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O Carnaval, o Desejo de um Mundo mais Bonito
O Carnaval passou. O povo ocupou a cidade e, com o próprio corpo, produzia e anunciava o desejo, nossos sonhos. No canto e na dança, dizia o que gostaríamos de ser. Inconformidade com o que já somos, ou com o que somos obrigados(as) a continuar a ser. Intuímos que o mundo pode ser diferente, a “fantasia” de que tudo na realidade é possível subverter, fronteiras são para ultrapassar: gente pobre e negra se veste de reis e rainhas; homens se vestem de mulher; em vez de corpos cobertos, corpos nus; o sexo rompe tabus; o povo em festa é como se já não houvesse diferenças de classe; autoridades se “fantasiam” de gente comum; o Estado quase se oculta, reduzido ao mínimo, como se tivesse chegado a hora da Sociedade Civil. Carnaval, desde a Antigüidade, tem a ver com “revolução”, revolve tudo.
Decerto, o Carnaval é a maior expressão da sociedade civil organizada. Não há evento que se lhe equipare no país. Baste pensar na mobilização da massa popular, na incrível capacidade de organização, no investimento financeiro, público e privado, na dedicação, quase religiosa consagração, das pessoas, desde a criatividade artística, que inclusive revela erudição cultural, até o trabalho manual, sem falar da incalculável quota de voluntariado. Ah, se toda essa energia se aplicasse também à obra política de transformar o país! já seríamos “um país de todos”.
Não há como negar, o Carnaval é a mais solene liturgia do Brasil. Momento estético nacional por excelência, experiência sublime da beleza da vida. Estética é isto, gozar da beleza. Primeiramente, beleza contida na vida. Mas também projetada, antecipada. É que, se a vida já é bonita, pode ser ainda mais bonita. Experimentar a beleza do mundo é o que nos move a elaborar projetos de futuro. Estética é “poiesis”, e poesia é motor de ação, transfiguração, não apenas mental, do real.
Se a Beleza é possível deve ser obrigatória
Agora, para quem é cristão, chegou a Quaresma. É curioso. À primeira vista coisas tão diferentes, e tão intimamente relacionadas. Carnaval é para gritar aos quatro ventos que a beleza da vida pode ser ainda mais plena. É experiência estética. Quaresma é para recolher-se e buscar perceber com mais clareza que se a beleza pode ser, deve ser. É experiência ética. Não basta que seja possível, a beleza deve impor-se como obrigatória. São semanas para meditar e aprofundar em nós a beleza, fazê-la passar de poema a dever. O apelo ético da longa experiência cristã tem mostrado sua relevância quando constatamos, particularmente hoje, o desastre provocado por seu contrário, quando até o planeta está sob ameaça de morte.
O chamamento é para nos dedicarmos à oração, ao jejum e à esmola, conforme as lições da Bíblia contidas no evangelho de São Mateus 6, 1-23 e na profecia de Isaías 58, 1-12. Se lemos com atenção o texto de São Mateus, percebemos logo a preocupação de Jesus em opor aparência e profundo, ostentar e verdadeiramente ser.
Orar, como diz Jesus, não é sobretudo falar, mas escutar em silêncio a fonte secreta que pulsa no segredo de cada qual de nós; é concentrar-se no essencial, reencontrar-se com o íntimo de si, lá onde tocamos o Absoluto e a Transcendência em nós; é aprender a distinguir entre principal e secundário na vida, entre necessário e supérfluo.
Jejuar é adotar estilo de vida marcado pela sobriedade, disciplina e capacidade de renúncia ao que não faz bem à vida: esbanjamento, ostentação, corrupção, drogas, fumo, bebida, comilança, conforto supérfluo, língua venenosa (cf. Tg 3), uso abusivo do automóvel… Precisamos com urgência assimilar profundamente uma espiritualidade da Criação, e, assim, ter o cuidado de zelar pela obra de Deus em nós e a redor de nós. A falta de sobriedade responde por várias enfermidades de hoje em dia (obesidade, mau colesterol, doenças cardíacas e vasculares, diabetes, câncer…) e pelas ameaças à vida do planeta (lixo, poluição da terra, do ar e das águas, efeito estufa, calamidades na Natureza, escassez de água…).
Esmola não são alguns trocados. A palavra traduz um dos conceitos mais profundos da Bíblia, que é expresso em hebraico pela palavra “hesed”, “miseri-córdia”, sentir com o coração a miséria de outrem. É “com-padecer”, isto é, padecer, sofrer com. Nosso termo “esmola” vem da palavra latina “elemosina” que, por sua vez, reproduz o grego “eleemosyne” e significa compaixão, misericórdia, solidariedade profunda, que brota das entranhas, do coração, como se estivéssemos vendo sofrer o fruto de nosso ventre. É partilhar afetos, tempo, talentos e bens; é partilha e compromisso solidário e politicamente lúcido de contribuir para que se restabeleça a justiça. Hoje, é escolher instrumentos adequados à luta pela transformação da sociedade: voluntariado social, Igrejas comprometidas com a vida do povo, empresas com responsabilidade social, ONGs confiáveis e partidos políticos populares e decentes, conselhos da cidadania e as diversas formas de luta do Movimento Social e tudo o que se possa fazer em proveito da articulação de todas as forças que lutam por “outro mundo possível, necessário e urgente”. Para a Comunhão Anglicana, entre as marcas de adesão ao Evangelho de Jesus, além da solidariedade imediata com quem necessita, está nossa disposição a “lutar corajosamente para transformar as estruturas injustas da sociedade”, “zelar pelos recursos da Criação e conservar e renovar a terra”, e “lutar para estabelecer e garantir a paz”..
É muito bonito o que lemos nos Atos dos Apóstolos (At 3, 1-10). Os Apóstolos se deparam com um homem aleijado que mendiga à porta do templo. As pessoas lhe davam moedas. “Quando o coxo viu Pedro e João entrando, pediu uma esmola. Eles olharam firmemente para ele, e Pedro disse-lhe: Olhe para nós! O homem olhou para eles esperando receber alguns trocados. Então Pedro disse: Não tenho ouro nem prata, mas o que tenho, isto lhe dou: pelo poder do nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levante-se e ande”. Eis aí o retrato da compaixão: olhar-se nos olhos, como seres humanos que se reconhecem, e, a partir desse encontro interpessoal, intercambiar, comunicar poder, e possibilitar que pessoas se levantem e caminhem com seus próprios pés (cf. Lc 4, 16-22).
A Beleza devida tem de ser praticada
Isaías, ao proclamar qual o jejum que agrada a Deus, denuncia nossa freqüente incoerência entre o que dizemos e cantamos nos templos e o que praticamos na vida quotidiana, entre os atos religiosos e nosso empenho por restabelecer a fraternidade (solidariedade) e a justiça (cf. Is 58, 2-3). O momento ético que é a Quaresma tem de tomar corpo no movimento político de cada dia. É isto a expressão da caridade. Se a beleza é possível, é obrigatória; se obrigatória, tem de tornar-se real pela ação política. O que pode ser (estética), deve ser (ética); o que deve ser, tem de ser (política). É curioso como o que parece tão distante é, na verdade, tão perto. Carnaval, Quaresma e Política, apenas três faces do mesmo mundo que deseja ser mais bonito e melhor. Festa, liturgia e luta, só três irmãs com o mesmo sobrenome: vida humana, e a mesma raiz: o amor. E o Amor é Deus (cf. 1Jo 4, 7-8; Sl 149).
O famoso Arcebispo anglicano Desmond Tutu, arcebispo emérito da África do Sul e Prêmio Nobel da Paz por seu trabalho na libertação e reconciliação entre brancos (ricos) e negros (maioria pobre) no país do apartheid, disse recentemente uma palavra que nos deve guiar nesta Quaresma:
“Vejam a situação na qual se acha o mundo. Reconheçam que Deus está em lágrimas ao sentir o estado de Sua obra. E está em busca de pessoas que aceitem ser colaboradoras para fazer deste mundo o tipo de mundo que Ele pretende. A Igreja é feita para fortalecer essa gente companheira de Deus.
Nós precisamos de gente santa. Nós precisamos de pessoas que tenham como foco de sua existência um centro para onde tudo converge. Pessoas que sejam como açudes de serenidade, de tal forma que posamos ter ondas de paz em um mundo que deve tomar consciência de que cada qual de nós possui um espaço secreto, feito à semelhança de Deus, o qual só Deus mesmo é capaz de preencher”.
Vamos com dedicação praticar a disciplina da Quaresma! Concentrar-nos na oração e na escuta, meditação e partilha da Palavra de Deus; assumir com alegria um estilo de vida de sobriedade, centrado no essencial e não disperso no que é supérfluo; dispor-nos à partilha solidária de nossos bens e a exercer com coragem o compromisso de lutar pela restauração da justiça nas estruturas da sociedade! Vamos obedecer à voz de Deus, submeter-nos a Sua santa vontade, para que o deserto em nós e na sociedade se transforme em mananciais de água viva, como nos garante o profeta Isaías (cf. Is 58, 11).
“Onde está nosso tesouro, aí estará nosso coração” (Mt 6, 21). Que nosso tesouro não sejam ouro e prata “que a traça e a ferrugem destroem, e os ladrões arrombam e roubam” (ibd. v. 19)! Que nosso tesouro sejamos nós mesmos(as) e as pessoas com as quais convivemos, próximas ou aparentemente distantes, todas nosso “próximo” onde quer que se encontrem (cf. Lc 10, 36). Que nosso coração não seja posto sobretudo nas coisas, mas nas pessoas, membros do Corpo vivo e crucificado de Jesus! (cf. 1Cor 12-13).
Obs: Imagem enviada pelo autor.
Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB