Mario de França Miranda 15 de fevereiro de 2016

Foto padre mario

O termo “quaresma” vem do latim quadragesima e alude aos quarenta dias de jejum que precediam a festa da Páscoa. Este tempo do ano litúrgico teve início no Oriente,sendo posteriormente assumido pela Igreja do Ocidente. Estava voltado principalmente para dois grupos típicos na Igreja:os que haviam pedido o batismo e os pecadores que cumpriam penitências. Ambos receberiam,por ocasião da Páscoa,o batismo e a reconciliação sacramental. Daí,constituir para os demais da comunidade um tempo propício para que eles tomem consciência do próprio batismo e da necessidade de uma maior conversão. Ainda hoje os católicos renovam na Quinta Feira Santa as promessas do batismo e consideram estes dias como tempo de conversão.

Sem querer discutir a oportunidade e o fruto que tal período do ano possa ter tido para gerações passadas, parece-nos,contudo,difícil justificá-lo em nossos dias. Já vivemos sobrecarregados de penitências impostas pela vida moderna. Pois estamos imersos em dias tensos, dada a rapidez das mudanças culturais e sociais, bombardeados continuamente com novas informações, que devem ser ingeridas,digeridas e processadas sob pena de sermos banidos da atual sociedade. Sofremos a insegurança econômica, a competição fria,a pressão infernal da produtividade, a instabilidade do emprego. Numa cultura marcada pelo individualismo sentimo-nos sós, frágeis, desamparados, rodeados por semelhantes igualmente frágeis e carentes. Estamos condenados a administrar por nossa conta as próprias insuficiências, a viver a pesada condição humana num tempo escasso de amor e solidariedade,a navegar num mar desconhecido para nossos mapas familiares.

Realmente vivemos numa época instável,acelerada, pluralista,caracterizada pela dança desenfreada dos valores e pela multiplicidade indomável de linguagens. Podemos completar o quadro com a violência urbana, sempre a espreitar nossos passos e exigindo nossa atenção até dentro de casa. A cena torna-se ainda mais sombria se considerarmos as intoleráveis condições de vida das classes mais pobres. Excluídas dos benesses da sociedade moderna,expostas à insegurança, à violência e à arbitrariedade,privadas da cultura necessária para entender o mundo onde vivem,são maiorias estrangeiras em seu próprio país. Resta-nos o entretenimento com as variadas da midia ou mesmo com os últimos gadgets lançados no mercado. Contudo não saímos do sufoco.

Portanto viver nesta moderna sociedade já constitui uma ascese cotidiana,um fardo contínuo, uma tarefa laboriosa. Que sentido poderia ainda ter hoje um discurso da Igreja recomendando-nos jejuns e abstinências? Há ainda lugar para renúncias neste contexto vital tão exigente? Não deveria ser a quaresma simplesmente abolida,como realidade arcaica em nossos dias?

Estas questões nos obrigam a buscar o significado profundo deste tempo. A história do mesmo nos explica que se buscava renovar a consciência dos cristãos com relação à sua própria identidade. O compromisso de viver no seguimento de Cristo sacramentalizado no batismo e o retorno ao mesmo pela conversão demonstram que estamos lidando,não com um período sombrio e triste, mas simplesmente com um tempo de vida cristã mais autêntica. Todo o Novo Testamento nos atesta que esta última consiste em viver o duplo mandamento do amor,amor a Deus e amor ao semelhante, inseparáveis já que o segundo assegura a veracidade do primeiro.

Nesta perspectiva aparecem os dias da quaresma como tempo de se voltar com generosidade para o nosso próximo, sobretudo aquele mais necessitado. Tempo de se sensibilizar com as difíceis condições de vida por parte de muitos de nossos contemporâneos. Tempo de dar um pouco de si para diminuir os sofrimentos à nossa volta. Tempo de romper com o individualismo reinante em nossos dias. Tempo de se tomar consciência das conseqüências nefastas de uma cultura desenfreada de consumo do supérfluo,que bloqueia a camadas majoritárias da população o acesso ao necessário. Tempo de se perceber o egoísmo não apenas como um pecado,mas também como um fechamento ao outro, um fator desumanizador,um flagelo social, um desestabilizador da convivência humana.

Mas, sobretudo,tempo de se viver a fé com convicção,com compromisso,com alegria. O cristianismo só se mostra em sua realidade profunda para aqueles que o vivem com seriedade. Então dele recebem luz,sentido, paz, estabilidade, lastro para suas vidas. E,sobretudo, a alegria profunda que só a doação desinteressada ao outro pode nos fazer experimentar.

Esta compreensão da quaresma fez com que a CNBB tenha lançado desde 1964 a Campanha da Fraternidade, que convida os católicos a uma renovação de sua vocação cristã e a uma caridade efetiva com os mais necessitados. Cada ano apresenta um objetivo específico. Digno de nota é que a Campanha da Fraternidade seja realizada juntamente com outras Igrejas Cristãs, dando uma dimensão ecumênica a este movimento.

Depois do que vimos ganha este tempo específico um sentido substancial e uma atualidade pertinente em nossos dias. Sem o espírito da quaresma dificilmente conseguiremos construir uma pátria solidária fundada na paz e na justiça. Pois este espírito é pressuposto para conseguirmos o respeito devido aos bens públicos, a observância da ética profissional, o empenho das classes dirigentes pelo bem comum, a sensibilização dos políticos pelos mais fracos que os elegeram, a luta dos mais cultos pela justiça,o interesse das elites pelo bem da maioria.

Em nossos dias a renúncia já se faz presente devido ao medo do colesterol ou da balança. Renúncia socialmente inócua porque voltada para o próprio indivíduo. A quaresma nos propõe uma renúncia originada nas necessidades de nosso próximo. Renúncia socialmente fecunda porque nos abre para o outro, nos faz mais humanos, mais cidadãos, mais cristãos. E,sobretudo, menos bobos subservientes à sociedade de consumo.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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