Firmino, Dona e seus filhos moravam na rua Jackson Figueiredo, numa casa pequena, baixa e simples. Dona era uma mulher perfeita. Sabia arrumar a casa, cozinhar, lavar prato, passar ferro em roupa e coser com agulha as rasgadas. Aos domingos, mesmo sob pressão de Otília de seu Florival, uma fervorosa protestante. Dona atravessava as praças de Santa Cruz e da Matriz para assistir à missa com padre Heraldo e pedir proteção a Deus para o marido e seus filhos. Firmino, engraxate de muitos anos e caprichoso por natureza, não fazia serviço ligeiro nem superficial. Os sapatos por ele engraxados ficavam bem lustrados e adequados para uso em casamentos, batizados e festas de formatura. Revelava equilíbrio emocional, paz, calma e nostalgia quando recordava suas boemias, cachaçadas, experiências amorosas passadas e feridas cicatrizadas que vez ou outra coçavam.

Seus filhos Zé Pequeno, Birunga, Mitcho Bode e Papou eram inquietos, imprudentes e bons de briga. Costumavam desafiar as regras de boa convivência com os colegas e fugir do Grupo Escolar para tomar banho no açude ou jogar bola. As punições disciplinares do pai inibiam crises de birra e novas infrações apenas por poucas semanas. Frequentaram a escola por pouco tempo, aos trancos e barrancos, período suficiente para aprender ler e escrever algumas frases.

Com o passar dos anos, a profissão de engraxate não rendia o necessário para acompanhar a escalada dos custos de vida e a família começou a enfrentar dificuldades. Firmino queria proteger a dignidade dos filhos, mas percebia que a situação ficava a cada dia mais desesperadora. Nas conversas durante as refeições demonstrava claramente suas preocupações com o destino de todos, já que os parcos recursos cobriam apenas as despesas com alimentação. Birunga foi o primeiro dos filhos a sentir a racionalização e o desconforto que gradualmente tornavam-se piores. Na expectativa de permanecer pobre por curto tempo, comunicou ao pai sua decisão de ir procurar trabalho decente para ele e seus irmãos em Santos. Firmino não ficou completamente surpreso e permaneceu calado. Dona foi tomada por intensa aflição. Não havia riqueza no mundo igual a seus filhos e a viagem era uma verdadeira aventura para chegar ao seu destino. Zé Pequeno passou quase duas semanas num caminhão, em estrada de barro e sob forte poeira por praticamente todo o trajeto.

A casa vazia com a viagem dos filhos perdeu a alegria. Firmino deixou de sentar na porta da rua, lado a lado com Dona, não comia bem, tossia, acordava suado durante a madrugada, tinha dificuldade para levantar e às vezes era obrigado a vestir sua capa colonial por cima de um casaco grosso para conter o frio. Andava tão fraco que Dona trocava de roupa com o candeeiro aceso e ele não se espantava nem guiava seus olhos de pidão pra cima dela. Segundo Dona. A doença de Firmino médico não curava. Ele estava de cabresto amarrado e dominado pela vontade de um caboclo. Havia necessidade de alguém muito entendido para afastar o mau agouro. Dr. Pedro curou Firmino de fraqueza nos pulmões.

Depois de longo tempo em silêncio, uma noticia boa tomou a casa. Zé de MR, caminhoneiro respeitado, veio avisar que ‘os meninos’ passariam Natal e Ano Bom em casa. Foi a noticia de sua vida. Dona, sentiu que o esforço não havia sido desperdiçado. Era uma mãe especial, amada e prestigiada. Nasceu de novo naquele momento. Via beleza no céu e na serra, ouvia o canto dos sanhaços no mamoeiro e sentia o cheiro da roseira trazido pelo vento.

A cidade devia tomar conhecimento da presença de seus filhos. Alvoroçou os vizinhos, vendeu as mangas do quintal, as garrafas de vidro, os frascos de brilhantina e dois cortes de chita para mandar celebrar uma missa em ação de graça. Durante vários dias, a possível chegada de Zé Pequeno, Birunga, Mitcho Bode e Papou não saía da boca dos vizinhos nem da cabeça de Firmino e Dona.

Era véspera de Natal e a casa estava lotada de gente. Os vizinhos queriam presenciar o reencontro de pais e filhos depois de uma demorada ausência. Aproximava-se o terceiro Natal com a família dividida. O ambiente festivo e ansioso perdurou até o momento em que os quatro filhos desceram do caminhão e, frente a frente, deparam-se com os pais e se abraçam longamente. Nenhum deles conseguia falar nem conter as lágrimas. Além de carinho, afeto, respeito e solidariedade trouxeram roupas, uma bateria de alumínio com todos os utensílios de cozinha, pratos de louça e um faqueiro para abolir o costume de comer com os dedos. O presente que despertou mais comentários foi a radiola e alguns discos de Francisco Alves, Orlando Silva e Dalva de Oliveira.

No dia seguinte a porta da casa foi aberta um pouco mais tarde. Quando alguém chegava, Dona com um dedo nos lábios pedia silêncio porque os filhos cansados dormiam. Perto das dez horas da manhã os quatro saíram para rever velhos amigos e convidar os mais íntimos para beber cerveja, petiscar torresmo e tripa de porco ao som de música de boa qualidade.

Zé Pequeno, Birunga, Papou e Mitcho Bode voltaram já perto do meio dia acompanhados de vários amigos. Ao entrarem em casa, a visão do impossível surpreendeu os presentes. A casa estava bem arrumada com a radiola em posição de realce sobre a mesa. No entanto, alguns discos cobriam as bocas de potes de barro, usados para armazenar água que se podia beber, e outros, deformados por ondulações para todos os lados, serviam de testos para frigideiras e panelas com alimentos ainda quentes. Todos ficaram perplexos. Dona, ingenuamente, permanecia muito sorridente e feliz. Não estava em dia com o que era novo.

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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