Eu gostava de irritar o André José Adler dizendo que era fã dele e que me sentia um privilegiado por dividir várias garrafas de Tokaj e pratos de Goulash na companhia do diretor de ‘Nem as enfermeiras escapam’, um clássico da chanchada brasileira produzido em 1977.
Ele respondia: “escrevi o roteiro de tanto filme bom, participei de programas e seriados históricos na TV Tupi, ganhei prêmios, fui o primeiro Pedrinho da televisão brasileira (do Sítio do Pica Pau Amarelo), tive uma longa carreira na ESPN, mas você só lembra justamente da única coisa que me arrependo de ter feito!”
E assim muitos meses se passaram conversando sobre cinema e jornalismo esportivo. Ele bem que tentou, mas nunca consegui entender o tal de futebol americano. Até hoje não faço ideia. Quando ele se empolgava demais tentando explicar os jargões e o funcionamento do jogo, eu começava a perguntar sobre os bastidores das enfermeiras que não escaparam.
Ele ria, respondendo: “só não fico com raiva porque não consigo levar a sério alguém que gosta de Calypso“.
Nascido Endre József Adler em Budapeste, capital da Hungria, André Adler veio para o Brasil ainda criança, com a família. Depois da carreira meio acidental no rádio e na televisão carioca, passou um tempo na Europa sem endereço fixo e mudou-se para os Estados Unidos. Segundo me contou uma vez, entre um Tokaj e outro, resolveu largar tudo no Brasil depois de um divórcio. Foi o jeito que encontrou de recomeçar. Na metade dos anos 2000, Adler decidiu voltar às origens e foi morar na Hungria, lugar que não havia voltado desde criança. Queria buscar raízes que nem ele sabia que existiam.
Quando morei em Budapeste entre 2006 e 2007, o pessoal da Embaixada Brasileira leu alguma reportagem minha na Folha e entrou em contato dizendo algo assim: “parece que tem outro jornalista brasileiro por aqui, não temos certeza, mas anota aí o contato dele“. O então embaixador do Brasil em Budapeste (2006-2008), José Augusto Lindgren-Alves, hoje atuando em Sarajevo, Bósnia e Herzegovina, também não perdia a companhia do André Adler por nada, sempre presente aos eventos da embaixada. Eu sempre tinha pouco tempo, dividido entre o mestrado e dois trabalhos diferentes, mas também não perdia por nada aqueles eventos. Sabia que sempre ia encontrá-lo por lá.
Acho que foi no final de 2007 ou início de 2008 que Adler voltou para o Rio de Janeiro, não lembro ao certo, mas voltou com a missão de popularizar o futebol americano no Brasil. Estava de saco cheio da Hungria e com muita saudade dos familiares e do Rio, segundo me contou uma vez, sem entrar em maiores detalhes. Eu também havia regressado (para Recife) pouco antes e, por ter voltado a trabalhar em jornal, me vi novamente sem tempo nem para respirar.
Pelo que vejo hoje na Internet e principalmente no Facebook, o Torneio Touchdown, idealizado por Adler, tornou-se um sucesso. Touchdown, o momento máximo do futebol americano (a única coisa que consegui entender, aparentemente) também era um dos apelidos de Adler e sua marca registrada em termos de narração.
Final de 2009 ou início de 2010, Adler me envia um e-mail dizendo que ia fazer uma conexão no Aeroporto de Brasília, cidade onde eu havia passado a morar. Fui ao seu encontro no aeroporto, conversamos por 15 minutos antes do embarque e foi a última vez que o vi. Ele parecia muito feliz com os prognósticos e resultados do Torneio Touchdown, mais feliz ainda com a receptividade de tanta gente e de clubes tradicionais à proposta de popularizar o futebol americano no país.
André Adler morreu neste domingo, dia 9 de dezembro de 2012, aos 68 anos, apenas um dia depois de ter participado de uma reunião sobre a final do Torneio Touchdown. Foi encontrado morto no quarto de hotel em São Paulo e, até a hora em que escrevo estas linhas, a causa ainda não foi revelada.
E eu, constrangido, escrevo este pequeno pedaço de memória não como homenagem, pois sempre achei uma hipocrisia (e ele também) essas homenagens póstumas, eremita do jeito que a gente é. Escrevo sobretudo para não esquecer do grande erro que cometi, que tantos de nós somos reincidentes: durante os dois anos em que Adler estava no Rio, sempre prometi visitá-lo para tentar entender a logística do Torneio Touchdown e talvez ajudar em algo, nem que fosse escrevendo alguma crônica pseudo-engraçadinha sobre futebol americano para leigos que não sabem a diferença entre uma bola oval e um ovo de galinha.
Nunca fui ao Rio nestes dois anos, embora tenha prometido ir assim que possível quando nos encontramos no aeroporto de Brasília. Também nunca escrevi a tal crônica. Sempre “faltou tempo”. Morei em São Paulo por um ano, voltei para Recife, voltei para Brasília. Talvez seja o mal universal dos tempos de hoje: a gente pode conversar tão rápido pela internet, se sente tão próximo da pessoa ali do outro da tela e termina esquecendo que ela não vai estar ali para sempre esperando nossa visita.
Adler não foi o primeiro amigo que se foi antes de eu ter tempo de visitá-lo e de colocar a conversa em dia. Certamente e infelizmente também não será o último. A lista parece cada vez mais longa e espero que eles me cobrem, um dia, quando for a minha vez. Até lá, sinto-me parcialmente consolado pela certeza de que, seja lá onde estiverem, os amigos nunca vão embora de fato. Estão sempre conosco, nem que seja numa garrafa de Tokaj ou quando a gente vê um jogo estranho cheio de brutamontes com ombreiras.
Viszlát, barátom.