Todo mês de janeiro, um punhado de estudantes procedente do Colégio Murilo Braga refugiava-se na República Cebolinha por alguns dias enquanto faziam o vestibular. Os residentes universitários eram líderes, que serviam de motivação para os mais jovens que desejavam frequentar um ambiente excepcionalmente acadêmico e descontraído. Os adolescentes, com sentimentos e comportamento familiares, passavam meses sonhando até viverem o êxtase de serem acrescidos à nossa congregação. No meio de nós ficavam livres da angústia que o isolamento causava. Contudo, estavam rodeados por residentes veteranos, travessos mansos, acostumados a submeter os calouros a graciosas brincadeiras. O convívio interpessoal era necessário e muito saudável. Os vestibulandos entusiasmados solicitavam com muita frequência aulas de reposição ou reforço em física, matemática e química aos mais experientes, sendo prontamente atendidos.

Durante seis anos, ocupei o último quarto da república. Localizado próximo à sala de refeições, as conversas da mesa chegavam aos meus ouvidos com muita clareza quando a minha janela estava entreaberta. Depois do almoço, alguns minutos de sono reparador eram suficientes para restabelecer minhas energias após um  fatigante plantão no Pronto-Socorro. Ao encerrar a leitura de uma reportagem sobre drogas ilícitas em Cochabamba, na Bolívia, deitei para a madorna costumeira. Mal tinha fechado os olhos e minha presença foi exigida no refeitório. A voz alta, aflita e em sopapo de Fontes deixava transparecer alguma coisa grave. Em poucos segundos adentrei na sala.

Lá estava Zé bispo, com vestes caseiras e tórax desnudo, atraindo a atenção dos que almoçavam por apresentar pequena deformidade no peito. Examinei atentamente a enfermidade por meio de inspeção cuidadosa e várias manobras. Na hora de emitir o parecer, despertei interesse em todos. “São os ossos do ofício diagnosticar e orientar o tratamento. Por incrível que possa parecer trata-se de Hérnia de Cochabamba, mas o quadro pode ser revertido com aplicação de gelo nas axilas, duas vezes ao dia’’. Notando os semblantes emocionados e os brilhos nos olhos dos residentes, percebi que havia satisfeito as expectativas de todos. Na verdade a deformidade era denominada de ‘tórax em quilha’ ou ‘peito de pombo’ e só raramente causa sintomas ou exige tratamento cirúrgico. Cada um atribui um significado à sua doença. A curiosidade ociosa ou suprimida em Zé Bispo passou a aflorar. Demostrou compulsão em dominar a situação, fazia perguntas e ouvia atentamente as respostas.

Ao cair da noite, Zé Bispo chegou de repente, sorridente e feliz consigo mesmo. Trazia um isopor com gelo, esperançoso de uma resolução favorável e definitiva de sua doença. Anunciou estar decidido a começar o tratamento assim que acordasse.

Por volta das 5 horas da manhã a República foi despertada por uma sequência de grunhidos suaves, longínquos e esparsos. Pouco tempo depois, gemidos e gritos invadiam o corredor e os quartos. Ninguém permaneceu na cama e todos se deslocaram apressadamente na direção da origem dos sons. Encontramos Zé Bispo sentado, com uma toalha enrolada na cintura e uma pedra de gelo em cada axila. Aflito e com os olhos esbugalhados, respirava rápido e a expressão fisionômica de sua face espelhava sofrimento mortal. Entretanto, os efeitos indesejáveis do tratamento não reduziam seu ânimo, pois tinha esperança de que depois do inferno viria o paraíso.

Ao seu redor, “bons amigos’’ lhe prestavam solidariedade por meio de gestos e palavras amáveis. Um frio tomou todo meu corpo. O cenário suscitava medo e ficou tatuado em minha mente. Conversei com os demais residentes, um a um separadamente e todos recusaram a ideia de retroceder.

A notícia da Hérnia de Cochabamba alastrou-se de forma rápida nas outras repúblicas e romarias de estudantes vieram visitar o enfermo. No segundo dia de tratamento o motorista, quase analfabeto, que transportava os professores veio ver Zé Bispo e excedeu as medidas. Descreveu a doença como faria o melhor professor ou o mais completo tratado de medicina. Zé Bispo mostrou-se desconfiado, inquieto e exaltado. Pressentiu que se tratava de um trote. Sentiu-se humilhado e abandonou as recomendações “médicas’’. Fez a última prova do vestibular e nunca mais retornou à República Cebolinha.

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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