José Silveira de Menezes. Simplesmente Zé Gorducho. Estatura baixa e bem atarracada. Tórax e abdômen juntos formavam um barril com cintura de ovo. Rosto quadrado com pálpebras inchadas cobrindo olhos brilhantes e úmidos. Carregava uma almofada embaixo de cada orelha, o que deixava transparecer ser um portador de papeira crônica. Cabelo preto como quixaba, liso, fino e sempre bem aparado. Na puberdade, as espinhas haviam atacado, como cupim feroz, a sua face, pescoço e parte superior do tórax, imprimindo deformidades permanentes. A pele acometida ficou brocada, carcomida, cheia de buracos, túneis, bridas, queloides e numerosos cravos pretos. Seu rosto parecia feito de casca de tangerina ou de areia molhada, onde pinto e galinha ciscam. As sequelas cutâneas devastaram sua beleza e estilhaçaram sua alma causando-lhe sentimento de inferioridade, raiva e frustração, levando a baixa frequência escolar e retraimento social. Conhecia bem a si mesmo e evitava intimidades afetivas pelos riscos de causarem consequências dolorosas. A inspetora Marta foi sua primeira e única namorada.
Quase sempre passava a maior parte do dia na loja ‘O Crediário’ de Zeca Araújo. Entretanto, metido a faceiro, ao anoitecer, saía a trocar pernas pelas ruas e bares da cidade para beber e jogar, sempre perfumado, com roupas impecáveis, cabelo lustroso e bem assentado com excesso de brilhantina. Com muita prática e persistência, aprendeu usar o taco e quando não tremiam as mãos, encaçapava bola até em sinuca de bico. Depois de tomar alguns pileques, bêbado pelo álcool e pelo sono, adormecia sentado com a cabeça sobre a mesa suja por cinzas, pontas de cigarro e restos de cerveja. Roncava alto, engasgava-se, interrompia a respiração e depois voltava a respirar. Parecia motor de geladeira antiga. Despertava assustado daquele estado e tentava, sem sucesso, domar os efeitos da bebida. O equilíbrio comprometido provocava um caminhado cambaleante com tendência a cair. Para evitar a queda, olhava cuidadosamente o chão e, passo a passo, voltava para casa, às vezes esbarrando os ombros nas paredes.
Nunca demonstrou vontade de trabalhar, nem entusiasmo em receber educação adequada às suas necessidades e aptidões. Esquentar o juízo ou fazer esforço físico por longos períodos era algo que lhe causava inquietação e insatisfação. Idealizou várias vezes ser cantor de circo e delirava com a grandiosidade de aplausos intensos e prolongados, que somente sua mente ouvia. Tinha sonhos em que cantava a música ‘Maria Helena’ e o público aplaudia e pedia bis. Foi bancário por alguns meses, entretanto, seu relógio biológico não era fiel ao horário do banco e foi demitido. Sem treinamento, imaginava ter energia para andar de bicicleta durante 24 horas. Não percebia que o tempo distribui declínio a todos nós. Chegara a assinar contrato com algumas prefeituras, mas sem força física e vitalidade, interrompia as pedaladas e desaparecia antes de completar o tempo acordado. Depois de diversas frustrações, adotou um estilo de vida apropriado às suas aspirações, e quando sentiu que o tempo lhe fugia, aceitou ser incapaz de tornar-se independente das migalhas que sobravam do esforço de Dona Aurelina, uma mãe dedicada.
Certo dia, ainda pela manhã, o hotel comercial de Dona Josefa acolheu como hóspede uma Inspetora Federal de Ensino. Havia muito tempo sem abrigar gente grande ali. Os últimos haviam sido um fiscal de consumo e um Sargento do Exército. Chamava-se Marta. Escolheu acomodação confortável, silenciosa e bem sossegada. Atenciosa e discreta, solicitou aos empregados que guardassem segredo da sua presença e de seu cargo. Nas primeiras horas da tarde, a notícia vazou do hotel e espalhou-se pela cidade. A população passou a comentar sobre a chegada de uma inspetora vinda do Rio de Janeiro a Itabaiana. Tinha a obrigação de avaliar a estrutura física, nível dos professores, métodos de ensino, participação e aprendizado dos alunos de cada escola. Ao redigir o relatório final, deveria evidenciar as deficiências encontradas e ativar os meios necessários para corrigi-las. Comentava-se que a inspetora era uma autoridade em educação e que seus pareceres nunca eram contestados.
No final da tarde, como parte de uma tradição transmitida de geração em geração, a inspetora foi espontaneamente apresentar-se às pessoas eminentes da sociedade local. Morena alta cuja beleza a natureza roubou de seu corpo após recompensá-la com imensa simpatia. Elegante nos trajes, no andar e nos gestos, aparentava ser honrada e muito capaz. Expôs suas credenciais a vários comerciantes, entre os quais Genário, Helena Lobo, Tonho de Libânia, Adalula, Zé Crispim, Jubal Carvalho e Zeca Araújo. Na loja ‘O Crediário’, comentou que estava enamorada da cidade e das pessoas e que precisava de alguém para facilitar-lhe a localização das escolas e de seus diretores. Zeca Araújo, com o dedo em riste, aponta para Zé Gorducho e anuncia: “ele conhece todas as escolas e o que fazem todos na cidade”, e aproximou os dois.
Convidado para o café da manhã, logo cedo Zé Gorducho estava no hotel para iniciar suas atividades. Durante o dia, servia de guia conduzindo a inspetora à porta de cada escola a ser inspecionada, onde era recebida pelo corpo docente e pelos alunos perfilados e bem comportados. Durante a noite Zé Gorducho e a inspetora caminhavam e conversavam na Praça da Matriz.
A inspetora estava entusiasmada com a popularidade de Zé Gorducho. Em todos os lugares ele era cumprimentado com atenção e carinho. No entanto, algum estraga prazer descreveu para a inspetora, como fuxico, detalhes da vida de Zé Gorducho: “ele é um bom rapaz, mas bebe muito e não tem nem eira nem beira. As pessoas já comentam ser visível um sentimento de afeição entre vocês. Falam até de uma amizade colorida, mas ninguém tem certeza até onde vai a verdade”. Ela argumentou que os relatos davam-lhe desprezíveis preocupações, porque se sentia à altura de enfrentar qualquer dificuldade.
No domingo, a missa principal já começada, a inspetora e Zé Gorducho entraram na igreja de mãos dadas. Ela depositou flores no altar de São Sebastião e depois os dois sentaram para assistir à missa. À vista da cidade inteira, houve uma declaração pública de amor. Os fiéis perderam o fio da meada da voz do padre com uma explosão de cochichos miúdos na nave da igreja.
Os adultos mudam pouco ao longo do tempo e a cidade passou a viver o clima de uma paixão avassaladora. Estavam suspensos outros acontecimentos da vida social. Os proclamas já corriam e o casamento deveria ocorrer nos próximos dias. Todos queriam participar da felicidade de Zé Gorducho. Dona Aurelina emprestou à Marta as reservas de dez anos vendendo doces caseiros e os comerciantes venderam mobiliário, utensílios e eletrodomésticos para receber o pagamento em 30 dias.
Marta convenceu José Silveira a fazerem uma despedida de solteiro romântica, longe de tudo e de todos, para o bem da alma e da mente. Já era tarde da noite. A Rua da Vitória estava deserta. Entraram em casa com dificuldades pelo número acentuado de embalagens do enxoval. Aurelina dormia profundamente. Marta abriu um litro de cachaça, fez alguns carinhos superficiais no noivo e ordenou: nós vamos casar e você vai beber pela última vez. Zé estava com muita saudade da bebida e quando tomou os últimos goles já não ficava de pé. Acordou deitado no enxergão da cama com a luz do sol batendo em seu rosto. A casa estava vazia e sem as caixas do enxoval. Durante a madrugada um caminhão com chapa da Bahia levou tudo e até hoje não se sabe o destino. Foi um conto do vigário de mestra.
Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.