O vovô boxeador que jogava pôquer bateu as botas. Eu já devia ter desconfiado, talvez por causa da demora em responder aos e-mails sobre minha provável visita para mais um churrasco de salsicha. Éramos apenas quatro, às vezes cinco. E ele sempre contava como aprendeu a jogar durante a Guerra da Coréia nos anos 50. Não havia nada para fazer além de cartas e cigarros. Quando voltou aos EUA com a dispensa do exército, ficou um bom tempo sem emprego e sobrevivendo apenas das cartas. Resolveu virar jornalista na meia idade, casou com uma húngara e por lá fincou terreno.
Ele gostava daquela rotina. Durante a manhã, era copidesque e revisor do jornal para o qual inventei de escrever uma coluna mensal sobre a visão de um brasileiro (ranzinza) perdido no país, mas que terminei juntando com matérias para gringos sobre os festivais de cinema e a curiosa gastronomia urbana. Durante a tarde, ele devorava todas as revistas que conseguia encontrar na biblioteca da Universidade Central Europeia e tirava um cochilo nas poltronas inclinadas. De noite, voltava para casa onde ia assistir TV a cabo com a Ezstèr e conversar pelo Skype com os filhos e netos do outro lado do mundo.
Certa vez, ele resolveu convidar os colegas de pôquer, do jornal e da biblioteca para um churrasco. Ninguém foi. Apenas eu e um jornalista húngaro que trabalhava em um dos jornais locais e também jogava pôquer conosco às vezes. Entre metrô, trem, ônibus e caminhada, levamos cerca de uma hora e meia para achar a casa. Então, descobrimos porque ninguém ia. Não era pela distância. Mas o churrasco era um bacia inteira de alface americana, um prato com pedaços de pão e uma grelha elétrica com duas salsichas compradas no açougueiro da esquina. Uma para cada convidado.
Bateu as botas há dois anos, calculo que por volta dos 85 de idade. Exatamente quando fiquei por um fio de cabelo para voltar a morar lá. Para variar, cheguei um pouco tarde demais, a exemplo do Adler. Um ano antes, os dois jornais estrangeiros em Budapeste também fecharam as portas.
O boteco no porão de um restaurante, onde ensinamos dois engenheiros chineses a jogar pôquer para ter uma segunda opção de mesa, fechou as portas. O dono, um russo que nos emprestava suas fichas profissionais feitas de osso, parece que foi preso. O embaixador brasileiro trocou de país. Os adidos culturais e de imprensa da Romênia e da Ucrânia, com quem tanto conversei e tanto ajudaram a achar boas fontes, também pularam fora do país. O líder da oposição na época, representante da ultradireita reacionária, virou Primeiro-Ministro e há pouco foi reconduzido ao cargo.
O melhor (e mais barato) sanduíche de atum, que me salvou tantos finais de semana na pindaíba, também fechou. E vários outros lugares frequentes, igualmente fechados. A taberna belga onde descobri que até no Azerbaijão a Dido é uma representante global da fossa masculina, bom, deve ter fechado também. Procurei durante horas e não encontrei mais.
No cafofo onde morei, onde antes havia uma loja de roupas usadas cujas atendentes eram velhinhas simpáticas que adoravam dizer “good morning”, agora tem massagem asiática para turistas. Na esquina onde havia o relógio que servia como ponto de encontro e referência, nada mais tem.
E o restaurante chinês cuja dona jurava que eu era da Mongólia? Também não existe mais.
Veronika não decidiu morrer, mas teve dois filhos e está com o terceiro a caminho. E ao ouvir esse relato, apenas disse: oito anos é muito tempo para memórias acidentais.
Obs: Foto do autor.