não, espontânea ou não, laboriosa ou não, que se interpõe necessariamente entre esse pensamento produtor de ideias, essa actividade e essa multiplicidade de questões e de resoluções interiores; além disso, esses discursos tão diferentes dos discursos habituais como são os versos, bizarramente ordenados, que não respondem a necessidade alguma, a não ser à necessidade que eles próprios devem criar; que não falam senão de coisas ausentes ou profunda e secretamente pressentidas, são estranhos discursos, que parecem feitos por outro personagem que não aquele que os diz, e destinar-se a outro que não o que os escuta. Em suma, trata-se de uma linguagem numa linguagem.”[11]

“A poesia é uma arte da linguagem. A linguagem é, todavia, uma criação da prática”.[12] Valéry ensina na Poesia aquilo que o poeta, dramaturgo, romancista, ensaísta, professor da UFPE paraibano radicado no Recife Ariano Suassuna (1927-2014) ensina na Teoria em Introdução à Estética:[13] que é preciso a Forma (ou o Talento, a Tendência), o Ofício (ou o Trabalho contínuo) e a Técnica (ou o Estudo diário) para um Artista dar o salto, para transmutar-se de simples artesão naquele que recebe a “ave de rapina da inspiração criadora” e a põe em prática na construção de uma obra de arte.

O poeta e filósofo francês afirma que a linguagem pode produzir dois tipos de efeitos totalmente distintos. Um é aquele que ao se compreender “as minhas palavras” elas são, enquanto compreendidas, “abolidas”, e com isso desaparecem. Passam para o sentido de cada um que me ouve, e desaparecem.

Compreender consiste na substituição mais ou menos rápida de um sistema de sonoridades, durações e signos por uma outra coisa, que é em suma uma modificação ou uma reorganização interior da pessoa a quem se fala. E eis a contraprova desta proposição: a pessoa que não compreende repete, ou faz-se repetir as palavras.”[14]

O contraponto de Valéry a essa linguagem que se transforma em não-linguagem e “desaparece” encontrar-se-ia no “universo poético”. Na Poesia, “ficamos insensivelmente transformados”, vivemos, respiramos, pensamos “sob leis que já não são as da ordem prática”.[15] Com isso retornamos ao nosso personagem Gustav (von) Aschenbach.

Antes de desembarcar em Veneza, Gustav experimenta pela segunda vez a prefiguração do que iria acontecer em sua vida. Ele, escritor renomado, consagrado por sua disciplina e rigor, ao ver o “homem ruivo” diante do Cemitério Norte, age “sob leis que já não são as da ordem prática”. Deseja viajar para lugares exóticos. Ao escolher Veneza, encontra-se novamente diante daquilo qua mais teme, e ao mesmo tempo fascina. E no que irá se transformar ao final da novela.

“Mas apenas Aschenbach o olhara melhor, percebeu com uma espécie de horror que era um falso jovem. Tratava-se de um velho, sem dúvida alguma! Rugas lhe circundavam os olhos e a boca. O suave carmesim das faces era maquiagem; a cabeleira castanha sob o panamá de fita multicor, uma peruca; o pescoço, flácido, macilento. O bigodinho como que colado e a mosca no queixo estavam pintados. A dentadura amarelada, completa, que ele exibia quando dava risadas, não passava de uma prótese barata, e as mãos, com anéis-sinetes em ambos os indicadores, traíam o ancião.”[16]

Podemos encontrar essa “prefiguração” de Aschenbach do que iria se “preencher” no seu futuro no conceito de Figura[17] que o filólogo alemão nascido em Berlim Erich Auerbach (1892-1957) utiliza na análise, a seu ver, dos principais textos da literatura ocidental em Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental.[18]

“O trabalho interpretativo mais impressionante desta espécie ocorreu nos primeiros séculos do Cristianismo, como consequência da missão entre pagãos, e foi realizado por Paulo e pelos Pais da Igreja; eles re-interpretaram toda a tradição judaica numa série de figuras a prognosticar a aparição de Cristo, e indicaram ao Império Romano o seu lugar dentro do plano divino da salvação. Portanto, enquanto, por um lado, a realidade do Velho Testamento aparece como verdade plena, com pretensões à hegemonia, estas mesmas pretensões obrigam-na a uma constante modificação interpretativa do seu próprio conteúdo; este sofre durante milênios um desenvolvimento constante e ativo com a vida do homem na Europa.”[19]

Com o intuito de angariar mais fieis, os primeiros padres, ou Pais da Igreja Cristã tentaram ligar figuras do Antigo Testamento (Moisés, Davi, Elias, Josué…) com a figura do Cristo no Novo Testamento, Cristo que é a realização máxima da promessa. Auerbach em Mimesis exerce esse indiciamento entre os textos, de Homero a Virgínia Woolf, um texto prefigurando o outro, até a “realização máxima” com a chegada do romance moderno.

Gustav (von) Aschenbach/Thomas Mann executa em A morte em Veneza o que, de maneira semelhante, Paul Valéry nos convida a refletir: sobre a “prefiguração” com futuro “preenchimento” na “criança que fomos” e que “trazia em si várias possibilidades”.

“Tendo aprendido a servir-se das suas pernas, a criança descobrirá que pode não apenas andar como também correr e até dançar. Trata-se de um grande acontecimento. Num só lance, ela inventou e descobriu uma espécie de utilidade de segunda ordem para os seus membros, uma generalização da sua fórmula de movimento. Com efeito, enquanto a marcha é, em suma, uma actividade deveras monótona e pouco susceptível de aperfeiçoamento, essa nova forma de acção, a Dança, permite uma infinidade de criações, de variações ou de figuras.”[20]

Estamos em uma encruzilhada – mas que intuo irá nos levar a um ponto em comum. Por um lado, podemos tratar da comparação que Paul Valéry faz entre a Marcha e a Dança, a Prosa e a Poesia. Por outro lado, podemos tratar da “inutilidade da arte” trazida à tona por Thomas Mann em A morte em Venezaquando retoma o diálogo entre Fedro e Sócrates lá atrás nos tempos gregos.
Comecemos (novamente) com Valéry.

A Marcha visa um objetivo. A Dança não. A primeira é finita e se encerra ao atingirmos o objeto de nosso desejo. A Dança é “um sistema de actos, mas que têm em si próprios a sua finalidade”.[21] Não vai para lugar nenhum. Conserva “um certo estado”, mesmo que não saia do lugar.

A Marcha está para a Prosa, assim como a Dança está para a Poesia, confirma Valéry. Apesar de servirem-se “das mesmas palavras”, “sintaxe”, “formas”, “sons ou timbres”, os dois tipos de representação escrita se distinguem pelo que afeta em nosso “organismo psíquico e nervoso”, poderíamos assim dizer. “Quando o homem que anda atinge o seu fim”, “essa posse logo anula definitivamente o seu acto; o efeito devora a causa, o fim absorveu o meio”,[22] continua o filósofo e poeta francês. Mas será que a Marcha, a Prosa não seria mais parecida com a Dança, o Poema que Valéry tanto distancia e que “não morre de ter vivido”?[23]
Quem sabe Aschenbach/Mann nos ajude…

Gustav discorre sobre Sócrates e Fedro. A reflexão é provocada (e justificada) pela paixão dórica que sente pelo jovem Tadzio – os dóricos ficaram conhecidos como aqueles senhores mais velhos que na Grécia antiga mantinham feito amantes e instruíam ao mesmo tempo os seus pupilos. Leiamos o trecho de Aschenbach.

“E por entre cumprimentos e galanteios humorísticos, Sócrates instruía a Fedro sobre o anseio e a virtude. Falava-lhe da emoção ardente que acomete um indivíduo sensível sempre que seus olhos avistam um síbolo da beleza eterna; falava-lhe dos desejos de pessoas profanas, maldosas, incapazes de pensar em beleza, em face da sua imagem, e que não sabem reverenciá-la; falava-lhe do pavor sagrado, a dominar os nobres, logo que se lhes apresente um semblante divino ou um corpo perfeito; descrevia como então estremecem, perdem o juízo, mal se atrevem a lançar um único olhar e como veneram a quem possui a beleza. Até mesmo lhe ofereceriam sacrifícios, como a um ídolo, se não receassem que os outros os considerassem malucos. Pois a beleza, meu caro Fedro, só ela é ao mesmo tempo adorável e visível.”[24]

Aschenbach não estaria falando o mesmo que Valéry? Sobre a “inutilidade da arte”? Sobre “a beleza é o caminho que conduz o homem sensível ao espírito”?[25] De que entre “a Voz e o Pensamento, entre o Pensamento e a Voz, entre a Presença e a Ausência, oscila o pêndulo poético”?[26] E que para nós, não apenas “o pêndulo poético”, mas também o “pêndulo ficcional”, porque a “felicidade do escritor reside no pensamento que possa ser convertido inteiramente em sentimento e no sentir capaz de se tornar inteiramente pensar”?[27]

A Poesia não nos ensina nada – afirma Valéry. Mas a Prosa ficcional também – afirmamos nós. E ousamos dizer que o fazer Teórico também. No momento em que “soldamos” um verso de poema, no instante em que construímos um parágrafo da mais pura ficção, ou quando extraímos do nosso fazer poético, do nosso forjar ficcional, a mais brilhante centelha de Teoria. Porque “todo o verdadeiro poeta é necessariamente um crítico de primeira categoria”.[28] E dessa (auto)crítica nasce o (auto)conhecimento que a verdadeira Arte nos fornece de maneira gratuita.

“Eu disse no entanto que o poeta tem o seu pensamento abstracto e, se se quiser, a sua filosofia; e disse também que esta se exercia no próprio agir de poeta. Disse-o porque o observei em mim e em alguns outros. Não tenho outra referência, outra pretensão ou outra desculpa aqui e em qualquer outra parte, para além do recurso à minha própria experiência ou à observação mais comum.”[29]

A forma às vezes nos chega sem que saibamos com que conteúdo preencher. A “prefiguração” de Auerbach, de Auschenbach (interessante a semelhança dos nomes!) também se parece com essa forma vazia, essa “carcaça” do poema que o poeta romântico John Keats (1795-1821) em carta a Richard Woodhouse em 1818 atribui a todo “verdadeiro” poeta, e que nos apropriamos, e abrangemos, e atribuímos a todo(a) aquele(a) que se esvazia para a futura Poesia, Ficção, Teoria preencher.

“Quanto à personalidade poética em si (quero dizer essa espécie à qual pertenço, se sou alguma coisa; essa espécie diversa do sublime wordworthiano ou egotístico…), ela não é ela própria – ela não tem eu – é tudo e é nada – não tem personalidade – aprecia a luz e a sombra – vive no prazer, seja ela má ou boa, alta ou baixa, rica ou pobre, vil ou nobre – tem deleite igual ao conceber um Iago ou uma Imogênia. O que choca o filósofo virtuoso deleita o poeta camaleão. […] O poeta é o mais impoético de tudo o que existe, porque não tem identidade, continuamente adentra e enche outro corpo. O sol, a lua, o mar e os homens e mulheres, que são criaturas de impulso, são poéticos e têm um atributo imutável; o poeta não tem nenhum, nenhuma identidade. É certamente a mais impoética de todas as criaturas de Deus.”[30]

Ontem, sábado, 19/03/2016. 18h40. Estava no Theatro São Pedro para assistir a uma peça originalmente dirigida por Marília Pêra.[31] No café do teatro, as palavras se juntaram e tentaram resumir os sentimentos que por mim perpassavam, as angústias da “linguagem numa linguagem” que em mim atravessavam.

Que o sonho
Não se transforme
Em velho
Vai e vem
Do dia a dia
……

Que a hora

Em mim

Apague

Qualquer impressão

De angústia

Qualquer invasão

De penúria

Aposto
Num texto bom
Que há
De vir
Entre uma linha
E outra
Entre uma palavra
E o som
Da minha própria
Voz

Até

Imaginar-me

Nua

Diante da

Platéia escura

Dos meus

Ais

(“No Theatro São Pedro”)

Hoje, domingo, 20/03/2016. 18h01. Procuro retirar dessas quase dez páginas aquilo que Paul Valéry encerra o seu ensaio sobre Poesia e pensamento abstrato: “uma ideia de algum eu maravilhosamente superior a Mim”.[32]Aquilo que o personagem Gustav (von) Aschenbach aponta no final da sua vida, no final da novela de Thomas Mann.

“A cabeça de Aschenbach, recostada no espaldar da cadeira, acompanhara lentamente os movimentos do que já andava longe. Nesse instante, porém, ergueu-se, como para ir ao encontro desse olhar, e logo depois abaixou-se sobre o peito, de modo que os olhos espiavam sob as pálpebras, enquanto a fisionomia apresentava a expressão lassa, ensimesmada, de sono profundo. Parecia-lhe, no entanto, que o pálido e gracioso psicagogo lá fora sorria para ele, que lhe acenava e, desprendendo a mão do quadril, apontava para regiões distantes. Parecia-lhe que ele flutuava à sua frente, rumo ao vazio imenso, cheio de promessas. E como tantas e tantas vezes fizera, pôs-se a segui-lo.”[33]

Para não dizer que não falei de política.
Post Scriptum:
1) O filósofo, sociólogo, musicólogo, compositor alemão nascido em Frankfurt Theodor Adorno (1903-1969) em “Palestra sobre lírica e sociedade” afirma:

“Pois a própria linguagem é algo duplo. Através de suas configurações, a linguagem se molda inteiramente aos impulsos subjetivos; um pouco mais, e se poderia chegar a pensar que somente ela os faz amadurecer. Mas ela continua sendo, por outro lado, o meio dos conceitos, algo que estabelece uma inelutável referência ao universal e à sociedade. As mais altas composições líricas são, por isso, aquelas nas quais o sujeito, sem qualquer resíduo da mera matéria, soa na linguagem, até que a própria linguagem ganha voz.”[34]

2) Na Introdução de Baudelaire ao Surrealismo, o crítico literário suíço nascido em Genebra e especializado em literatura francesa Marcel Raymond (1897-1981) afirma que a tarefa do poeta é “perceber analogias, correspondências” e produzir associações entre diferentes áreas:

“Associações deste tipo podem produzir-se espontaneamente entre sensações que não pertencem ao mesmo registro e isso se dá provavelmente graças a uma comunidade, existente entre elas, de tonalidade afetiva cuja lógica, na maioria dos casos, é incapaz de explicar. Vasto campo aberto ao poeta, que não mais se julgará obrigado a identificar uma forma a uma forma e um som a um outro, mas que acolherá ousadamente metáforas cujos termos evocarão sensações de ordem diferente.”[35]

3) E a crítica à fotografia no “Salão de 1859” do teórico de arte e poeta francês nascido em Paris Charles(-Pierre) Baudelaire (1821-1867) – e leiamos aqui no lugar da fotografia, a política.

“A poesia e o progresso são dois ambiciosos que se detestam com um ódio institivo e, quando se cruzam no mesmo caminho, é preciso que um se submeta ao outro. Se se permitir que a fotografia substitua a arte em alguma de suas funções, em breve ela a suplantará – ou a corromperá – completamente, graças à aliança natural que encontrará na estupidez da multidão. É necessário, portanto, que ela se limite ao seu verdadeiro dever, que é a de ser a serva das ciências e das artes, mas a humilíma serva, como a imprensa e a estenografia, que não criaram nem suplantaram a literatura.”[36]

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* Para baixar o arquivo em PDF: De Thomas Mann a Paul Valéry – Um olhar [pernambucano-gaúcho] entre a Prosa e a Poesia – Patricia (Gonçalves) Tenório

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(1) Patricia (Gonçalves) Tenório escreve poesias, romances, contos desde 2004. Tem oito livros publicados (O major – eterno é o espírito (2005), As joaninhas não mentem (2006), Grãos (2007),  A mulher pela metade (2009),Diálogos e D´Agostinho (2010), Como se Ícaro falasse (2012),  Fără nume/Sans nom (2013)) e dois no prelo (Vinte e um / Veintiuno (a ser lançado em 11 (Lisboa) e 13 (Madri) de abril de 2016) e A menina do olho verde (a ser lançado (Livraria Cultura RioMar Recife) em 28 de maio de 2016)).  Defendeu em 17 de setembro de 2015 a dissertação de mestrado em Teoria da Literatura, linha de pesquisa Intersemiose, na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, “O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde: um romance indicial, agostiniano e prefigural”, com o anexo, o ensaio romanceado O desaprendiz de estórias (Notas para uma Teoria da Ficção), sob a orientação da Prof. Dra. Maria do Carmo de Siqueira Nino. Contatos: [email protected] e www.patriciatenorio.com.br
(2) Vide http://www.patriciatenorio.com.br/?p=6502. Escrito em 12/03//2016. Última atualização: 26 de março de 2016.
(3) MANN, Thomas. A morte em Veneza in A morte em VenezaTonio Kröger. Tradução: Herbert Caro, Mário Luiz Frungillo. Ensaios: Anatol Rosenfeld. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015
(4) VALÉRY, Paul. Poesia e pensamento abstracto. In Discurso sobre a estética – Poesia e pensamento abstracto. Prefácio: Pedro Schachtt Pereira. Portugal: Vega, 1995 – Coleção Passagens.
(5) VALÉRY, Paul. Op. cit., p. 53-54.
(6) VALÉRY, Paul. Op. cit., p. 55.
(7) VALÉRY, Paul. Op. cit., p. 59, itálico da edição.
(8) Em “Notas sobre o Talento na Criação Literária” trato dessa mesma “tendência” que Paul Valéry afirma não possuir e que o possibilitaria transformar em Arte a Epifania que em si experimenta. Videhttp://www.patriciatenorio.com.br/?p=6279. Escrito em 14/06/2013. Última atualização: 25 de outubro de 2015.
(9) MANN, Thomas. Op. cit., p. 13.
(10) VALÉRY, Paul. Op. cit., p. 67, itálico da edição.
(11) VALÉRY, Paul. Op. cit., p. 67-68, itálico da edição.
(12) VALÉRY, Paul. Op. cit., p. 68.
(13) SUASSUNA, Ariano. Iniciação à estética. Texto revisado e cotejado por Carlos Newton Júnior. 5ª edição. Recife: Ed. Universitária da UFPE. 2002, pp. 235-240.
(14) VALÉRY, Paul. Op. cit., p. 69, itálico da edição.
(15) VALÉRY, Paul. Op. cit., p. 70.
(16) MANN, Thomas. Op. cit., p. 26.
(17) AUERBACH, Erich. Figura. Tradução: Duda Machado. Revisão da tradução: José Marcos Macedo e Samuel Titan Jr. São Paulo: Ática, (1938 in) 1997.
(18) AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Vários tradutores. São Paulo: Perspectiva, (1946 in) 2011.
(19) AUERBACH, Erich. Op. cit., (1946 in) 2011, p. 13.
(20) VALÉRY, Paul. Op. cit., p. 75.
(21) VALÉRY, Paul. Op. cit., p. 77.
(22) VALÉRY, Paul. Op. cit., p. 78.
(23) VALÉRY, Paul. Op. cit., p. 79.
(24) MANN, Thomas. Op. cit., p. 54.
(25) MANN, Thomas. Op. cit., p. 54-55.
26) VALÉRY, Paul. Op. cit., p. 81.
(27) MANN, Thomas. Op. cit., p. 55.
(28) VALÉRY, Paul. Op. cit., p. 85.
(29) VALÉRY, Paul. Op. cit., p. 87.
(30) KEATS, John. Ode sobre a melancolia e outros poemas. Organização e tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Hedra, 2010, p. 35-36.
(31) Depois do Amor. Elenco: Danielle Winits e Maria Eduarda de Carvalho. Autor: Fernando Duarte. Direção: Marília Pêra. Diretor Assistente: Fernando Philbert. Direção de Produção: Cássia Vilasbôas e Fernando Duarte. Realização: Nove Produções.
(32) VALÉRY, Paul. Op. cit., p. 91, itálico da edição.
(33) MANN, Thomas. Op. cit., p. 83.
(34) ADORNO, Theodor W.. Palestra sobre lírica e sociedade. In Notas de literatura I. Tradução e apresentação: Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, (1974 in) 2012, p. 74.
(35) RAYMOND, Marcel. Introdução. In De Baudelaire ao Surrealismo. Tradução: Fúlvia M. L. Moretto e Guacira Marcondes Machado. São Paulo: Edusp, (1933 in) 1997, p. 21.
(36) BAUDELAIRE, Charles. O Público Moderno e a Fotografia – Salão de 1859. InPoesia e Prosa. Edição organizada por Ivo Barreto. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, (1859 in) 2002, p. 802.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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