(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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No umbral da Semana Santa, escrevo refletindo sobre como o Mistério Pascal, centro da fé cristã, imprime na verdade sua marca ao movimento de toda a vida humana. Acostumamo-nos a uma visão invertida deste movimento. Dizemos: tudo que nasce morre; para morrer, basta estar vivo. Mas, na verdade, não percebemos que a frase deveria ser dita de outra maneira: tudo que morre vive; os mortos andam mais vivos que nunca.
Temos para alimentar nossa reflexão alguns casos inspiradores. O mundo amanheceu nesta terça-feira, dia 22 de março, com a terrível notícia dos atentados de Bruxelas. Novamente o grupo terrorista ISIS reivindicou a autoria e integrantes de suas fileiras se explodiram ao mesmo tempo em que explodiam algumas dezenas de vidas e feriam muitas outras mais. Aeroportos e metrôs passaram a ser lugares de medo, onde o terror pode estar à espreita em qualquer vagão, tornando a tensão insuportável.
E, no entanto, como é bonito ver a solidariedade de toda uma cidade – a bela capital belga – com as pessoas que, devido aos atentados, não puderam viajar e não têm onde ficar. Abriram suas casas, seus corações, sua presença, seus recursos. O medo não tem a última palavra, mas a solidariedade ao outro sim. E sem esquecer a dor e o luto causados pelos atentados podemos respirar, olhar-nos nos olhos e dizer: como é grande a obra de Deus no ser humano!
O Brasil vive uma longa Sexta-feira Santa já há algum tempo. O país parece sem rumo, perdido e desorientado. Os índices nunca estiveram tão ruins, as denúncias de corrupção nunca foram tão agudas. Os ânimos se acirram por todos os lados e sente-se cheiro de inimizade, de intolerância e até de ódio nas relações entre pessoas que antes pareciam amigas.
O clima é pesado, assustador. A ameaça de golpe paira no ar. Ao mesmo tempo, o cansaço de parte da população é compreensível. O desemprego aumentou, o salário encolheu, o país parece à deriva. E cada delação premiada traz novas surpresas nada agradáveis, que contribuem para o clima de sempre maior pessimismo. Ambiente de perseguição, de paixão, de violência.
E, no entanto, os sinais de vida brotam do seio de toda essa lama, essa incerteza, esse temor. Adélia Prado, poetisa maior, ao final de um evento de poesia convoca seu público a rezar. Busca uma oração que seja agradável a todas as religiões. E dá início a um Pai-Nosso que, acompanhado por todos, termina em lágrimas da poeta e dos que a acompanham. Reza pelo Brasil e sua fé é contagiante.
A Santa Sé organiza um evento nas Nações Unidas para refletir e denunciar a violência contra a mulher. Ouvem-se histórias incríveis de meninas violadas continuamente dentro e fora da família, na África e no Oriente Médio. Com PowerPoint mostra-se uma realidade em que a mulher é moeda de troca, menos que uma mercadoria, pois é obrigada a ser virgem para poder casar e é violada para forçar às vezes um casamento que não deseja, mas é aprovado pela família porque o pretendente tem vacas para pagar o dote. E por causa das vacas vai-se o equilíbrio mental e emocional, o futuro, a vida enfim de uma jovem na flor de seus quatorze, quinze anos.
Ao lado disso e respondendo a isso está o trabalho de duas mulheres: uma religiosa e uma leiga, uma de Uganda, outra do Congo, que dedicam a vida a recuperar essas meninas e conseguem verdadeiros milagres. A essas que chegam às suas mãos após terem sido violadas, muitas vezes por homens diferentes e não se sentem mais acolhidas em lugar algum, fazem reencontrar o caminho da vida, da serenidade. Abrem a elas um futuro ao lado dos filhos que geraram e pelos quais antes sentiam repulsa e rejeição.
As agressões da morte são respondidas com gestos de vida e de amor. Este é o dinamismo pascal da vida humana. A morte jamais terá a última palavra. O ser humano é capaz de inúmeras crueldades, mas nunca estas serão mais fortes que a graça e o amor que o sustentam e inspiram
Na noite do próximo sábado, iremos todos cantar a “noite de alegria verdadeira, em que se uniu o céu à terra inteira”, a noite que viu emergir das trevas da morte Jesus de Nazaré, morto pela teocracia judaica e pela pax romana, em sinistra aliança contra seu projeto do Reino de Deus. Ao silêncio tenebroso que se seguiu ao grito do Crucificado seguiu-se o ressoar tonitruante da Palavra Interpretativa do Pai: Este é o meu Filho. A morte não o retém em seu poder, porque maior do que ela é meu Amor.
É um convite a confiar: a luz vence as trevas, a vida sobrepõe-se à morte, o amor é mais forte que tudo, o bem triunfa sobre o mal. Porque, como diz o belíssimo texto do Precônio Pascal, “esta noite lava todo o crime/ liberta o pecador dos seus grilhões/ Dissipa o ódio e dobra os poderosos/ enche de luz e paz os corações. ”
Alegre Páscoa para todos!
Obs: A teóloga é autora de “O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.
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