vlocatelli07

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Parte II- Eu estou contigo

Depois de umas 11 horas de viagem no barco do seu João de Deus, um homem negro, calvo, profundamente religioso, com mais sessenta anos de idade, que viajava sempre com sua mulher, dona Maria, uma senhora dos seus cinquenta anos, magra, pele queimada pelo sol, cabelos grisalhos que ficavam escondidos embaixo do lenço vermelho sempre amarrado na cabeça. Era ela quem cuidava do motor, acelerava, parava, engatava a ré, sempre ao ouvir o toque do sino acionado pelo seu marido, seu João. Alegre, nos servia de vez em quando um café com farinha de tapioca, para enganar a fome. Pois havíamos saído às 04h00 da manhã de Aveiro-PA e até essas horas não havíamos almoçado. Já estávamos chegando na comunidade de Godinho no Rio Cupari.

O Rio Cupari, um afluente do tapajós, é plenamente navegável no período das cheias, desde a sua foz, onde despeja suas águas no Tapajós, até se dividir, quase chegando na transamazônica. Mas quando está seco, só quem conhece bem se atreve a navegar por lá, pois existem muitas pedras, que ficam invisíveis, logo a baixo da lâmina d’água e na cor da própria água e ainda assim o trajeto só pode ser feito com com embarcação pequena.

Era mês de agosto do ano de 1996, as águas começavam a baixar, mas ainda estava bom para navegar.  Aquela viagem tinha algo especial, que ainda não sabia o que era. Pela terceira vez iria viajar pelo cupari. Desde que subi a bordo, fiquei conversando com seu João de Deus na proa do barco, enquanto que ele pilotava dando sinais para sua companheira na parte de trás, por meio de um pequeno sino:  Uma batida curta significa que estou guinando para boreste, duas batidas curtas significam que estou guinando para bombordo, três batidas curtas significam que estou dando “máquinas atrás (ré)” e assim por diante.

Seu João de Deus contou-me sua vida de menino pobre que nasceu e cresceu no sertão da Bahia, região do sisal, passou fome e abandono quando sua mãe faleceu e ele ainda com 10 anos de idade ficou sozinho no mundo, já que nunca conheceu seu pai, só ouviu falar que era um trabalhador rural cearense, que havia ido para o Acre ser seringueiro da borracha e nunca mais voltou.  O menino João foi ajudar nas plantações de sisal onde conseguiu sobreviver com o pouco que lhe davam para se alimentar. Não conseguiu estudar. Aprendeu ler a pouco tempo com ajuda paciente de sua filha mais velha. Curiosamente, enquanto relatava sua história, me dizia que sempre sentiu a presença de Deus em sua vida:

– Aprendi com minha mãe a confiar na presença de Deus em minha vida. Ela me dizia que, para ela, Deus tinha o rosto de uma mãe que não abandona seus filhos.

– Tá vendo esse rio padre? Sim seu João respondi a ele.

E continuou:

– Aqui é tão distante de tudo, mas não é longe para Deus!

– Por que diz isso?  Perguntei.

Ao que me respondeu afirmando que ele próprio, sua presença viva ali naquele momento, era um milagre, pois não havia outra explicação para que continuasse vivo depois de ter ficado perdido por mais de um mês na floresta amazônica, sem fogo, somente com um pequeno facão na mão… comendo palmito, frutas e castanhas que encontrava na floresta, tomando sangue de preguiça e comendo fígado de jabuti cru, acabou varando em uma tribo indígena no Município de Jordão, no Estado do Acre e dali conseguiu sair. Isto na década de 60, pois havia seguido os passos de seu desconhecido pai. Do qual nunca teve notícias.

Enfim, havíamos chegado na comunidade de Godinho, a primeira comunidade católica no Cupari, rio acima. Era por volta das 17h. Fiquei na casa do seu João, tinha um delicioso aracú cabeça gorda assando na brasa e carne de macaco guisada nos esperando. A cozinha no interior do oeste do Pará, é normalmente separada do resto da casa, uma área coberta com palhas de uma palmeira chamada curuá, não tem paredes, só um fogão de lenha feito de barro, uma mesa de madeira rústica com alguns tamboretes com assentos de couro de veado.

Dispensei o macaco e fui no peixe, almoçamos e jantamos ao mesmo tempo, tentando nos livrar das mutucas que atacavam de todos os lados.  Impressionante a quantidade de mutucas, nunca tinha visto igual. Deveríamos entrar logo na casa e fechar as portas, acender um fogo em um cupinzeiro, onde se colocava também pequenos pedaços secos da casca de uma árvore, chamada popularmente de “Envira tai” para espantar os carapanãs do início da noite e também os morcegos.  A fumaceira no meio da sala, ardia os olhos, como pimenta quando a casca era adicionada. Mais isso era necessário, pois além dos mosquitos, haviam morcegos hematófagos naquela região que tinham atacado várias pessoas durante a noite e podem inclusive transmitir a raiva. Armei minha rede em um canto da sala e adormeci rápido não sei se por efeito da casca da “Envira tai” ou somente cansaço. No outro dia cedo, na capela comunitária, haveria missa seguida de vários batizados.

Ao terminar a missa uma mulher, ainda jovem, com menos de trinta anos, chorando veio me procurar pedindo que eu fosse visitar a sua casa, pois seu marido estava muito doente, ele queria confessar-se e receber a extrema unção. Combinei que depois da reunião com a equipe catequética marcada para as duas da tarde iria fazer uma visita à sua casa, pois ficava um pouco distante do povoado, era preciso andar um pouco.

Finalmente havia terminado a reunião onde havíamos discutido os principais problemas da comunidade, especialmente a organização da “missão da juventude”, no rio Cupari, para tentar apresentar a boa notícia de Jesus libertador aos jovens, que não tinham qualquer engajamento e ficavam à margem tanto da comunidade quanto das discussões políticas e sociais que estavam ocorrendo no município, tendo como principal objetivo formar um grupo de jovens missionários.

Um casal de catequistas, resolveu me acompanhar na visita que faríamos ao doente, Seu Raimundo e Dona Lúcia. Depois de andar uns vinte minutos pelas margens de um igarapé, enfim chegamos a casa do doente. De longe já ouvíamos, choros e gritos de dor.

Ao entrarmos na casa totalmente coberta e cercada de palhas percebi que não havia separação de cômodos era um vão único de uns 20metros quadrados. A direita da porta de entrada havia um pote de barro e algumas canecas de alumínio para beber água, a cozinha era separada. A esposa do doente nos recebeu na porta pedindo que entrássemos, pois ela não sabia mais o que fazer com tanta dor que o marido estava sentindo.

O doente estava em uma rede no centro da casa e reclamava de fortes dores nos ossos, especialmente nas pernas, disse chorando que já havia ido para diversos médicos, pajés, e ninguém tinha “dado jeito”, e desse modo, havia voltado para a comunidade para morrer lá. Para minha surpresa era um homem ainda jovem com cerca de 30 anos de idade, muito magro, mestiço com pele clara. Se chamava Pedro. Pedi que me deixassem a sós com ele pois queria se confessar. Antes da confissão perguntei a ele se acreditava em Deus e na sua presença nesse exato momento com ele. Respondeu que sim. Depois da confissão e absolvição me ajoelhei ao lado da rede daquele doente, segurei em suas mãos e fiz uma oração implorando pela sua saúde. Toquei em sua perna onde estava sentindo dor durante a oração e Pedro deu um forte grito.

– Aí meus Deus!!!   E se calou…

Os que estavam fora da casa entraram rapidamente, imaginando que o pior tivesse acontecido. Fiquei atônito, ele tinha desmaiado. Colocaram um frasco com álcool e algumas misturas para ele cheirar e então voltou a si.

Nesse momento, percebeu que não sentia mais dor alguma. E então levantou da rede e começou a dizer que estava curado, que havia acontecido um milagre, que Deus estava com ele.

– Estou curado!!, estou curado!!! Jesus me curou!!!

Dei um jeito de sair dali e voltar para a capela e, em oração silenciosa, agradeci a Jesus o carinho e o sinal da sua presença na minha missão naquele dia.  Entendi o que significava “EU ESTOU CONTIGO”.

Depois disso, Pedro transformou-se em uma grande liderança da comunidade e pude encontra-lo várias vezes em eventos da paróquia. Pedi que ele agradecesse sempre a Deus o que tinha acontecido e não a mim, simples instrumento de sua obra.

Obs: O autor é escritor, poeta, advogado e mestre em Gestão e Planejamento Ambiental.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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