Ivone Gebara 15 de março de 2016

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Quem é Jesus de Nazaré? As respostas a essa pergunta foram sempre plurais desde os primeiros seguidores de Jesus. Os textos do Novo Testamento são as primeiras testemunhas do pluralismo fundante do Cristianismo. É na tentativa de reforçar o pluralismo cristológico no interior das comunidades cristãs que explicito as idéias que seguem. Acolher o pluralismo cristológico no interior das comunidades cristãs é a meu ver um passo importante para acolher o pluralismo das crenças e buscas religiosas dos diferentes grupos culturais sem pretender que nenhuma delas seja a mais importante e a mais verdadeira e absoluta experiência do divino. Na tentativa de explicitar algo do pluralismo cristológico para as comunidades cristãs uma sugestiva frase de São Paulo me veio ao espírito: « Não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gál 2,20). O que Paulo teria experimentado quando a formulou? Da vida de qual «eu» se referia ele? Creio que Paulo com sua lucidez característica não tinha a pretensão de reproduzir em sua vida, a vida individual de Jesus de Nazaré. E, na mesma linha não julgava que todos os «eu» poderiam se reduzir ao seu próprio «eu». Assumir a partir de sua vida os valores que segundo sua compreensão de Jesus, davam sentido à sua vida, fazia dele um outro Cristo. Já estamos dentro do pluralismo cristológico. Por isso, podemos nos perguntar como poderá esta frase fruto de uma experiência pessoal ser verdadeira para nós hoje? Como podemos seguir Cristo se não ouvirmos quem somos e se não nos dispormos a modificar nossos comportamentos a partir do lugar onde estamos? Como posso seguir Cristo se não descubro seu rosto estampado em meu coração através de minha história e da história de meus próximos? Acaso tenho que negar esta experiência fundamental para seguir um Cristo ensinado a partir fora e a partir do alto dos poderes eclesiásticos? Acaso para seguir Cristo tenho que trair o rosto do Cristo que vive em mim? Acaso tenho que renunciar a minha cultura, a meu contexto de vida, aos gritos de dor particulares a meu povo, gritos que ressoam em mim e ressoam em meus contemporâneos? Estas perguntas que podem parecer pura retórica, não nascem de um pensamento eclesiástico oficial que pretende ensinar a verdade universal válida em todos os lugares e em todos os tempos, mas nasce da observação da vida ordinária das pessoas comuns. Por isso, todo controle cristológico vindo dos poderes religiosos que se auto-outorgam a posse da verdadeira doutrina sobre Jesus Cristo ou todo controle que nós mesmos queiramos exercer uns sobre os outros, correm o risco de negar a vida plural e diversa do Cristo em nós. Não se pode reduzir Cristo a uma fórmula, a um dogma delimitado no tempo, a um comportamento único, a uma ação única como se pudéssemos policiar as diferentes formas de amor e afirmar então que todos nós só podemos amar desta maneira afirmada como única maneira possível e verdadeira de se viver o amor. Mas, quem é o Cristo que vive em mim? Como posso entendê-lo e viver em mim sua verdade? Como posso ser fiel a uma tradição religiosa que é reconhecida como cristã? Cristo, palavra de origem grega, significa o ungido, o designado para uma missão especial. Por muito tempo se entendeu que Cristo era apenas Jesus de Nazaré, trazendo através de sua pessoa, a salvação para toda a humanidade. Hoje, na comunidade cristã, dizemos que Cristo é uma palavra que significa que, cada uma e cada um de nós têm como Jesus de Nazaré a capacidade de descobrir-se ungida e ungido para estar a serviço uns dos outros, para buscar com os outros a justiça e o bem comum. É nesse sentido que todos nós somos Cristos, isto é, responsáveis por acolher nossa humanidade e permitir que ela se desenvolva com o respeito e a dignidade que merecemos. Se a tradição atribui a Jesus esta palavra de maneira especial, foi para permitir que a partir de um homem concreto, Jesus de Nazaré, pudéssemos perceber como se pode num determinado contexto e a partir de nossa humanidade ser de fato Cristo. Em outras palavras a questão é de em cada contexto criar «relações crísticas», isto é, relações de justiça, de amor, de ternura, de verdade, de solidariedade uns com os outros assumindo nossa condição e responsabilidade humana. Então, o mais importante em Cristo não é os atributos divinos abstratos que lhe outorgamos. Não é a sua filiação divina num sentido religioso hierárquico. Não é igualmente os atributos tirados das divindades do Olimpo grego ou do mundo egípcio que acrescentamos à sua história ao longo dos séculos. O fato é que, um de nós e cada um de nós, dentro de nossa própria humanidade pode tornar- se Cristo. E quando nos tornamos Cristo acolhemos no mais profundo de nossa humanidade aquela experiência simples que nos leva a reconhecermo-nos uns com os outros, uns para os outros, como um mesmo corpo. Um corpo que só vive uma vida plena se cuidarmos respeitosamente uns dos outros, se instaurarmos cada dia de forma renovada relações de respeito, de justiça e ternura entre nós. A Cristologia plural é simplesmente a acolhida dessa intuição das primeiras seguidoras e seguidores de Jesus. Pode ser vivida como experiência humana de relação com as pessoas próximas ou distantes de nós de forma sempre renovável. Nesse sentido, determinar dogmaticamente as formas dessa relação e empregar palavras únicas para expressá- la não parece fazer parte da tradição que herdamos dos Evangelhos. É nesse sentido que nos lembramos de São João quando nos diz que «o vento sopra onde quer e ouves o seu ruído, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasce do Espírito»(Jo 3,8). Este vento sopra em nós ou respira em nós ou respiramos nele, quando sentimos o quanto a dor do outro nos move as entranhas e se torna de certa forma nossa dor. Por isso, buscamos com ele ou com ela saídas para aliviar seu sofrimento e nutrir suas esperanças. É o vento, brisa suave ou tempestade que nos aproxima dos nossos semelhantes e nos faz descobrir que somos da mesma carne, um mesmo corpo com a Terra. Este corpo embora dividido pelo sofrimento e pela ganância que estão em nós é a única realidade que somos. E, é ele mesmo o corpo de Cristo simbolizado de diferentes maneiras. Sabemos por experiência que o vento que sopra nele não é sempre o mesmo nos diferentes lugares e nos diferentes tempos. Como então exigir que seu ruído seja conforme a uma lei ou a uma regra única? E como proibir ao vento seus diferentes ruídos e intensidades querendo controlá-lo como o fazem os senhores do mundo? Para eles as riquezas do mundo têm que correr para seus cofres, o saber do mundo para seus computadores para que o controlem e acumulem riquezas sem pensar que«a ferrugem e a traça irão corroê-los» (Mt 6,19).Mas, «entre irmãs e irmãos não pode ser assim» (Lc 22, 26), dizia Jesus em um dos encontros com suas amigas e amigos. Na mesma mesa senta-se a prostituta, o leproso, a hemoroíssa, o homem da mão seca, o cobrador de impostos, o velho, a criança e cada um afirma o Cristo que vive e busca para que «o amor seja tudo em todos». A diversidade de vidas expressa a diversidade das formas de amor e das formas poéticas para expressá-lo na fidelidade ao que somos e ao bem querer que cultivamos uns para com os outros. Cristologias plurais 132 · Cristologias plurais respondem ao pluralismo da vida, à sua complexidade, à diversidade de situações em que o amor e a justiça acontecem no meio de nós. Como se pode ousar reduzir a criatividade do amor? E, no entanto, estamos sempre fazendo isso como se ao controlar o amor e o pensamento sobre ele pudéssemos ter a posse dos outros e até a posse do poder divino. Não nos convencemos que nossa Cristologia, aquela que está presente em nossa comunidade de fé, é apenas uma das muitas que existem no interior da tradição cristã e no interior de nossa própria Igreja. E quando digo isso, é para afirmar que a partir de nossa cristologia não podemos julgar as outras e nos tornar juizes da ortodoxia do amor e da prática da justiça. Na vida ordinária o amor não se submete às formas pré-estabelecidas e por isso assume várias cores e expressões como o vento que sopra onde quer. É este vento de ruídos diferentes, que faz nascer as cristologias diferentes como formas diferentes de amor e libertação. Cristologias negras que buscam ouvir o clamor dos negros em nosso continente e afirmar a unção que têm no interior mesmo de sua vocação humana para buscar os caminhos de afirmação de sua dignidade e de respeito às suas tradições culturais. Cristologias feministas que sentem a dor dos corpos femininos excluídos e julgados inferiores. Dominação real na forma de dominação simbólica, de dominação econômica, social, familiar e religiosa. Não teríamos nós mulheres direito a uma cristologia que levasse em conta a afirmação de nossa dignidade a partir de nossas próprias dores, a partir das formas de cruz que a sociedade patriarcal nos impôs? Não seria este um caminho de ressurreição dentro dos limites da história presente? Cristologias índias que vivem até hoje o extermínio dos povos nativos e buscam através da luta por sua dignidade afirmarem-se como povos com direito a ter suas terras e tradições respeitadas. E como não se sentir ungidos, chamados a responder à vocação humana de liberdade diante da injustiça de ver suas terras tomadas, suas culturas assassinadas e reduzidas a folclore a serviço de uma elite? Como não tentarmos ser mil Cristos e cada um tentando respeitar o Cristo irmão, o Cristo irmã com suas dores particulares imersas na dor humana coletiva? Muitas vezes os impérios religiosos pregam e exigem a Cristologia da Torre de Babel. Constroem torres e do alto supervisionam as ações e os pensamentos dos trabalhadores exigindo que falem a mesma língua, mesmo sabendo que são originários de povos diferentes. Ameaçam os que falam sua própria língua com castigos diversos visto que a diversidade de línguas pode ser ameaça à hegemonia política e religiosa dos que detêm o poder. Tornam-se intolerantes e exclusivistas afirmando a superioridade cristã como pura escolha e decisão divina. Agem como se precisassem resguardar a ortodoxia e a pureza do Cristo afastando dele os mendigos, as prostitutas, as viúvas, os estrangeiros, os camponeses, os pensadores críticos que se sentam à mesma mesa e podem comer iguarias variadas. Os detentores do poder político e religioso vivem na maioria das vezes de equívocos e nos ameaçam a partir deles. Fazemnos crer que o fazem por responsabilidade eclesial, por amor a Cristo e à Verdade. Mas qual é o seu Cristo na diversidade de cristologias? Creio que, apesar da boa vontade de alguns, afirmam sua imagem de Cristo a partir de categorias imperiais e dualistas que garantiram por séculos, a superioridade do cristianismo em relação às outras aproximações religiosas. Esquecem, talvez, que a grandeza do cristianismo começou na manjedoura, na acolhida de uma criança, nascida de uma mulher, na noite escura do povo explorado. Uma criança frágil, vulnerável, desarmada, dependente como todos nós. Mas nela como em todas as crianças do mundo nasce a esperança de um mundo melhor hoje e amanhã. A criança, Jesus, em seguida se tornou adulta e aos 30 anos, por seu compromisso com os marginalizados de seu lugar, é crucificada e morta pelos poderes políticos e religiosos. Essa morte injusta foi transformada em memória de vida e de amor que fez renascer para muitos a esperança da vida. Nada de glória imperial, nem fausto, nenhuma riqueza, nenhum controle ideológico! Mas é justamente aqui que situamos a originalidade do cristianismo. Não precisamos ser como o Deus todo poderoso, com imagem masculina, sentado em seu dourado trono celeste. Basta que sejamos seres humanos – mulheres e homens – e saber que Deus é em nós desde o começo. Por isso, cada um e cada uma de nós somos convidados a partir de nossas entranhas humanas, a nos aproximarmos do outro, a plantarmos nossa tenda perto dele, a tornarmo-nos sempre de novo o próximo, a fazer caminho em conjunto, a repartir o pão e o vinho e a dar graças à VIDA. E isto se chama ser Cristo. Por isso, falar de cristologias plurais não é uma grande novidade. Não é de hoje que elas são plurais. Nós é que tentamos matar o pluralismo. É importante que não nos esqueçamos disso, pois habituados a viver uma vida em que sempre o plano considerado superior é melhor, temos dificuldade de acolher a diversidade terrena e a riqueza de nossas diferenças. Talvez, como nos ensina a lenda dos reis magos, ousemos nos guiar pela estrela que os conduziu a Jesus menino. Acolhamos nossa estrela, aquela que nos conduz às crianças, aos adolescentes, à mulher que deu à luz, aos pastores e camponeses sem terra, aos desprezados deste mundo, aos aflitos e lá encontraremos o menino ou a menina que somos, Cristos nascidos para nos ajudarmos mutuamente no mistério infinito da VIDA.

(Texto retirado da Revista Tempo e Presença)
Obs: A autora é  escritora, filósofa e teóloga.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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